segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

 "A uma amiga" - Poema de Maria Firmina dos Reis


 
Harald Slott-Møller (Danish painter and ceramist, 1864–1937), Moonlight, s.d. Private collection.
 
 
 
 A uma amiga 

 
Eu a vi - gentil mimosa,
Os lábios da cor da rosa,
A voz um hino de amor!
Eu a vi, lânguida, e bela:
E ele a rever-se nela:
Ele colibri - ela flor.

Tinha a face reclinada
Sobre a débil mão nevada;
Era a flor à beira-rio.
A voz meiga, a voz fluente,
Era um arrulo cadente,
Era um vago murmúrio.

No langor dos olhos dela
Havia expressão tão bela,
Tão maga, tão sedutora,
Que eu mesmo julguei-a anjo,
Eloá, fada, ou arcanjo,
Ou nuvem núncia d'aurora.

Eu vi - o seio lhe arfava:
E ela... ela cismava,
Cismava no que lhe ouvia;
Não sei que frase era aquela:
Só ele falava a ela,
Só ela a frase entendia.

Eu tive tantos ciúmes!...
Teria dos próprios numes,
Se lhe falassem de amor.
Porque, querê-la - só eu.
Mas ela! - a outro ela deu
meigo riso encantador...
Ela esqueceu-se de mim
Por ele... por ele, enfim. 


Maria Firmina dos Reis
, in "Cantos à beira-mar",
São Luís do Maranhão, 1871
 
 
 
"Cantos à beira-mar" de Maria Firmina dos Reis
Cartola Editora - Edição: Dezembro/2021 (daqui)
 

"Cantos à beira-mar", publicado originalmente em 1871, é dedicado à memória da mãe de Maria Firmina dos Reis e conta com cinquenta e seis poesias, das quais o próprio título da obra indica os caminhos percorridos em muitas delas, como não poderia ser diferente. Sendo Guimarães uma cidade litorânea, onde Maria Firmina dos Reis passou grande parte de sua vida, o mar e a praia são presenças marcantes nas poesias, esta última transformada em lugar de beleza, meditação ou melancolia, como pode ser verificado nos poemas “Uma Tarde no Cumã”, “Nas Praias do Cumã”. “Cismar”, “Itaculumim”, “Meditação”, “Melancolia”, entre outros, nos quais o ambiente da praia, por vezes, aparece como o lugar propício para a reflexão em torno dos próprios sentimentos e anseios.

A desesperança com a vida, o sofrimento, o desejo da morte, os amores não correspondidos, entre outros temas semelhantes, aparecem em outros poemas. Em parte, isso pode ser fruto do próprio movimento literário romântico em vigência no Brasil, o qual Maria Firmina dos Reis observou temáticas, regras de composição e estilo, presentes tanto em sua produção poética quanto em prosa. Assim, não se pode desvincular a obra da escritora do seu período de atuação, pois estão de tal forma entrelaçados que o fundamento central das poesias encontra eco expressivo nas características do movimento romântico, em especial na fase do ultrarromantismo, de forte teor sentimental e espiritual. Alguns dos poemas que trazem essa face são “Amor”, “Desilusão”, “A dor, que não tem cura”, “Súplica” e “Confissão”.

A exaltação da terra e nacionalismo, bem como homenagens a pessoas ilustres, são também temas recorrentes, comprovando o interesse em manter teias de relações que a mantivessem no meio letrado, além de ser prática recorrente entre escritores do período. Alguns exemplos são os poemas “Minha terra”, oferecido a Francisco Sotero dos Reis, “Te-Deum”, oferecida ao poeta Gentil Homem, “Por ocasião da passagem de Huimatá”, dedicada ao poeta maranhense João Clímaco Lobato, entre outros.

Nesses e outros poemas sobressai, ainda, a escrita de textos de cunho nacionalista, nos quais elogia a província maranhense e a capital São Luís, como os cenários naturais, o passado de luta, a terna ligação com a própria terra e o receio em deixá-la, como nos poemas “O proscrito” e “Minha terra”, além dos textos dedicados aos homens que lutaram na Guerra do Paraguai (1864-1870): “Poesia”, “À recepção dos voluntários de Guimarães”, “Poesias” e “À partida dos voluntários da pátria do Maranhão”, “Poesia”, sobre os quais tece o elogio à resistência e almeja a preservação da memória dos que ali lutaram.

Em outros movimentos nessa mesma obra, Maria Firmina dos Reis usa da crítica velada contra a opressão patriarcal, denunciando o papel social destinado às mulheres no período, que as distanciava do ambiente público. A escritora maranhense subverte padrões estabelecidos, ao publicar seus textos em jornais e livros.

Neste período, como indica Constância Lima Duarte (2016), a participação na imprensa era pouco viável às mulheres, apesar da existência de jornais editados e destinados ao público feminino, alguns dedicados a reafirmar a cultura patriarcal, e outros permeados pela questão educacional e reflexões acerca do papel da mulher, afirmando um desejo de emancipação feminina em meio  a forças  contraditórias, ora intermediando  o  movimento  emancipatório,  ora  funcionando  como  obstáculos.

A ousadia de Maria Firmina dos Reis, ao tratar do tema da opressão feminina, demonstra a compreensão do contexto senhorial, bem como desnuda sua conceção sobre a sociedade do período em relação às mulheres, utilizando de uma “estratégia irónica”, por meio da qual se coloca em lugar subalterno para poder romper com o emudecimento imposto, lançando ao público seu livro de poesias e outras obras, como bem observa Juliano Carrupt do Nascimento (2007).

Alguns dos poemas que exprimem essa face crítica são “No álbum de uma amiga”, “À minha extremosa amiga D. Anna Francisca Cordeiro”, “Minha Alma”, “Confissão”, “Não quero amar mais ninguém”, este último tecendo significativa relação com poemas românticos que exaltavam o amor ideal, no entanto, subverte ao ser construído com um eu-lírico feminino afirmando não querer amores terrenos, que apenas trazem sofrimentos, assegurando sua satisfação com o amor idealizado.

Nessa obra sobressai, ainda, um poema com temática indianista, “Por ocasião da tomada de Villeta e ocupação de Assunção”, que confere à produção de Maria Firmina dos Reis mais um ponto de relação com as produções românticas nacionais, nesse poema é exaltado o caráter guerreiro e vitorioso dos indígenas. Essa produção tece diálogo com o conto Gupeva, publicado originalmente em 1861, no jornal Jardim das Maranhense, e republicado em 1863 e 1865, respetivamente nos jornais Porto Livre e Eco da Juventude. (Daqui)

Maria Firmina dos Reis, elaboração digital de Waniel Jorge Silva a partir das descrições
 colhidas por Nascimento Morais Filho (1975) (daqui)
 
 
Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís do Maranhão, em 11 de outubro de 1825, "filha natural" da escrava alforriada  Leonor Felippa dos Reis, tendo como avó a também escrava alforriada Engrácia Romana da Paixão e, como tio, o professor, gramático e filólogo Sotero dos Reis, pertencente ao ramo branco da família e com forte atuação nos círculos letrados da capital maranhense. 

Em 1847, é aprovada em concurso público para a Cadeira de Instrução Primária na vila de São José de Guimarães, no município de Viamão, situado no continente e separado da capital pela baía de São Marcos, conforme registam seus biógrafos Nascimento Morais Filho (1975) e Agenor Gomes (2022). 

Segundo Morais Filho, ao se aposentar, no início da década de 1880, a autora funda, na localidade de Maçaricó, a primeira escola mista e gratuita do Maranhão e uma das primeiras do país. O feito causou grande repercussão na época e por isso foi a professora obrigada a suspender as atividades depois de dois anos e meio.

A professora foi presença constante na imprensa local, publicando poesia, ficção, crónicas e até enigmas e charadas. Segundo Zahidé Muzart (2000, p. 264), “Maria Firmina dos Reis colaborou assiduamente com vários jornais literários, tais como A Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense, O Domingo, O País, Pacotilha, O Federalista e outros”.

Além disso, teve participação relevante como cidadã e intelectual ao longo dos noventa e dois anos de uma vida dedicada a ler, escrever, pesquisar e ensinar. Atuou como folclorista, na recolha e preservação de textos da cultura e da literatura oral e também como compositora, sendo responsável, inclusive, pela composição de um hino em louvor à abolição da escravatura.

Firmina é autora de Úrsula, publicado em 1859, mas com circulação somente a partir do ano seguinte. Livro revolucionário para o seu tempo, figura como o primeiro romance abolicionista de autoria feminina da língua portuguesa; e, possivelmente, o primeiro romance publicado por uma mulher negra em toda a América Latina. A narrativa aborda o problema do tráfico negreiro e do regime como um todo a partir do ponto de vista do sujeito escravizado e transformado em "mercadoria humana". A autora traz para a nascente ficção brasileira a África como espaço de civilização e de liberdade. E denuncia os traficantes europeus como "bárbaros", contrapondo-se desta forma ao pensamento hegeliano voltado para justificar a colonização escravista como empreendimento civilizatório. E bem antes do "Navio negreiro" de Castro Alves, denuncia os maus tratos a que eram submetidos os escravizados nos "tumbeiros", verdadeiros túmulos para muitos que não resistiam. 

Em 1861, a autora lança em formato de folhetim Gupeva, narrativa curta de temática indianista, publicada em capítulos na imprensa local, e com novas reedições ao longo da década de 1860. 

Já seu volume de poemas Cantos à beira-mar, cuja primeira edição é de 1871, traz textos marcados por forte inquietação e por uma subjetividade feminina por vezes melancólica diante da realidade oitocentista marcada pelos ditames do patriarcado escravocrata e também representada como problema perante a sensibilidade da autora.

Defensora da abolição, em 1887 publica na imprensa o conto "A escrava", texto abolicionista empenhado em se inserir como peça retórica no debate então vivido no país em torno da abolição do regime servil.

Maria Firmina dos Reis faleceu em 1917, pobre e cega, no município de Guimarães. Infelizmente, muitos dos documentos de seu arquivo pessoal se perderam e até o momento não se tem notícia de nenhuma foto sua daquela época. A propósito, circula na internet retrato da escritora gaúcha Maria Benedita Borman, pseudónimo "Délia", como se fosse da autora maranhense. A imagem digital reproduzida nesta página foi elaborada a partir de retrato falado colhido por Nascimento Morais Filho, biógrafo da autora.

A partir de 2017, por ocasião do centenário da morte de Firmina, seus livros vêm sendo relançados: Úrsula, já com cerca de trinta reedições, algumas trazendo em apêndice o conto "A Escrava"Gupeva, em sexta edição; além de Cantos à beira-mar, volume de poemas novamente disponível em publicação da Academia Ludovicence de Letras,  organizada pela pesquisadora Dilercy Aragão Adler. (Daqui)

 
Harald Slott-Møller, Two goldfinches on a terrace, 1914
[The terrace and the view was found near Vejle in Denmark, now the site of Hotel Munkebjerg.]
 

"Os homens são como os astros; alguns geram sua própria luz, enquanto outros apenas refletem o brilho que recebem."

 Obras completas: Crítica y arte - Volume 52 de Obras completas, Página 192, 
José Martí, ‎Gonzalo de Quesada y Miranda - Trópico, 1943


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