Os lábios da cor da rosa,
A voz um hino de amor!
Eu a vi, lânguida, e bela:
E ele a rever-se nela:
Ele colibri - ela flor.
Tinha a face reclinada
Sobre a débil mão nevada;
Era a flor à beira-rio.
A voz meiga, a voz fluente,
Era um arrulo cadente,
Era um vago murmúrio.
No langor dos olhos dela
Havia expressão tão bela,
Tão maga, tão sedutora,
Que eu mesmo julguei-a anjo,
Eloá, fada, ou arcanjo,
Ou nuvem núncia d'aurora.
Eu vi - o seio lhe arfava:
E ela... ela cismava,
Cismava no que lhe ouvia;
Não sei que frase era aquela:
Só ele falava a ela,
Só ela a frase entendia.
Eu tive tantos ciúmes!...
Teria dos próprios numes,
Se lhe falassem de amor.
Porque, querê-la - só eu.
Mas ela! - a outro ela deu
meigo riso encantador...
Ela esqueceu-se de mim
Por ele... por ele, enfim.
Maria Firmina dos Reis, in "Cantos à beira-mar",
Em 1847, é aprovada em concurso público para a Cadeira de Instrução Primária na vila de São José de Guimarães, no município de Viamão, situado no continente e separado da capital pela baía de São Marcos, conforme registam seus biógrafos Nascimento Morais Filho (1975) e Agenor Gomes (2022).
Segundo Morais Filho, ao se aposentar, no início da década de 1880, a autora funda, na localidade de Maçaricó, a primeira escola mista e gratuita do Maranhão e uma das primeiras do país. O feito causou grande repercussão na época e por isso foi a professora obrigada a suspender as atividades depois de dois anos e meio.
A professora foi presença constante na imprensa local, publicando poesia, ficção, crónicas e até enigmas e charadas. Segundo Zahidé Muzart (2000, p. 264), “Maria Firmina dos Reis colaborou assiduamente com vários jornais literários, tais como A Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense, O Domingo, O País, Pacotilha, O Federalista e outros”.
Além disso, teve participação relevante como cidadã e intelectual ao longo dos noventa e dois anos de uma vida dedicada a ler, escrever, pesquisar e ensinar. Atuou como folclorista, na recolha e preservação de textos da cultura e da literatura oral e também como compositora, sendo responsável, inclusive, pela composição de um hino em louvor à abolição da escravatura.
Firmina é autora de Úrsula, publicado em 1859, mas com circulação somente a partir do ano seguinte. Livro revolucionário para o seu tempo, figura como o primeiro romance abolicionista de autoria feminina da língua portuguesa; e, possivelmente, o primeiro romance publicado por uma mulher negra em toda a América Latina. A narrativa aborda o problema do tráfico negreiro e do regime como um todo a partir do ponto de vista do sujeito escravizado e transformado em "mercadoria humana". A autora traz para a nascente ficção brasileira a África como espaço de civilização e de liberdade. E denuncia os traficantes europeus como "bárbaros", contrapondo-se desta forma ao pensamento hegeliano voltado para justificar a colonização escravista como empreendimento civilizatório. E bem antes do "Navio negreiro" de Castro Alves, denuncia os maus tratos a que eram submetidos os escravizados nos "tumbeiros", verdadeiros túmulos para muitos que não resistiam.
Em 1861, a autora lança em formato de folhetim Gupeva, narrativa curta de temática indianista, publicada em capítulos na imprensa local, e com novas reedições ao longo da década de 1860.
Já seu volume de poemas Cantos à beira-mar, cuja primeira edição é de 1871, traz textos marcados por forte inquietação e por uma subjetividade feminina por vezes melancólica diante da realidade oitocentista marcada pelos ditames do patriarcado escravocrata e também representada como problema perante a sensibilidade da autora.
Defensora da abolição, em 1887 publica na imprensa o conto "A escrava", texto abolicionista empenhado em se inserir como peça retórica no debate então vivido no país em torno da abolição do regime servil.
Maria Firmina dos Reis faleceu em 1917, pobre e cega, no município de Guimarães. Infelizmente, muitos dos documentos de seu arquivo pessoal se perderam e até o momento não se tem notícia de nenhuma foto sua daquela época. A propósito, circula na internet retrato da escritora gaúcha Maria Benedita Borman, pseudónimo "Délia", como se fosse da autora maranhense. A imagem digital reproduzida nesta página foi elaborada a partir de retrato falado colhido por Nascimento Morais Filho, biógrafo da autora.
A partir de 2017, por ocasião do centenário da morte de Firmina, seus livros vêm sendo relançados: Úrsula, já com cerca de trinta reedições, algumas trazendo em apêndice o conto "A Escrava"; Gupeva, em sexta edição; além de Cantos à beira-mar, volume de poemas novamente disponível em publicação da Academia Ludovicence de Letras, organizada pela pesquisadora Dilercy Aragão Adler. (Daqui)
[The terrace and the view was found near Vejle in Denmark, now the site of Hotel Munkebjerg.]
"Os homens são como os astros; alguns geram sua própria luz, enquanto outros apenas refletem o brilho que recebem."
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