Poema das Árvores As árvores crescem sós. E a sós florescem.
Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.
Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.
Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.
E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.
Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.
As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.
Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
A crescer e a florir sem consciência.
Virtude vegetal viver a sós
E entretanto dar flores.
António Gedeão, in «Obra Poética», António Gedeão
Por Fernando J. B. Martinho
Nascido em 1906, contemporâneo dos poetas da presença, só em
1956 António Gedeão (1906-1997; pseudónimo de Rómulo de Carvalho,
metodólogo de Ciências Físico-Químicas no ensino secundário, autor de
trabalhos nos domínios da didática das disciplinas da sua especialidade,
e da historiografia e divulgação científicas) publica o seu primeiro
livro de poemas, Movimento Perpétuo.
Entre esse ano e 1961 dará a público outras duas coletâneas, Teatro do Mundo, 1958, e Máquina de Fogo, tendo oportunidade logo em 1964 de reunir a sua produção poética nas Poesias Completas,
acompanhadas de um importante e exaustivo estudo de Jorge de Sena,
também ele homem de formação científica. Até aos princípios dos anos 90,
as Poesias Completas, que a partir da 2ª edição, em 1968, passam a incluir Linhas de Força,
de 1967, conhecerão uma dezena de edições, circunstância muito rara no
panorama da edição poética portuguesa de Novecentos e que dá bem a
medida da popularidade alcançada durante esse período pela obra de
António Gedeão, que beneficiou igualmente da difusão que lhe foi dada
por alguns nomes importantes da nossa música popular e de intervenção.
No momento em que António Gedeão se estreia como poeta (sublinhe-se
que já então é autor de trabalhos didáticos ou de divulgação científica e
que, como pode ver-se na edição da Obra Completa, de 2004,
desde muito jovem escreve poemas), é muito forte entre os autores
emergentes a consciência de fazerem parte de uma tradição moderna, que
remonta aos tempos do Orpheu, ou mesmo a certas figuras-chave
anteriores como Cesário, Nobre ou Pessanha. Jorge de Sena dirá que
Gedeão realiza, na sua poesia, uma síntese das grandes conquistas do
Modernismo, e, em certo sentido, poderá mesmo afirmar-se que ele é um
dos primeiros a levá-las a um público mais alargado que a lírica
moderna, com algumas das suas ousadias, ainda não fora capaz de aliciar.
A par de uma original reelaboração do legado modernista, sem
dificuldade se reconhece igualmente nos versos de António Gedeão um
poeta identificado com o espírito do tempo que presidiu à sua
estreia literária. Assim o vemos, numa época dominada pelas filosofias
da existência, entregue ao «desespero», a um mal-estar que vem das zonas
mais fundas e turvas da consciência de existir. Ou dando expressão aos
seus receios perante a «bomba», a capacidade de autodestruição do homem,
em tempo de guerra fria. Esse pessimismo casa bem com a
condição que é também a sua de herdeiro do ceticismo iluminista: «Os
homens nascem maus./ Nós é que havemos de fazê-los bons.» Mas a herança
do iluminismo permite-lhe, ao mesmo tempo, alimentar a confiança no
homem: «Eu sou o homem. O Homem./ Desço ao mar e subo ao céu./ Não há
temores que me domem./ É tudo meu, tudo meu.» Desse mesmo legado é
possível aproximar, por outro lado, a sage ironia que o leva,
em “Poema do fecho éclair”, a meter a ridículo o poder de um dos grandes
do mundo por tudo possuir mas não conhecer um dos mais correntes
artefactos do homem moderno, ou, em “Dia de Natal”, a fazer a denúncia
do desenfreado consumismo próprio dessa quadra.
Numa fase da evolução da nossa lírica moderna em que já se verificara o alargamento dos domínios da poesia ao que era tido por não poético,
uma das grandes novidades que os versos de António Gedeão trazem é a
presença, muito marcada, neles da linguagem científica. Homem de
ciência, ligado a conceitos e terminologias que preenchem
quotidianamente a sua atividade, não separa, na sua poesia, Rómulo de
Carvalho do seu alter ego literário António Gedeão. Pelo
contrário, chega a fazê-los coexistir num mesmo texto, como acontece na
famosa “Lição sobre a água”, em que o leitor colhe a impressão de que é o
cientista que fala nas duas primeiras estrofes, para, na estrofe final,
ceder a voz ao poeta. De outras vezes, à expressão da
indignação do humanista, tantas vezes já gasta pela retórica do
panfletarismo, prefere o poeta a austera eficácia da demonstração e da
evidência científicas, como na antologiadíssima “Lágrima de preta”. A
isto acresce o uso recorrente de termos científicos, respondendo a uma
indeclinável necessidade gerada pelos próprios temas, sem que o poeta
ponha de parte um dos grandes prazeres que a sua arte lhe reserva, o da
nomeação, para o caso incidindo no que é a sua experiência interiorizada
de todos os dias de homem de ciência. E aqui é a linguagem poética que
se enriquece e as imagens e metáforas que ganham outro fulgor e novos
modos de nos surpreender, numa decidida ampliação do campo expressivo,
com o recurso a realidades evocadas por termos como, entre muitos
outros, «protoplasma», «cisão do átomo», «neutrão», «colódio», «ácidos»,
«bases», «sais», «cloreto de sódio», «suspensão coloidal»,
«dissolvente», «aminoácido».
No plano da forma da expressão, é possível traçar uma linha evolutiva
na poesia de Gedeão, entre o livro de estreia em meados dos anos 50 e a
última coletânea, vinda a lume em 1990. Permitir-nos-á ela notar a
predominância do metro regular nos livros publicados na década de 50, Movimento Perpétuo e Teatro do Mundo, a adoção de ritmos mais livres embora mantendo-se ainda o uso da rima nos volumes editados nos anos 60, Máquina de Fogo e Linhas de Força, e uma clara opção pelo verso livre não rimado nas duas últimas coletâneas, Poemas Póstumos, de 1983, e Novos Poemas Póstumos,
de 1990. Nuns casos a forma escolhida aproxima-se das formas legadas
pela tradição, que podem ser as que têm origem na poderosa tradição
romancística, como se observa em “Cavalinho, cavalinho” e em “Ai
Silvina, ai Silvininha”, ou as que entram num processo de interlocução
com a tradição culta, trazendo à memória ora as Barcas vicentinas, em
“Fala do homem nascido” ( «Minha barca aparelhada/ solta o pano rumo ao
norte;/ meu desejo é passaporte/ para a fronteira fechada./ Não há
ventos que não prestem/ nem marés que não convenham,/ nem forças que me
molestem,/ correntes que me detenham» ), ora um dos mais glosados poemas
de Camões em “Poema da auto-estrada”, aqui por via da distorção
paródica ( «Voando vai para a praia/ Leonor na estrada preta./ Vai na
brasa de lambreta.» ). Noutros casos, as suas opções formais
aproximam-se, já no âmbito da tradição moderna, da combinação de
diversos metros tão do agrado dos poetas da presença, ou, como é
o caso, nos dois últimos livros, de modo mais nítido, do versilibrismo
mais ou menos radical de que o Modernismo fez, em diferentes momentos,
um dos seus mais apregoados instrumentos de libertação.
Registe-se ainda a incursão, em 1973, de António Gedeão pela ficção narrativa em A Poltrona e Outras Novelas, e, em 1963 e 1981, pela literatura dramática, em RTX – 78/24 e História Breve da Lua, respetivamente, textos estes que podem ler-se, para além de um conjunto de ensaios literários, em Obra Completa, de 2004. (Daqui)
"When we try to pick out anything by itself, we find it hitched to everything else in the Universe."