quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

"As três palavras mais estranhas" - Poema de Wisława Szymborska


Werner Holmberg (Finnish painter, 1830–1860), Landscape from Kuru in Morning Light, 1858,
 
 

As três palavras mais estranhas


Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.


Wisława Szymborska
, "Instante".

In Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
 
 
Wisława Szymborska
(Photo credit: Polish News Agency PAP)
 

Poetisa e mulher de letras polaca, Wisława Szymborska nasceu a 2 de julho de 1923 em Bnin, nas cercanias de Kórnik. Acompanhou a família na sua mudança para Cracóvia em 1931.
Após um período difícil para a Polónia, invadida pelos alemães em 1939, a paz trouxe um novo alento a Szymborska, que, em 1945, não só pôde ingressar na Universidade de Jagelão, em Cracóvia, como estudante de Literatura Polaca e Sociologia, como também se estreou como poetisa, ao publicar o seu trecho "Szukam Slowa" num jornal proeminente.
Concluiu o seu primeiro livro em 1948, uma coletânea de poemas que não chegou a ser publicada, já que o regime comunista caracterizou o trabalho como demasiadamente burguês. Alterando o seu discurso, politizando-o, conseguiu dedilhar as tramas da censura, e publicou Dlagtego Zyjemy (1952, Por Isso Vivemos).
Contribuindo regularmente para a imprensa, Szymborska foi editora de poesia e colunista no semanário literário de Cracóvia, o Zycle Literackie, entre 1953 e 1981. Traduziu também várias obras de poesia francesa, mas continuou no entanto a compor poesia, aparecendo com obras como Wolanie Do Yeti (1957, Apelo ao Yeti), em que se demarca dos ideais socialistas, e que lhe garante renome a nível internacional, e Sól (1962, Sal), em que exprime um certo pessimismo quanto ao futuro da humanidade, aliado a uma certa esperança nos poderes da imaginação, único meio para atingir uma parte da felicidade. De mencionar também as obras Wiersze Wybrane (1964), Sto Pociech (1967), Ludzie Na Moscie (1986) e Koniec I Poczatec (1993). Chwila surgiu em 2002, quando a poetisa contava já setenta e nove anos de idade. Alguns dos seus artigos periódicos foram compilados em Lektury Nadobowiazkowe (1973-81).
Laureada com inúmeros prémios literários, entre os quais se destacam o Goethe, em 1991, o Herder, em 1995 e, de maior relevo, o Prémio Nobel da Literatura em 1996, Szymborska recebeu um doutoramento em Honoris Causa pela Universidade de Poznán em 1995. (Daqui)
 
 
 

"De vez em quando a eternidade sai do teu interior e a contingência substitui-a com o seu pânico. São os amigos e conhecidos que vão desaparecendo e deixam um vazio irrespirável. Não é a sua 'falta' que falta, é o desmentido de que tu não morres." 

Vergílio Ferreira, em "Escrever" (póstumo), 2001



"Escrever" - Edição de Helder Godinho
Bertrand Editora / Lisboa, 2001
. (daqui)


Resumo 
 
 
"Escrever" é o último livro que Vergílio Ferreira (1916-1996) escreveu, e a segunda obra póstuma do autor de "Aparição". A sua edição, crítica, esteve a cargo de Helder Godinho (1947-2020), professor e estudioso da obra do escritor, e coordenador da equipa responsável pelo seu espólio.
Vergílio Ferreira trabalhou neste livro até ao dia que antecedeu a sua morte, e nele repensa os seus grandes temas de sempre, atualizando-os: a matéria da escrita e da arte, o corpo, a velhice e a doença, a morte, o abismo para onde, na sua opinião, a civilização caminha (não deixando de lado uma matéria que ultimamente tanto se discute: o poder perverso da televisão). São fragmentos, pensamentos, reflexões, por vezes escritos quase como um poema em prosa, ou mais filosóficos e mais próximos daqueles que desenvolveu em "Espaço Invisível V".
Sobre o livro, no qual trabalhou dois anos, Helder Godinho disse ao jornal Público: "Este livro é o retomar de alguma problemática [dos seus grandes temas] mas atualizada, na relação direta que ele mantém com o que vai acontecendo, com a contemporaneidade. "Escrever" é o retomar de velhas preocupações, mas adaptadas ao que se está a viver e, por outro lado, o reforço do drama da morte que se aproxima. É um homem que está doente e que sabe que está velho - e isso aparece em "Escrever" com uma força que não aparece em mais nenhum livro. As entradas sobre a velhice são imensas e algumas já são escritas com algum distanciamento." (Daqui)
 
 

Werner Holmberg, Autumn Morning, 1856, Turku Museum of Art, Turku, Finland.

 
“Que é que me diz à evocação a montanha onde nasci? Os uivos do vento numa noite de tempestade, a neve do início genesíaco. Mas o mar diz-me da constante inquietação e só a montanha me lembra o estável e o eterno. Massa enorme, nascida do ventre da Terra, está ali repousada sobre o seu ser, feita da substância da eternidade. Assim ao contemplá-la eu próprio repouso sobre mim, esvaziado do que me oprime ou inquieta, transmudando-me ao que nela há de estável e denso e alastrado aos poderes cósmicos. Como tudo o que é imenso dissolve-me a pequenez ou equilibra-a no que a transcende como se transposta à sua grandeza que me reabsorve em si e me dissipa a minha própria individualidade. Que é que me fala à evocação da montanha que perdi? Não sei. Talvez apenas a humildade do meu ser que se desvanece.”
 
 
Werner Holmberg, Finnish Lake Landscape, 1854, Finnish National Gallery
 
 
“Para que percorres inutilmente o céu inteiro à procura da tua estrela? Põe-na lá.” 
 
 
 
Werner Holmberg, German Landscape, 1855, Pori Art Museum
 
 
 "Sê alegre apenas depois de dares a volta à vida toda. E regressares então a uma flor, ao sol num muro, a um verme no chão. A profunda alegria não é a do começo mas a do fim."
 
Vergílio Ferreira, em "Escrever"
 
 

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Poema das Árvores - António Gedeão


Wynford Dewhurst (English Impressionist painter and notable art theorist, 1864 –1941), 
The Picnic, 1908; Manchester Art Gallery



Poema das Árvores


As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.

Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
A crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós
E entretanto dar flores.


António Gedeão
, in «Obra Poética»
Edições João Sá da Costa, 2001.
 
 
 
António Gedeão
 

António Gedeão

Por Fernando J. B. Martinho

Nascido em 1906, contemporâneo dos poetas da presença, só em 1956 António Gedeão (1906-1997; pseudónimo de Rómulo de Carvalho, metodólogo de Ciências Físico-Químicas no ensino secundário, autor de trabalhos nos domínios da didática das disciplinas da sua especialidade, e da historiografia e divulgação científicas) publica o seu primeiro livro de poemas, Movimento Perpétuo.

Entre esse ano e 1961 dará a público outras duas coletâneas, Teatro do Mundo, 1958, e Máquina de Fogo, tendo oportunidade logo em 1964 de reunir a sua produção poética nas Poesias Completas, acompanhadas de um importante e exaustivo estudo de Jorge de Sena, também ele homem de formação científica. Até aos princípios dos anos 90, as Poesias Completas, que a partir da 2ª edição, em 1968, passam a incluir Linhas de Força, de 1967, conhecerão uma dezena de edições, circunstância muito rara no panorama da edição poética portuguesa de Novecentos e que dá bem a medida da popularidade alcançada durante esse período pela obra de António Gedeão, que beneficiou igualmente da difusão que lhe foi dada por alguns nomes importantes da nossa música popular e de intervenção.

No momento em que António Gedeão se estreia como poeta (sublinhe-se que já então é autor de trabalhos didáticos ou de divulgação científica e que, como pode ver-se na edição da Obra Completa, de 2004, desde muito jovem escreve poemas), é muito forte entre os autores emergentes a consciência de fazerem parte de uma tradição moderna, que remonta aos tempos do Orpheu, ou mesmo a certas figuras-chave anteriores como Cesário, Nobre ou Pessanha. Jorge de Sena dirá que Gedeão realiza, na sua poesia, uma síntese das grandes conquistas do Modernismo, e, em certo sentido, poderá mesmo afirmar-se que ele é um dos primeiros a levá-las a um público mais alargado que a lírica moderna, com algumas das suas ousadias, ainda não fora capaz de aliciar. A par de uma original reelaboração do legado modernista, sem dificuldade se reconhece igualmente nos versos de António Gedeão um poeta identificado com o espírito do tempo que presidiu à sua estreia literária. Assim o vemos, numa época dominada pelas filosofias da existência, entregue ao «desespero», a um mal-estar que vem das zonas mais fundas e turvas da consciência de existir. Ou dando expressão aos seus receios perante a «bomba», a capacidade de autodestruição do homem, em tempo de guerra fria. Esse pessimismo casa bem com a condição que é também a sua de herdeiro do ceticismo iluminista: «Os homens nascem maus./ Nós é que havemos de fazê-los bons.» Mas a herança do iluminismo permite-lhe, ao mesmo tempo, alimentar a confiança no homem: «Eu sou o homem. O Homem./ Desço ao mar e subo ao céu./ Não há temores que me domem./ É tudo meu, tudo meu.» Desse mesmo legado é possível aproximar, por outro lado, a sage ironia que o leva, em “Poema do fecho éclair”, a meter a ridículo o poder de um dos grandes do mundo por tudo possuir mas não conhecer um dos mais correntes artefactos do homem moderno, ou, em “Dia de Natal”, a fazer a denúncia do desenfreado consumismo próprio dessa quadra.

Numa fase da evolução da nossa lírica moderna em que já se verificara o alargamento dos domínios da poesia ao que era tido por não poético, uma das grandes novidades que os versos de António Gedeão trazem é a presença, muito marcada, neles da linguagem científica. Homem de ciência, ligado a conceitos e terminologias que preenchem quotidianamente a sua atividade, não separa, na sua poesia, Rómulo de Carvalho do seu alter ego literário António Gedeão. Pelo contrário, chega a fazê-los coexistir num mesmo texto, como acontece na famosa “Lição sobre a água”, em que o leitor colhe a impressão de que é o cientista que fala nas duas primeiras estrofes, para, na estrofe final, ceder a voz ao poeta. De outras vezes, à expressão da indignação do humanista, tantas vezes já gasta pela retórica do panfletarismo, prefere o poeta a austera eficácia da demonstração e da evidência científicas, como na antologiadíssima “Lágrima de preta”. A isto acresce o uso recorrente de termos científicos, respondendo a uma indeclinável necessidade gerada pelos próprios temas, sem que o poeta ponha de parte um dos grandes prazeres que a sua arte lhe reserva, o da nomeação, para o caso incidindo no que é a sua experiência interiorizada de todos os dias de homem de ciência. E aqui é a linguagem poética que se enriquece e as imagens e metáforas que ganham outro fulgor e novos modos de nos surpreender, numa decidida ampliação do campo expressivo, com o recurso a realidades evocadas por termos como, entre muitos outros, «protoplasma», «cisão do átomo», «neutrão», «colódio», «ácidos», «bases», «sais», «cloreto de sódio», «suspensão coloidal», «dissolvente», «aminoácido».

No plano da forma da expressão, é possível traçar uma linha evolutiva na poesia de Gedeão, entre o livro de estreia em meados dos anos 50 e a última coletânea, vinda a lume em 1990. Permitir-nos-á ela notar a predominância do metro regular nos livros publicados na década de 50, Movimento Perpétuo e Teatro do Mundo, a adoção de ritmos mais livres embora mantendo-se ainda o uso da rima nos volumes editados nos anos 60, Máquina de Fogo e Linhas de Força, e uma clara opção pelo verso livre não rimado nas duas últimas coletâneas, Poemas Póstumos, de 1983, e Novos Poemas Póstumos, de 1990. Nuns casos a forma escolhida aproxima-se das formas legadas pela tradição, que podem ser as que têm origem na poderosa tradição romancística, como se observa em “Cavalinho, cavalinho” e em “Ai Silvina, ai Silvininha”, ou as que entram num processo de interlocução com a tradição culta, trazendo à memória ora as Barcas vicentinas, em “Fala do homem nascido” ( «Minha barca aparelhada/ solta o pano rumo ao norte;/ meu desejo é passaporte/ para a fronteira fechada./ Não há ventos que não prestem/ nem marés que não convenham,/ nem forças que me molestem,/ correntes que me detenham» ), ora um dos mais glosados poemas de Camões em “Poema da auto-estrada”, aqui por via da distorção paródica ( «Voando vai para a praia/ Leonor na estrada preta./ Vai na brasa de lambreta.» ). Noutros casos, as suas opções formais aproximam-se, já no âmbito da tradição moderna, da combinação de diversos metros tão do agrado dos poetas da presença, ou, como é o caso, nos dois últimos livros, de modo mais nítido, do versilibrismo mais ou menos radical de que o Modernismo fez, em diferentes momentos, um dos seus mais apregoados instrumentos de libertação.

Registe-se ainda a incursão, em 1973, de António Gedeão pela ficção narrativa em A Poltrona e Outras Novelas, e, em 1963 e 1981, pela literatura dramática, em RTX – 78/24 e História Breve da Lua, respetivamente, textos estes que podem ler-se, para além de um conjunto de ensaios literários, em Obra Completa, de 2004. (Daqui)

 
 Wynford Dewhurst, Apple-Blossom time in Arc-la-Bataille
 

"When we try to pick out anything by itself, we find it hitched to everything else in the Universe."
 
(John Muirin My First Summer in the Sierra, 1911, page 110.)
 

Wynford Dewhurst, Evening Shadows, 1899, Private collection
 
 
"Todos precisam de beleza assim como de pão; de lugares onde se divertir e orar, onde a Natureza possa curar, encorajar e fortalecer tanto o corpo quanto a alma." 

"Everybody needs beauty as well as bread, places to play in and pray in, where nature may heal and give strength to body and soul alike."

(John Muir, in The Yosemite, 1912, page 256.)

 
 
 
"Escale as montanhas e sinta suas boas vibrações. A paz da natureza fluirá dentro de você assim como os raios do sol fluem por entre as árvores. Do vento, absorva o frescor, e da tempestade, a energia; e as preocupações murcharão como folhas no outono." 

"Climb the mountains and get their good tidings. Nature's peace will flow into you as sunshine flows into trees. The winds will blow their own freshness into you, and the storms their energy, while cares will drop off like autumn leaves."
 
(John Muir, in Our National Parks, 1901, page 56.)  
 
 
 
John Muir (Dunbar, Escócia, 21 de abril de 1838 — Noël, Los Angeles, 24 de dezembro de 1914)  foi um preservacionista, proprietário rural, explorador e escritor escocês-americano. Teve papel fundamental na criação das primeiras áreas protegidas americanas e  é considerado um dos fundadores do movimento conservacionista moderno. 
 

domingo, 25 de dezembro de 2022

"Nasceu um Menino" - Poema de José Régio


Charles Le Brun (, L'Adoration des bergers, 1689, 
  Paris, Musée du Louvre
 

Nasceu um Menino 


Nasceu, nasceu um Menino,
Nasceu um Menino mais,
No bercinho pouco fino
Das palhas duns animais!

Que num vil curral por quarto
E entre uns pedregulhos nus,
Teve a santa dor do parto
A Mulher que o deu à luz.

Mas de cada vez, no mundo,
Que mais um ser aparece,
Quem pode descer ao fundo
Do que o Destino nos tece?

À hora em que Este chegava,
Lá para um cerro distante,
Por cada fibra chorava
Um velho cedro gigante.

Chorava porque sabia
Que em seu peito condenado
Aquele Menino, um dia,
Seria crucificado.

Ora cada vez, no mundo,
Que nasce mais um Menino,
Quem pode descer ao fundo
Do que nos tece o Destino?

Já, pelos céus fora, um astro
Descendo sobre o curral,
Abre para sempre um rastro
De alvor sobrenatural.

E o velho cedro, que chora
Porque se julga precito,
Pelos séculos fora
Será sagrado e bendito.

Que abertos pelos espaços,
No azul sereno e profundo,
Do sangue duns outros braços
Seus braços dão Vida ao mundo. 


José Régio, em ‘Obra Completa’

 

Charles Le Brun, Le Sommeil de l'Enfant Jésus ou Le Silence, 1655. Paris, Musée du Louvre


“Uma boa consciência é um Natal contínuo.”

Charles Le Brun, portrait by Nicolas de Largillière (French portrait painter, 1656-1746)
 
 
Charles Le Brun 

Charles Le Brun foi um pintor, decorador e teórico francês nascido a 24 de fevereiro de 1619, em Paris, França.
Filho de um escultor que lhe ensinou a profissão, Charles Le Brun cedo revelou vocação para a pintura, começando aos treze anos a trabalhar no atelier do pintor François Perrier. Nessa altura, o talento do jovem chamou a atenção do Chanceler Pierre Séguier que o tomou para sua guarda.

Em 1633, graças ao seu protetor, o artista foi trabalhar para o atelier de Simon Vouet, que teve também entre os seus discípulos futuras grandes personalidades das artes, André Le Nôtre, Pierre Mignard e Eustache Le Sueur. Completou a sua formação numa estadia no Palácio de Fontainebleau onde estudou as coleções de arte reais.

Reconhecido pelo seu grande talento e com o apoio financeiro do seu protetor, Le Brun partiu para Roma, em 1642, a fim de estudar os grandes escultores e pintores italianos e de conhecer os grandes artistas europeus da época, como foi o caso de Nicolas Poussin que veio a ser seu mestre.

De regresso a Paris, em 1646, recebeu várias encomendas, como a do superintendente Fouquet para quem realizou as esculturas dos jardins e as tapeçarias do seu soberbo palácio em Vaux-le-Vicomte ou a da Corporação dos Ourives que lhe encomendou o quadro O Martírio de S. André (1647) para a Catedral Notre-Dame, em Paris. A pedido do Cardeal Mazarino, Le Brun e André Le Nôtre ficaram responsáveis pela transformação do Pavilhão de Caça de Luís III no Palácio de Versalhes.

Em 1660, foi nomeado Primeiro Pintor Real, tornou-se diretor, em 1663, da Manufatura Real dos Gobelins (famosas tapeçarias francesas) e da Mobília Real e chanceler vitalício da Academia Real de Pintura e Escultura, que tinha fundado, em 1648, juntamente com outros onze pintores. Fundou ainda, em 1666, a Academia de França, em Roma, com o objetivo de formar e estimular o talento de jovens pintores e escultores. Depois, ocupou-se exclusivamente da decoração da nova residência real, o Palácio de Versalhes.

Realizou trabalhos de decoração e pintura na Escada dos Embaixadores, na Galeria dos Espelhos, nas salas da Paz e da Guerra e nos grandes apartamentos reais, constantemente inspirado na mitologia e na arte italiana e honrando sempre o Rei Sol - Luís XIV. Le Brun foi ainda o criador da Art Officiel, uma arte colocada ao serviço do poder e das grandes instituições.

Em 1683, com a morte de Jean-Baptiste Colbert, um dos protetores do artista, Le Brun foi substituído, nas suas funções de superintendente dos edifícios, das artes e das manufaturas, por Pierre Mignard, protegido do Marquês de Louvois. Em resultado desta substituição, o artista passou a produzir apenas quadros de temáticas religiosas e a ocupar-se do Palácio de Montmorency.

Como teórico, escreveu o tratado A Expressão das Paixões (1663), no qual analisou os diferentes estilos e géneros de pinturas, e Método para Aprender a Desenhar as Paixões (1698, edição póstuma), no qual descodificou, apoiando-se nas teorias de Nicolas Poussin, a expressão visual das paixões na pintura.

Quanto aos seus trabalhos, destacam-se ainda, para além dos acima mencionados, a decoração pictural da Galeria de Apolo (1663), no Louvre, e os quadros O Retrato Equestre do Chanceler Séguier (1655-1657), Alexandre e Porus (1673) e Adoração dos Pastores (1690), entre muitos outros. Charles Le Brun faleceu a 12 de fevereiro de 1690, em Paris. (Daqui)
 

sábado, 24 de dezembro de 2022

"Natal de ontem e de hoje" - Poema de Bastos Tigre


Charles Green (British watercolourist and illustrator, 1840–1898), Christmas comes but once a year!, from the 
 Pears' Annual, Christmas, 1896. (Christmas celebration, with servant carrying pudding to dining table.)


Natal de ontem e de hoje


Natal! Vocábulo sonoro,
Com ressonâncias de cristal!
Amo o Natal; amo e adoro
O doce nome de “Natal”.

Ouvi-lo é ter no ouvido, ecoando
A voz dos sinos, no arraial,
Alegremente repicando
A excelsitude do Natal!

Missa do galo. Espouca e brilha
O foguetório, a salva real…
Fulge o painel. Que maravilha!
Jesus nasceu: — Natal! Natal!

Ding-din! Ding-don! — repicam os sinos!
Vozes elevam-se em coral,
Desafinando ingénuos hinos
Em honra a Cristo e ao seu Natal.

Dança, presépios, pastorinhas
No pastoril de João de tal —
E, entre vizinhos e vizinhas,
Os namoricos de Natal.

Castanhas, nozes, rabanadas,
Do velho tom tradicional,
De fino açúcar polvilhadas
Tendo a doçura do Natal.

E da família o quadro lindo
Da vasta mesa patriarcal
E a avó velhinha, repartindo
O imenso bolo de Natal.

Mudou o Natal. Que há que não mude
Neste vaivém universal?
Foi-se a simpleza ingénua e rude
Das idas festas de Natal.

Hoje, entre as luzes da cidade
Cosmopolita e colossal
A luz da Light a noite invade
E nem se vê vir o Natal.

Há o reveillon, francês em nome,
Yankee no fundo comercial;
Faga-se quanto se consome
A preços próprios do Natal.

Em vez da viola e da sanfona,
Em tom menor, sentimental,
Uma “ortofónica” ortofona
Um feroz fox infernal.

Há nos hotéis e clubs chics
Festas de um tom convencional
Sem foguetório e sem repiques —
Que nem são festas de Natal!

Corre champagne, em vez do verde,
Do carrascão de Portugal.
(Sem o verdasco o que há de ser de
Ti, ó consoada de Natal).

E até há gaitas, serpentinas,
Como se fora um carnaval!
Vocês, rapazes e meninas,
Não têm ideia do Natal!

Chego a pensar que o próprio Cristo,
O de Belém, o do curral,
Lá do alto, olhando para isto,
Não reconhece o seu Natal.

E, então, fechando a azul esfera,
Se esconde além do último “astral”
E, por castigo, delibera
Não nascer mais pelo Natal.


Bastos Tigre
(1882-1957),
em Antologia poética, vol 2,
Rio de Janeiro, Francisco Alves: 1982.



Priscilla Pointer
 (American artist and illustrator, 1924), Christmas Wish


Deus na Terra... Eis o Natal!
Repicam sinos... Festanças...
Feriado nacional
no coração das crianças!


(J. G. de Araújo Jorge)


sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

"Loa" e "Natal" - Poemas de Miguel Torga


 
Ambrogio Bergognone (Italian painter of the Renaissance, c. 1470-1523),
The Virgin and Child with Saints, c.1490, London, National Gallery
 


LOA


É nesta mesma lareira,
E aquecido ao mesmo lume,
Que confesso a minha inveja
De mortal
Sem remissão
Por esse dom natural,
Ou divina condição,
De renascer cada ano,
Nu, inocente e humano
Como a fé te imaginou,
Menino Jesus igual
Ao do Natal
Que passou.

Miguel Torga, in 'Diário XI', 1969

 


Ambrogio Bergognone, The Virgin and Child, 1940,
London,
National Gallery
 

Natal



Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.


Miguel Torga, in 'Diário XII', 1974
 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

"Como quem num dia de Verão abre a porta de casa" - Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa


  Victor Westerholm (Finnish landscape painter, 1860-1919), Scene from Hirvensalo, 1903 
 


   Como quem num dia de Verão abre a porta de casa

 
Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...

Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?

Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo... 

s.d. 
 
Alberto Caeiro,O Guardador de Rebanhos”.
 In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. 
 (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) 
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 48.
 
 
Portrait of Victor Westerholm (Finnish landscape painter, 1860-1919), 1901
by Raffaello Gambogi (Italian painter, 1874-1943)


"If I could say it in words there would be no reason to paint."

Edward Hopper
 
 (American realist painter and printmaker, 1882-1967)
 
 
 
 
"Eu vou para a natureza para ser acalmado e curado, e para colocar meus pensamentos em ordem."

 
[John Burroughs (1837 - 1921) foi um naturalista norte-americano e ensaísta da natureza, ativo no movimento conservacionista  nos Estados Unidos. A primeira de suas coleções de ensaios foi Wake-Robin em 1871.] 
 
 
Victor Westerholm, Kymi River, 1902, (Landscape Art), Lappeenranta Art Museum
 

Naturalismo
 
Movimento estético-literário da segunda metade do século XIX, estreitamente relacionado com o Realismo, de que retoma a necessidade da observação objetiva da realidade e as preocupações socioculturais, acentuando, contudo, os seus pressupostos ideológicos e científicos. 
O Naturalismo relaciona-se intimamente com as transformações sociais e as novas correntes filosóficas e científicas do século XIX: o positivismo de Augusto Comte (1798-1857), teoria sociológica que defendia a necessidade da tomada de consciência das relações entre o indivíduo e a sociedade como condição para o progresso civilizacional; o determinismo de Hippolyte Taine (1828-1893), segundo o qual a obra era produto das influências da raça, do meio e do momento histórico; o experimentalismo de Claude Bernard (1813-1878). Estas doutrinas foram aplicadas à literatura pelo romancista francês Émile Zola (1840-1902), que expôs, na coletânea de artigos Le Roman expérimental (1880), a teoria do romance naturalista, concretizando-a nos vinte volumes da série Les Rougon-Macquart. Segundo Zola, o romance deveria explicar a decadência social mediante a demonstração de teses científicas.
A receção crítica da teoria naturalista de Zola fez-se em Portugal por intermédio de autores como Júlio Lourenço Pinto (1842-1907), José António dos Reis Dâmaso (1850-1895), António José da Silva Pinto (1848-1911) e Alexandre da Conceição (1842-1889). Esses, e outros como Teixeira de Queirós (1848-1919), autor das séries Comédia do Campo e Comédia Burguesa, Abel Botelho (1854-1917), criador do políptico Patologia Social, ou Carlos Malheiro Dias (1875-1941) tentariam a aplicação do Naturalismo ao conto e ao romance. Mais complexo é o caso de Eça de Queirós (1845-1900), que em 1871 profere a conferência "O Realismo como nova expressão da Arte", com claras influências da doutrina de Zola e sobretudo do determinismo de Taine, e a dado momento se aproxima do autor de Le Roman expérimental ao orientar o romance para uma atitude científica e objetiva, mas acaba por se demarcar do Realismo-Naturalismo, constituindo um caso único na nossa literatura. (Daqui)
 

domingo, 18 de dezembro de 2022

"A Lua dos Amantes" - Poema de Jorge Linhaça



Paul-Jacques-Aimé Baudry
(French painter, 1828 –1886), The Pearl and the Wave, 1862,
 Museo del Prado, Madrid, Spain
 


A Lua dos Amantes


Entre as pedras molhadas,
a lua foi testemunha:
das carícias trocadas,
do amor que te propunha.

As estrelas, qual mil fadas,
doce sinfonia compunham,
em notas de amor tocadas,

Tantas promessas trocadas,
a nada tu te opunhas,
não nos importava nada.

A lua foi testemunha...
Hoje a saudade... mais nada. 
 

Jorge Linhaça
,
Dramaturgo, poeta e escritor
(Nasceu em São Paulo, Brasil em 1961)



sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

"Repenso o mundo" - Poema de Wisława Szymborska

 

Henri-Edmond Cross (French painter, 1856–1910), Landscape with Stars, c. 1905-1908,
Watercolor on paper, 24,4 x 32 cm. Metropolitan Museum of Art, New York City
 


Repenso o mundo


Repenso o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
aos idiotas o riso,
aos tristes o pranto,
aos carecas o pente,
aos cães botas.

Eis um capítulo:
A Fala dos Bichos e das Plantas,
com um glossário próprio
para cada espécie.
Mesmo um simples bom-dia
trocado com um peixe,
a ti, ao peixe, a todos
na vida fortalece.

Essa há muito pressentida,
de súbito revelada,
improvisação da mata.
Essa épica das corujas!
Esses aforismos do ouriço
compostos quando imaginamos
que, ora, está só adormecido!

O tempo (capítulo dois)
tem direito de se meter
em tudo, coisa boa ou má.
Porém — ele que pulveriza montanhas
remove oceanos e está
presente na órbita das estrelas,
não terá o menor poder
sobre os amantes, tão nus
tão abraçados, com o coração alvoroçado
como um pardal na mão pousado.

A velhice é uma moral
só na vida de um marginal.
Ah, então todos são jovens!
O sofrimento (capítulo três)
não insulta o corpo.
A morte
chega com o sono.

E vais sonhar
que nem é preciso respirar,
que o silêncio sem ar
não é uma música má,
pequeno como uma fagulha,
a um toque te apagarás.

Morrer, só assim. Dor mais dolorosa
tiveste segurando nas mãos uma rosa
e terror maior sentiste ao som
de uma pétala caindo no chão.

O mundo, só assim. Só assim
viver. E morrer só esse tanto.
E todo o resto — é como Bach
tocado por um instante
num serrote.
 
 
Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien
São Paulo : Companhia das Letras, 2011
 
 
 Henri-Edmond Cross, Les cyprès à Cagnes, 1908, Huile sur toile, 81 x 100 cm,  
Musée d'Orsay, Paris
 
  
"Um homem pode fracassar muitas vezes, mas só é um fracassado quando começa a culpar outra pessoa."

(John Burroughs)
 
 
 Henri-Edmond Cross, L'Air du soir, c. 1893, Huile sur toile, 116 x 166 cm,