domingo, 13 de abril de 2025

"Écloga" - Poema de Nuno Júdice



Louise Abbéma
(French painter, sculptor, and designer of the Belle Époque,
1853-1927), Dans les fleurs, 1892, Musée intercommunal d’Etampes.


Écloga


Encontrei o segredo, a chave de vidro
das palavras que escrevo, e tenho medo.
Talvez nos campos imensos onde o lírio floresce,
na margem de rio que abriga, de manhã cedo,
os teus pés de ninfa, num engano de idade,
me tenhas visto à sombra de um rochedo,
e se os teus lábios, entreabertos num torpor
de romã, me tocaram num sonho bêbedo,
deles só lembro, imprecisos, fluxos
de incêndio numa hipótese de amor.


Nuno Júdice, in "A partilha dos mitos"
Na Regra do Jogo, 1982.


sábado, 12 de abril de 2025

"Pequeno cosmos" e "Química" - Poemas de José Saramago


 
William Bruce Ellis Ranken (British artist and Edwardian aesthete, 1881-1941),
 The Garden Door, 1926.
 

Pequeno cosmos
 

Ah, rosas, não, nem frutos, nem rebentos.
Horta e jardim sobejam nestes versos
De consonâncias velhas e bordões.

Navegante dum espaço que rodeio
(Noutra hora diria que infinito),
É por fome de frutos e de rosas
Que a frouxidão da pele ao osso chega.

Assim árido, e leve, me transformo:
Matéria combustível na caldeira
Que as estrelas ateiam onde passo.

Talvez, enfim, o aço apure e faça

Do espelho em que me veja e redefina.
 
in "Os Poemas Possíveis". 3ª ed., 
Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
 
 
William Bruce Ellis Ranken, Covent Garden, 1930.
 
 
Química 

 
Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende. 


José Saramago
,
in "Os Poemas Possíveis"
 

sexta-feira, 11 de abril de 2025

"Serenidade - Poema de Gilberto Mendonça Teles

 

Eugène Chigot
(French painter, 1860 - 1927), Jeune femme au bord de l'étang
(Young woman by a lake)
,  c. 1905.



Serenidade


Teus gestos são estranhos, mas a tua alma
tem a beleza ingénua das estrelas.
És bela como o sol, pela constância;
e simples como o luar, pela incerteza.
O bucolismo canta nos teus olhos
e ri no amanhecer dos teus cabelos.
Tudo em ti é tão simples e tão belo.
Tudo canta e sorri. És a alegria.


 Gilberto Mendonça Teles,
in "Hora aberta – Poemas reunidos".
4ª ed., aumentada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.  



Eugène Chigot, 'Le Clair de Lune’ (Moonlight), undated.
 

"A gente ama alguém que desconhece, casa com quem conhece e vive com uma pessoa irreconhecível. Às vezes, temos luas-de-mel, outras vezes, luas melosas. A maior parte do tempo, porém, são noites sem luar nenhum."

Mia Couto, O Outro Pé da Sereia, 2006

quinta-feira, 10 de abril de 2025

"Fuga" - Poema de Péricles Eugênio da Silva Ramos

 

Albert Chevallier Tayler (English painter, 1862–1925), Girl looking out to sea, 1918.
 
 

Fuga


Penso nos dias de outrora:
risos, domingos. E neles
teu perfil e teus castelos,
tuas histórias e viagens.

Não me quiseste. Partiste.
Pedra eu era. Desejavas
os rios que têm o céu
e fuga nas suas águas:
contudo não me soubeste.

Pedra sou. Porém minha alma
revoa e estruge nas vagas,
e meu canto é a voz do vento
que percorre os sete mares.

Não me soubeste, ó das asas!
Não tentaste conhecer-me,
ainda mesmo se acordada,
ainda mesmo se dormindo.

E eras bela. E tinhas flama.
E era o mar, sendo praia.
Não me soubeste. Partiste.
Mas te sonho. Agora e sempre.


Péricles Eugênio da Silva Ramos

 

quarta-feira, 9 de abril de 2025

"Em pequena" - Poema de Adília Lopes

 


Aldo Parmigiani (Italian painter, b. 1935) 



Em pequena


Em pequena
queria ter muitos bebés
e um cão
ser cançonetista
como a Madalena Iglésias
e ser freira
como a irmã Maria Antonieta
minha professora
por isso vi
umas oito vezes
a Música no coração
e bebi com a Victoria
um cocktail chamado
Mary Poppins
no bar La Filmo
a Julie Andrews
era para mim
a mulher mais bonita
do mundo.


Adília Lopes
,
in "Sete rios entre campos", 1999.



Pinturas de Aldo Parmigiani

Aldo Parmigiani

 
"A natureza e os livros pertencem aos olhos que os veem."
 
 
 

Aldo Parmigiani
 
 
"O amor está em toda a parte da natureza, como emoção, mas também como recompensa."
 
Ralph Waldo Emerson, in "Essays"
 

 Aldo Parmigiani
 
 
 "O talento sozinho não consegue fazer um escritor. Deve existir um homem por trás do livro." 

Ralph Waldo Emerson, in Representative Men, 1850.
 
 

Aldo Parmigiani
 

"A recompensa de uma coisa bem feita é tê-la feito."

Ralph Waldo Emerson, in "Essays"
 
 
 
Aldo Parmigiani
 

"Faço com os meus amigos o que faço com os meus livros. Guardo-os onde os posso encontrar,
 mas raramente os utilizo."

Ralph Waldo Emerson, in "Essays"
 
 

 Aldo Parmigiani
 
 
"Podemos viajar por todo o mundo em busca do que é belo, mas se já não o trouxermos connosco,
 nunca o encontraremos."
 
 Ralph Waldo Emerson, in "Essays"
 
 

terça-feira, 8 de abril de 2025

"Sereia" - Poema de Oscar Rosas



William Breakspeare (English artist, 1856-1914), "The Mermaid", 1890.



Sereia 

Dedicado a Emílio de Meneses

Reparem nesse bronze, veia a veia,
Cornucópia de seios e de escama,
Obra de um japonês, em que o Fusi-Iama
Adora o mar em enluarada areia.

Canta, e essa harmonia nos golpeia.
É duma triste e solitária gama,
Porém aumenta desse bronze a fama
O olhar amortecido da sereia.

Penso que sonha o polo e o nevoeiro,
E a pálida talhada de um crescente
Num céu de véus de noiva e jasmineiro.

E, como búzio a referver, ressoa
Numa langue preguiça de serpente,
Num êxtase nostálgico de leoa.


Oscar Rosas
(1864 - 1925), 
in "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou"
 de J.G. de Araujo Jorge, 1961.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

"Com a tua letra" - Poema de Fernando Assis Pacheco



Fritz Zuber-Buhler (Swiss painter, 1822–1896), The Poetess (La Poétesse), 1880. 
 
 

Com a tua letra


Fala-se de amor para falar de muitas coisas
que entretanto nos sucede.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.
 
 Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
 
 Quer dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não para.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
 Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
 
 Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
 Porque tudo se escreve com a tua letra. 


Fernando Assis Pacheco, in "A Musa Irregular"
(Antologia poética), 1991.
 

domingo, 6 de abril de 2025

"As crianças doentes" - Poema de A. M. Pires Cabral


 
Anna Ancher (Danish artist associated with the Skagen Painters, 1859–1935),
En vaccination, 1899, Skagens Museum.
 
 
As crianças doentes

I

As crianças doentes estão ao colo das mães
na sala de espera, amortecidas
como flores num vaso a que não se muda a água
há muito tempo
ou uma daquelas revistas cuja capa,
de tanto folheadas, se vai esfarrapando.

Soltam breves vagidos onde é possível ouvir
não só a dor, mas também
o quanto estão surpresas por estarem ali,
em vez de em sua casa ou num bosque.

II

As crianças doentes ao colo das mães
pesam mais:
trazem disseminado pelo corpo
o peso excedentário, intruso da doença.

As mães falam desse peso com as outras mães,
comparam entre si os pesos que carregam,
suspiram, acarinham, aconchegam a roupa
das crianças doentes.

III

Na verdade, as crianças doentes
não estão ao colo das mães.

Estão no rosto das mães, vincadas nele
como as mascarras de zarcão no rosto
de um palhaço de circo.

IV

Quando morrem, as crianças doentes
passam a chamar-se anjinhos e são dadas à terra
em pequenos ataúdes brancos.

Porque se acredita
que o branco se dissolve menos
na escuridão do novo ambiente,
conserva intacta a candura em que morreram.

(Porque morrem as crianças doentes?)


A. M. Pires Cabral, em Frentes de Fogo.
Lisboa: Tinta-da- China, 2019.
 

sábado, 5 de abril de 2025

"Infância" - Poema de Henriqueta Lisboa

 


Fanny Fleury
(French painter, 1846–1923), Sleeping Baby (Bébé dort), 1884.


Infância 


E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?

A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;

nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termómetro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.

A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!

A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...

A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
— batendo, batendo assombrado! 


Henriqueta Lisboa, in "Prisioneira da noite", 1941.


Fanny Fleury, The Lesson (La Leçon), 1880.


"Não é saudade, porque eu tenho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria..."

Clarice Lispector
, 'Perto do Coração Selvagem', 1943. 

terça-feira, 1 de abril de 2025

"Manhã de Abril" - Poema de Joaquim Namorado


Viggo Johansen (Danish painter and active member of the group of Skagen Painters, 1851-1935),
View of Tibirke Church, 1886.
 


Manhã de Abril


Olho o céu nas poças da rua
que a chuva de ontem deixou,
como pássaros verdes as primeiras folhas
empoleiram-se nos ramos enegrecidos a do inverno
e o sol entorna sobre o casario miserável
uma chuva de falso oiro.
Que raiva me dá...
Foi hoje a enterrar aquela miúda loura
que via brincar na rua
com as tranças apertadas nos laços vermelhos
— morressem antes os velhos
que da vida nada esperam,
já sem amor, já sem esperança,
roídos de chagas e da lepra dos dias.
que não morresse ninguém, valá!
mas ela...
levaram-lhe flores os outros meninos da rua,
iam contentes como para uma festa,
e a mãe atrás do caixão chorando,
e as folhas verdes
e as flores nos canteiros e nas janelas
como se florir fosse uma coisa natural e inevitável
e o velho mendigo cego estendendo a mão,
e a gente educada tirando o chapéu por hábito...

Que raiva me dá a Primavera sobre a dor do Mundo!

Joaquim Namorado
(1914–1986)


Viggo Johansen, Near Skagen Østerby after a Storm, 1885. Oil on canvas, 95 x 147 cm.
Skagens Museum, Skagen.
 

"Abril, frio e molhado, enche o celeiro e farta o gado."

(Provérbio)

sábado, 29 de março de 2025

"Declaração de amor em tempo de guerra" - Poema de Cecília Meireles


Alex Colville (Canadian painter and printmaker, 1920–2013), 
Soldier and Girl at Station, 1953.



Declaração de amor em tempo de guerra


Senhora, eu vos amarei numa alcova de seda,
entre mármores claros e altos ramos de rosas,
e cantarei por vós árias serenas
com luar e barcas, em finas águas melodiosas.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
andavam nos campos, agora.)

Para ver vossos olhos, acenderei as velas
que tornam suaves as pestanas e os diamantes.
Caminharão pelos meus dedos vossas pérolas,
— por minha alma, as areias destes límpidos instantes.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
começam a sofrer, agora.)

Estaremos tão sós, entre as compactas cortinas,
e tão graves serão nossos profundos espelhos
que poderei deixar as minhas lágrimas tranquilas
pelas colinas de cristal de vossos joelhos.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
estão sendo mortos, agora.)

Vós sois o meu cipreste, e a janela e a coluna
e a estátua que ficar, — com seu vestido de hera;
o pássaro a que um romano faz a última pergunta,
e a flor que vem na mão ressuscitada da primavera.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
apodrecem no campo, agora...)
 
 
Cecília Meireles
, in Obra Poética
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983.
 
 

sexta-feira, 28 de março de 2025

"Saudades não as quero" - Poema de Afonso Lopes Vieira


Henry Alexander (American painter from California, 1860–1894),
The Artist in his Studio.

Saudades não as quero


Bateram fui abrir era a saudade
vinha para falar-me a teu respeito
entrou com um sorriso de maldade
depois sentou-se à beira do meu leito
e quis que eu lhe contasse só a metade
das dores que trago dentro do meu peito.

Não mandes mais esta saudade
ouve os meus ais por caridade
ou eu então deixo esfriar esta paixão
amor podes mandar se for sincero
saudades isso não pois não as quero.

Bateram novamente era o ciúme
e eu mal me apercebi de que batera
trazia o mesmo ódio do costume
e todas as intrigas que lhe deram
e vinha sem um pranto ou um queixume
saber o que as saudades me fizeram.

Não mandes mais esta saudade,
ouve os meus ais por caridade,
ou eu então deixo esfriar esta paixão,
amor podes mandar se for sincero,
saudades isso não pois não as quero.


Afonso Lopes Vieira
, em "Antologia Poética",
Guimarães Editores - 1966.




Henry Alexander, In the Laboratory, ca. 1885–87.


"Tão fiel fui ao glorioso ofício, que perdi o sono e a saúde."


Dante Alighieri
, em 'Inferno'

 

quinta-feira, 27 de março de 2025

"Natureza morta" - Poema de Pagu (Patrícia Galvão)

 


Jan Davidsz de Heem (Dutch still life painter, 1606–1683/1684),
Vanitas Still life with Books, a Globe, a Skull, a Violin and a Fan, c. 1650.
Musée des Beaux-Arts de Rouen


Natureza morta 


Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados
Como os meus dedos, na mesma frase.
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!
Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo.
Os namorados passando, passeando,
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!

Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!
Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Se eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém...
Nem a presença dos corvos.


Pagu (Patrícia Rehder Galvão)
(Publicado com o pseudónimo Solange Sohl em 1948,
no Suplemento Literário do jornal Diário de São Paulo.)



Obras de arte de Jan Davidsz de Heem
(Natureza-morta)

Jan Davidsz de Heem, Still life with books and a lute, 1628, Rijksmuseum, Amsterdam.
 
 
Jan Davidsz de Heem, Vanitas still life with books, fruit and a flute, c. 1652.
Royal Museums of Fine Arts of Belgium
 
 
Jan Davidsz de Heem, A Table of Desserts, 1640, Musée du Louvre, Paris.
 
 
Jan Davidsz de Heem, Table, 1636 - 1650, Museo del Prado, Madrid.


Jan Davidsz de Heem, A Richly Laid Table with Parrots, c. 1650.


Jan Davidsz de Heem, Vase of Flowers, c. 1660. 
 

quarta-feira, 26 de março de 2025

"Minha Sombra" - Poema de Jorge de Lima



Édouard Vuillard
(French painter, decorative artist, and printmaker, 
1868–1940), Public Gardens - The two schoolboys, 1894, 
Royal Museums of Fine Arts of Belgium.
 

Minha Sombra


De manhã a minha sombra
com meu papagaio e o meu macaco
começam a me arremedar.

E quando eu saio
a minha sombra vai comigo
fazendo o que eu faço
seguindo os meus passos.

Depois é meio-dia.
E a minha sombra fica do tamanhinho
de quando eu era menino.

Depois é tardinha.
E a minha sombra tão comprida
brinca de pernas de pau.

Minha sombra, eu só queria
ter o humor que você tem,
ter a sua meninice,
ser igualzinho a você.

E de noite quando escrevo,
fazer como você faz,
como eu fazia em criança:

Minha sombra
você põe a sua mão
por baixo da minha mão,
vai cobrindo o rascunho dos meus poemas
sem saber ler e escrever.


Jorge de Lima
,
em 'Antologia Poética para a infância e a juventude',
 de Henriqueta Lisboa, Rio de Janeiro, 1961. 



Édouard Vuillard, The Garden of Vaucresson, 1920,
 Metropolitan Museum of Art, New York.


"O mundo é um belo livro, mas é pouco útil a quem não o sabe ler."

Carlo Goldoni
, "La Pamela", 1750. 
 
 

terça-feira, 25 de março de 2025

"Os países inexistentes" - Poema de Múcio Leão

 

Thomas Cole (English-born American artist and the founder of the Hudson River School 
art movement, 1801–1848), The Titan's Goblet, 1833,
 Metropolitan Museum of Art, New York.


Os países inexistentes


- Queres partir comigo para países muito distantes,
Para países que dormem,
Embalados por oceanos que ninguém conhece?

Oh! Vamos juntos! Vamos partir para esses meus mundos misteriosos!
Levar-te-ei a planícies brancas, cobertas de neve como as do Alaska.
Verás que há na altura um sol gelado, envolto na poeira nívea da neve.
E verás que um vento - um vento que uiva nos montes alvos -
Vem beijar teus cabelos cheirosos.

Levar-te-ei a montanhas encantadas, onde habitam dragões de olhos de fogo.
Verás que no céu as estrelas se desfazem,
Mandando raios doirados coroarem tua fronte serena.
Levar-te-ei às ilhas paradisíacas,
Que estão dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores cheias de sombras são feitas de humanas ternuras
E os pássaros que cantam têm uma voz límpida como violinos.

Levar-te-ei a esses mundos estranhos,
A esses mundos formosos que nunca ninguém viu.

E tu hás de repousar a cabeça no meu peito,
Deslumbrada pelos meus países inexistentes. 


Múcio Leão, in "Poesias", 1949.

segunda-feira, 24 de março de 2025

"Soneto do amor total" - Poema de Vinicius de Moraes


Franc-Lamy
(Peintre et graveur français, 1855 - 1919), Venice, 1911.



Soneto do amor total


Amo-te tanto, meu amor… não cante
O humano coração com mais verdade…
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.


Vinicius de Moraes
,
in 'O Operário em Construção'

domingo, 23 de março de 2025

"Como cortar uma romã" - Poema de Imtiaz Dharker


 
Henri Fantin-Latour (French painter and lithographer, 1836–1904), Still Life 
(Flowers, Fruits, Wineglass, and Tea Cup), 1865. 


Como cortar uma romã


“Nunca”, disse o meu pai,
“nunca cortes o coração
de uma romã. Vai chorar sangue.
Trata-a com delicadeza, com respeito.
Basta cortar a casca em quatro quartos.
É uma fruta mágica,
quando a abrires, está preparada
para que as joias caiam,
mais preciosas do que granadas,
mais lustrosas do que rubis,
como se iluminadas por dentro.
Cada joia contém uma semente viva.
Separa um cristal.
Segura-o para captar a luz.
Por dentro é um universo inteiro.
Nenhuma joia vulgar te pode dar isso”.
Já tentei fazer colares
de sementes de romã.
O sumo de um carmesim brilhante jorrou
e manchou os meus dedos, depois a minha boca.
Não me importei. O sumo tinha o gosto de jardins
que nunca tinha visto, a volúpia
da murta, do limão, do jasmim,
vivo com asas de papagaio.
A romã recordou-me
que em algum lugar tive outra casa.


Imtiaz Dharker
Tradução de Jorge de Sousa Braga
 

sábado, 22 de março de 2025

"Renovo" - Poema de Stéphane Mallarmé


Viggo Langer (Danish painter, 1860-1942), A Forest in Springtime, 1925.



Renovo


Doentia, a primavera expulsou tristemente
O inverno, a estação da arte calma, o lúcido
Inverno, e este meu ser que um sangue morno inunda
De impotência se estira em um bocejo lento.

O meu crânio amolece em crepúsculos brancos
Sob o ferro em tenaz, como um túmulo antigo,
E eu, triste, eis-me a errar pelos campos seguindo
Um sonho belo e vago, entre a seiva estuante,

Depois cedo ao odor das árvores, cansado,
Com a face a cavar uma fossa ao meu sonho,
E mordendo os torrões onde nascem lilases,

Aguardo, a abismar-me, o meu tédio a evolar-se...
- Entretanto o Azul, sobre a sebe e o alvor,
Ri das aves em flor ao sol a chilrear. 


Stéphane Mallarmé, em "Poesias". 
Tradução, prefácio e notas de José Augusto Seabra
Lisboa: Assirio & Alvim, 2005. 
 

 
Viggo Langer, Springtime on a Country Lane, 1917.


Mallarmé ou Valéry


Fiz uma charada:
Não sabia que isto é hoje
A poesia pura.


Afrânio Peixoto, Miçangas: poesia e folclore.
São Paulo: Ed. Nacional, 1931.


sexta-feira, 21 de março de 2025

"Estou vivo e escrevo sol" - Poema de António Ramos Rosa


Real Bordalo (Artista plástico português, 1925 - 2017), "O eléctrico de Galamares", Sintra, 1997.
 (Elétricos de Sintra



Estou vivo e escrevo sol 

ao Ruy Belo

Escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no ato de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objetos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde


António Ramos Rosa
,
in "Estou Vivo e Escrevo Sol", 1966
 

quinta-feira, 20 de março de 2025

"Na minha rua há um menininho doente" - Poema de Mário Quintana

 


Joseph Clark (English painter, 1834-1926),The Sick Boy 
[The Doctor's Visit], c. 1857.
 
 
Menininho doente

 
Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola…

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente…
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente…


Mário Quintana
in A Rua dos Cataventos, 1940.



Joseph Clark, Home from the War, 1901.


 Pai
 
 
Pai,
vens com os olhos cansados,
os dedos gretados,
os pés doridos,
os sonhos moídos.
Onde colheste o sorriso
que me dás
como uma flor?
 
in Poemas da Mentira e da Verdade.
Livros Horizonte