segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Dois poemas do homem e sua escolha - Moacyr Félix


Alessandro Pomi (Italian Impressionist painter, 1890–1976), "Cenacolo", 1931 (Immagini del silenzio)
 
 

Dois poemas do homem e sua escolha 

"Revenir serait une chute écrasante."
Paul Éluard
I

Se em cada porto, longe, o verde alfombra
uma esperança, uma salgada brisa
para os pesados barcos sobre a sombra
toda feita de nadas, imprecisa
(mas devorando o peixe e o ar e o homem),
alastro as rubras aves do incorpóreo
pelo dorso desnudo de uma tarde
(que é esta parte de mim que eu vou queimando)
e insisto em que eles partam, vou deixando-os
acompanhados desta dor acesa
levar o aviso dos meus olhos, mar
e mar afora ... Mas eu fico. E finco
na sombra irreversivelmente minha
a permanência - ciclo e madureza
dos troncos regravados pela chuva,
dos troncos que se cumprem sempre os mesmos,
imóveis, simplesmente se cumprindo
sob um pórtico de nuvens giratórias...

II

Destino. Que é o destino? Que fazer
contra estas sombras íntimas, tão minhas
como o tecido esquivo de mim próprio
preso em meus ossos, latejando um ser
de asas de sal mordendo um chão de ópio?
Ah, destino, oxalá não haja enganos
quando chegar nas pontas dessa teia
de gastos gestos lentos costurados
com o arame triste desses muitos anos!
Quando parar, no tempo, esta alma cheia
de escolhas acabadas, rosa quieta
a desmanchar-se em desenhados ventos,
ah, vida, não me vença a noite alerta
atrás do abismo
e que os abismos incendeia:
deixa eu colher no rosto um rosto certo
do tempo irreversível, som de areia
que já foi casa ou ponte, e não deserto ...


do livro "O pão e o Vinho", 1959.


Alessandro Pomi (Italian Impressionist painter, 1890–1976), "Amici"

"Todo o homem que é um homem a sério tem de aprender a ficar sozinho no meio de todos, a pensar sozinho por todos - e, se necessário, contra todos." 

Romain Rolland, em Clérambault (novel), 1920




Romain Rolland, 1915

Romain Rolland foi um escritor francês, nascido a 29 de janeiro de 1866, em Clamency, e falecido a 30 de dezembro de 1944, em Vézelay, vítima de tuberculose. Foi laureado com o Prémio Nobel em 1915.
Doutorou-se em Arte em 1895, foi professor de História da Arte na École Normale de Paris e professor de História da Música na Sorbonne. Para além da sua atividade docente, foi um reconhecido crítico de música. Estreou-se na escrita em 1897 com a peça Saint-Louis, que, juntamente com Aërt (1898) e Le Triomphe de la Raison (1899), fez parte da trilogia Les Tragedies de la Foi (1909). Em 1910 retirou-se do ensino para se dedicar inteiramente à escrita.
Na sua obra concilia o idealismo patriótico com um internacionalismo humanista. Escreveu peças de teatro, biografias (Vie de Beethoven, 1903; Mahatma Ganghi, 1924), um manifesto pacifista (Au-dessus de la mêlée, 1915) e dois ciclos romanescos: Jean-Christophe (10 vols., 1904-1912), "roman-fleuve" (segundo as palavras do autor) consagrado a um músico genial, e L'Âme enchantée (7 vols., 1922-1934). Em 1923, fundou a revista Europe. (Daqui)

"Uma avó" - Poema de Stella Leonardos


Ferdinand Georg Waldmüller (Austrian painter and writer, 1793–1865)
Grandmother with three grandchildren, 1854
 
 
 
Uma avó


És a saga de ternura
Das cantigas de ninar.
Sugestão de iluminura
Nas histórias de encantar.
Clarão de candeia pura
Sobre o livro de rezar.

Fada boa envelhecida.
Tecedeira de ilusão.
Esperança comovida.
Doce crença de cristão.
Duas vezes mãe na vida.
Duas vezes devoção.

Stella Leonardos

 

Stella Leonardos, na revista “Fon-Fon”, 1943

Poeta, escritora, tradutora, dramaturga, Stella Leonardos deixou uma obra extensa, traduzida em vários idiomas, notável pela erudição e sensibilidade.

Stella Leonardos da Silva Lima (Rio de Janeiro, 1923 – 2019) nasceu no bairro da Gávea, com escritores e intelectuais entre seus antepassados próximos. Começou a escrever poemas ainda criança e rascunhou o primeiro romance nos cadernos escolares. Na adolescência estudou francês, inglês e a língua tupi, o que a aproximou dos estudos de história e cultura brasileiras que já a fascinavam e que ela viria a desenvolver em sua obra. Publicou seu primeiro poema na revista “Fon-Fon” e, em 1940, um livro, também de poesia, “Passos na Areia”. No ano seguinte publicou “E Assim se Formou a Nossa Raça”(aqui), onde recontava lendas brasileiras em versos decassílabos.

Entre os anos 1943 e 1945, Stella Leonardos participou de um grupo de teatro amador e viu ser encenada sua peça “Palmares” pelo grupo Teatro do Estudante, com a colaboração do Teatro Experimental do Negro, dirigido por Abdias do Nascimento. Em 1945 casou-se com o norte-americano, de origem latina, Alejandro Cabassa, com quem viveu por algum tempo no México e nos Estados Unidos. Lá participou de conferências literárias e culturais, representando o Brasil, e fez uma pós-graduação em Línguas Neolatinas, complementando o curso que concluíra na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A produção da autora inclui romances, peças teatrais para crianças e adultos, ensaios, adaptações, traduções e sobretudo poesia, que os estudiosos consideram vinculada à terceira geração dos modernistas.  Ganhou inúmeros prémios, vários dos quais atribuídos pela Academia Brasileira de Letras. Entre eles, o Olavo Bilac, em 1957, pela trilogia de livros “Poesia em Três Tempos” (aqui).

Uma parte importante da obra de Stella Leonardos foi por ela denominada “Projeto Brasil”. Trata-se da tentativa de retratar os mitos, a cultura e a história do Brasil por meio de poemas longos, reunidos em livros que ela denominava “romanceiros” e “cancioneiros”, aproximando-os das obras medievais de bardos e rapsodos. Entre outras obras do projeto estão o “Cancioneiro de São Luís” (1981), dedicado à capital maranhense, o “Romanceiro da Abolição” (1986), que narra a saga dos africanos escravizados em terras brasileiras, e “Rapsódia Sergipana” (1995), em que a autora faz sua obra dialogar com uma carta autobiográfica do folclorista Sílvio Romero, assim criando uma saborosa intertextualidade. O mesmo recurso já fora notado por Nelly Novaes Coelho, duas décadas antes, ao analisar “Amanhecência”, livro em que Stella Leonardos começa por delinear as raízes líricas, ancestrais, da língua portuguesa para depois abordar o universo poético dos autores brasileiros, chegando aos contemporâneos.

Stella Leonardos era membro do Pen Club e da Academia Carioca de Letras. Conviveu com escritores de várias gerações, muitos dos quais afirmaram ter sido incentivados por ela no início de suas carreiras literárias. Hoje a maior parte de seus livros está fora de edição, mas vale a pena garimpar os “sebos” em busca de sua poesia e das histórias que ela soube tão bem contar. (Daqui)

 

domingo, 30 de outubro de 2022

"Um avô" - Poema de Stella Leonardos



Edward Thomson Davis
(British genre painter, 1833-1867), Kissing grandpa, 1860



Um avô


Meu velho avô de alma jovem,
Inda hoje me comovem
As histórias que contavas.
Punhas nelas tanta vida,
Tanta força colorida,
Que tu mesmo as incarnavas.
Nos contos dos bons gigantes.
No Brasil dos bandeirantes.
Na Grécia cheia de glória.
Só não contaste as façanhas
Que tiveste. As lutas ganhas
E as perdidas com vitória.
E nem grego ou brasileiro
Foi mais esteta e pioneiro
Do que tu quando sonhaste.
Meu velho avô de alma jovem!
Mais que as outras me comovem
As histórias que calaste. 


 
 
Adolf Eberle (German, 1843-1914), The natural history lesson


"A memória dos nossos antepassados leva-nos à imitação da fé. É verdade, às vezes a velhice é um pouco desagradável, devido às doenças que comporta. Mas a sabedoria dos nossos avós é a herança que nós devemos receber. Um povo que não preserva os avós, que não respeita os avós, não tem futuro porque perdeu a memória."

(Discurso do Papa Francisco em novembro de 2013) (daqui)

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

"De um sonho" - Poema de Armando Freitas Filho


Albert Edelfelt (Finnish-Swedish painter, 1854-1905), "Boys Playing Upon the Shore", 1884,
 Ateneu Art Museum: Finnish National Gallery
 

De um sonho


A areia retida nas mãos em concha
vaza, e inicia a ampulheta
preenchendo as formas das letras
e de algumas figuras:
a do A surge consistente
seguida do molde do rosto de uma criança
dentro da bacia oval e húmida que as mãos
escavaram, à beira da baía de igual formato
no intervalo de uma onda mais forte e outra.
O avanço do mar acaba apagando
a construção na praia, mas a memória
a reescreve com o mesmo espírito, método
e redundância, nas linhas da maré.


Armando Freitas Filho
, em "Dever" (Suíte - 1ª parte).
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

 

"Dever", 2013. Editora: Companhia das Letras
 

Armando Freitas Filho estreou em livro em 1963. Com "Dever" (2013), comemora 50 anos de carreira e deixa claro por que é um dos maiores poetas em atividade no país.
Na primeira parte, "Suíte", o autor se detém em "casas, roupas, móveis etc.", objetos do quotidiano que a princípio não teriam eco poético, caso não fossem, como afirma o autor, "dispostos de tal forma que sirvam para fins estéticos".
A segunda, "Anexo", já está na rua, é "jornalística", mas sem abrir mão do transfigurador trabalho literário, dando conta dos eventos de antes e de agora, que atravessaram o poeta.
A terceira, "Numeral", que desde 2003 é a coda dos livros de Armando, continua a passar em revista sua poética, sempre sujeita a retificações futuras.
É digna de nota sua capacidade de mesclar poemas íntimos, sobre a vida amorosa e familiar, a poemas que conversam com o noticiário contemporâneo, como o massacre da Candelária e o goleiro Bruno, e ainda dialogar com a novíssima poesia brasileira, como no poema feito a partir do último livro de Angélica Freitas, Um útero é do tamanho de um punho.
Num dos poemas do livro, o autor traça uma genealogia breve da literatura brasileira, propondo um elo entre Machado de Assis, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Candido e João Cabral de Melo Neto.
Armando Freitas Filho é sem dúvida um herdeiro dessa linha mestra da literatura brasileira.
(Daqui)

 
Albert Edelfelt, Shipbuilders, 1886, Private collection
 
 

A Tempestade do Destino


"Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos noutra direção. Mas então, a tempestade também muda de direção e o segue. Você muda mais uma vez seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha. As mudanças se repetem muitas e muitas vezes, como num balé macabro que se dança com a deusa da morte antes do alvorecer. Isso acontece porque a tempestade não é algo independente, vindo de um local distante. A tempestade é você mesmo. Algo que existe em seu íntimo. Portanto, o único recurso que lhe resta é se conformar e corajosamente pôr um pé dentro dela, tapar olhos e ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham de areia e atravessá-la passo a passo até emergir do outro lado. É muito provável que lá dentro não haja sol, nem lua, nem norte e, em determinados momentos, nem hora certa. O que há são apenas grãos de areia finos e brancos como osso moído dançando vertiginosamente no espaço. Imagine uma tempestade de areia desse jeito. E você vai atravessá-la, claro.
Falo da tempestade. Dessa tempestade violenta, metafísica e simbólica. Metafísica e simbólica, mas ao mesmo tempo cortante como mil navalhas, ela rasga a carne sem piedade. Muita gente verteu sangue dentro dela, e você mesmo verterá o seu. Sangue rubro e morno. E você vai apará-lo com suas próprias mãos em concha. O seu sangue e também o de outras pessoas.
E, quando a tempestade passar, na certa lhe será difícil entender como conseguiu atravessá-la e ainda sobreviver. Aliás, nem saberá com certeza se ela realmente passou. Uma coisa porém é certa:
Ao emergir do outro lado da tempestade, você já não será o mesmo de quando nela entrou.
Exatamente, esse é o sentido da tempestade de areia…"

Haruki Murakami, do livro Kafka à beira-mar”.
Tradução: Leiko Gotoda

 

"Kafka à beira-mar", Editora Alfaguara
Edição brasileira (2008) 
 
 
"Kafka à beira-mar" é um dos romances mais ambiciosos do escritor japonês Haruki Murakami, e uma das mais surpreendentes obras da literatura contemporânea. Centrado na jornada de dois personagens, é um livro imaginativo, com referências que vão do mundo pop japonês às tragédias gregas. Kafka Tamura é um solitário menino de quinze anos que decide fugir da casa do pai para escapar de uma terrível profecia, além de tentar encontrar a mãe e a irmã, que partiram quando ele ainda era criança. Leva poucos pertences numa mochila e não sabe nem ao menos que rumo seguir. Sua rota de fuga irá se cruzar, inevitavelmente, com a de Satoru Nakata, um homem idoso que, após passar por um trauma inexplicável na infância, adquiriu estranhos poderes sobrenaturais. A odisseia desses personagens, tão misteriosa para eles quanto para nós, será pontilhada por provações e descobertas, numa das mais surpreendentes obras da literatura dos últimos anos. (Daqui)
 

terça-feira, 25 de outubro de 2022

"Mãe" - Poema de Sérgio Capparelli


 
João Marques de Oliveira (Porto, 1853-1927), Menino com arco, 1885
 
 

Mãe


De patins, de bicicleta,
de carro, moto, avião
nas asas da borboleta
e nos olhos do gavião
de barco, de velocípedes
a cavalo num trovão
nas cores do arco-íris
no rugido de um leão
na graça de um golfinho
e no germinar do grão
teu nome eu trago, mãe,
na palma da minha mão 
 
ed. Vera Aguiar (Coord.), Porto Alegre,
Editora Projeto
 

De Vera Aguiar, Simone Assumpção, Sissa Jacoby.
 Il. Laura Castilhos. Porto Alegre: Projeto, 1995. 128p 
 

"Poesia fora da estante" é uma antologia de poemas de 30 autores selecionados criteriosamente para dar às crianças uma boa oportunidade de convívio com textos em versos. Os autores estão tanto entre aqueles que produziram deliberadamente para crianças como entre aqueles que, tendo produzido literatura para adultos, podem ser lidos pelas crianças com prazer e encantamento, seja pela temática seja pela estruturação linguística. São representantes de épocas e de correntes estéticas diferentes, mas todos têm tradição e reconhecimento público na nossa história literária.

Essa coletânea é o resultado de um trabalho cuidadoso de análise e seleção entre as milhares de possibilidades que oferecem as obras de: Guilherme de Almeida, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Walmir Ayala, Ronald Azeredo, Elza Beatriz, Tatiana Belinky, Mario da Silva Brito, Alcides Buss, Dilan Camargo, Milton Camargo, Haroldo de Campos, Sérgio Caparelli, Maria Dinorah, Millor Fernandes, Ferreira Gullar, Paulo Leminski, Elias José, Jorge de Lima, Henriqueta Lisboa, Vinicius de Moraes, Mauro Mota, Sidônio Muralha, Roseana Murray, Libério Neves, José Paulo Paes, Mário Quintana e Gilberto Mendonça Teles. Há também versos anônimos que pertencem à tradição popular, ao folclore.

Os poemas foram escolhidos com o objetivo de provocar um convívio lúdico com o texto e, ao mesmo tempo, oferecer formação estética e cultural, desenvolvendo o gosto pelo texto de qualidade. Vão desde a quadrinha bem humorada, às reflexões filosóficas e à preocupação formal, como a poesia concreta que utiliza o espaço gráfico como elemento visual da composição.

Estão agrupados em subconjuntos que simultaneamente oferecem uma perspetiva dos recursos estruturais e composicionais agenciados e uma coerência temática. Esses agrupamentos compõem jogos polissémicos e novas possibilidades de leitura, enquanto procuram mostrar que: a poesia está em toda parte; as palavras são elementos de construção; a poesia é uma forma de jogo que dá prazer e alegria; os poemas falam da vida, das coisas, dos bichos e das emoções; e que a poesia é um produto duradouro, que pertence ao povo e que atravessa o espaço e o tempo.

Há uma preocupação em organizar visualmente a página de forma acessível aos leitores iniciantes, embora a fonte escolhida para os títulos possa causar um certo desconforto inicial. A programação gráfica em duas cores (azul colonial e amarelo ocre) é esteticamente bem solucionada. As ilustrações não interferem e lembram pequenas iluminuras, selos, vinhetas delicadas que alegram e dão movimento ao conjunto.

Embora a produção cultural literária no Brasil já tenha tentado dirigir ao público infantil um acervo considerável de textos poéticos, uma iniciativa dessa natureza, com caráter de coletânea moderna, ainda não tinha vindo a lume. É uma oportunidade valiosa de ter acesso a um corpus representativo e bem organizado tanto para o trabalho na escola, como para a leitura no lar. É importante que a criança não perca sua afinidade natural com a musicalidade da linguagem, tão presente nos primeiros anos, e continue a ter contacto contínuo e permanente com a linguagem poética. A leitura, a audição, a declamação de versos desenvolve a sensibilidade estética, as habilidades linguísticas e a competência para lidar com o simbólico.

Os organizadores são pesquisadores do Rio Grande do Sul, que obtiveram apoio institucional para realizar o trabalho. Têm tradição no trabalho universitário e também nas atividades não propriamente académicas com o estímulo à leitura. (Daqui)


João Marques de Oliveira, Rapaz, 1922, Coleção particular

[Grande pintor e animador da vida artística portuguesa, nascido em 1853 e falecido em 1927, João Marques de Oliveira, foi, juntamente com Silva Porto, um dos mais importantes nomes do naturalismo português. Trouxe para a pintura nacional uma pujança e uma frescura de há muito desaparecida. Escolhia como temas preferenciais as paisagens campestres nortenhas, onde o homem do Norte é amplamente retratado. Foi um dos principais responsáveis pelo aparecimento das revistas Arte Portuguesa, no Porto, e Crónica Ilustrada, em Lisboa.] (daqui)
 

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

"Deus escreve direito" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


 
Alessandro Pomi (Italian impressionist painter, 1890–1976),
Allo specchio (In the mirror), 1960
 

Deus escreve direito



Deus escreve direito por linhas tortas
E a vida não vive em linha reta
Por isso em cada célula do homem estão inscritas
A cor dos olhos e a argúcia do olhar
O desenho dos ossos e o contorno da boca
Por isso te olhas ao espelho:
E no espelho te buscas para te reconhecer
Porém em cada célula desde o início
Foi inscrito o signo veemente da tua liberdade
Pois foste criado e tens de ser real
Por isso não percas nunca teu fervor mais austero
Tua exigência de ti e por entre
Espelhos deformantes e desastres e desvios
Nem um momento só podes perder
A linha musical do encantamento
Que é teu sol, tua luz, teu alimento.
 

Sophia de Mello Breyner Andresen,
do livro "O Búzio de Cós e outros Poemas" (1997)
Editorial Caminho, Lisboa


Alessandro Pomi (Italian impressionist painter, 1890–1976)


Instante

 
Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio.


Sophia de Mello Breyner Andresen,
Antologia (1975). Círculo de Poesia (2ª. edição).
Lisboa: Moraes Editores
 

domingo, 23 de outubro de 2022

"É inútil querer parar o Homem" - Poema de Moacyr Félix

 
Gustave Courbet (French painter, 1819-1877), The Stone Breakers, 1849. 
(Les Casseurs de pierres - Reproduction colorisée du tableau détruit.)
The painting was destroyed during World War II.
 


É inútil querer parar o Homem
 
 
 É inútil querer parar o Homem,
o que transforma a pedra em piso,
o piso em casa e a casa em fonte
de novas músicas da carne
sob as velocidades da luz e da sombra.
É inútil querer parar o Homem
a colher sempre um pouco de si próprio
no mistério da vida a cavalgar
os cavalos aéreos da semântica
sob uma indeferida eternidade.
É inútil querer parar o Homem
e o impulso que o transforma sempre
na pátria sem fim do ato livre
que arranca a vida e o tempo e as coisas
do espelho imóvel dos conceitos.
Ah, que mistério maior é este
que liga a liberdade e o homem
e une o homem a outros homens
como o curso de um rio ao mar!
(quando a noite é una e indivisível,
nos olhos da mulher que eu amo
acende-se o deus deste segredo
e uma sombra só nos transporta
ao fundo sem nome da vida.)

É inútil querer parar o Homem.
Do que morre fica o gesto alto
a ser o germe de outro gesto
que ainda nem vemos no tempo.
Isto as crianças nos lembram
quando rodam em nossas portas
os ossos do dia que foi nosso
e agora são os eixos do pedalar
nas bicicletas com que os deuses
as vão levando para outros dias
do acaso, do desejo e do fazer
em que não seremos mais, eternamente.
É inútil querer parar o Homem
e o seu sonho a dar longas voltas
ou a inventar estradas no cárcere,
o seu sonho mais essencial
a destruir e a enferrujar
metais de qualquer ditadura.
É inútil querer parar o Homem
e o seu sonho, o mais de flor,
de apagar dos lábios da terra
o ricto do medo que estica
no céu de aço a bomba atómica;
o seu sonho, que é o seu movimento
onde a razão dança mais bela,
de ver no armário dos museus
o manual oco e sem asas
que aprisiona o corpo e o sexo
em desrazões dadas na infância
e os livros de Deve & Haver
dos poderosos de Manhattan
comerciando Deus e o mundo.

É inútil querer parar o Homem
e o seu sonho de enterrar
sob o verde passo de uma história livre
os dogmas do stalinismo
grudado como esparadrapo
sobra a boca múltipla da vida
(e a subdesenvolvida farda
dos tiranos que bebem uísque
pago com o sangue de sua pátria).
É inútil querer parar o Homem:
em tudo que de amor cantar
o seu sonho caminhará
a encaminhá-lo na direção dele próprio
inteirado quando historicamente liberto
do económico em que ora o algemam.
É inútil querer parar o Homem,
o que transforma a pedra em piso,
o piso em casa e a casa em fonte
de novas músicas de carne.
A andar em formas de palavras
sob os arvoredos da vida
o sonho do Homem caminhará
do pensamento para as mãos
e das mãos para o pensamento,
noite e dia caminhará.
até tornar as mãos em pássaros
livres, inteiramente livres, para amar
o azul ou as várias almas do céu
dentro do Homem que se movimenta
na liberdade, no amor e no desejo
em que a si próprio inventa.  
 
 
in 'Canto para as Transformações do Homem', 1964
 
 

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

"A noite é muito escura" - Poema de Alberto Caeiro



Jean Dubuffet (French, 1901–1985), Façades d’immeubles (Apartment Houses, Paris)July 1946. 
Oil with sand and charcoal on canvas. The Metropolitan Museum of Art.
 


A noite é muito escura 
 
 
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.

Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só veio aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir? 
 
8-11-1915

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
(Heterónimo de  Fernando Pessoa)


Jean Dubuffet, Dramatisation, January 12, 1978


Arte Bruta

A expressão Art Brut (Arte Bruta) foi criada pelo pintor francês Jean Dubuffet (1901-1985) em 1947, com o objetivo de caracterizar o trabalho produzido fora do sistema tradicional e profissional da arte (pelo que é também conhecido por Outsider art), que o artista considerava mais autêntico e verdadeiro que o dos artistas eruditos. Desta forma, o conceito de Arte Bruta pretendia englobar produções muito diversificadas realizadas por crianças, por doentes mentais e por criminosos, que apresentavam em comum um carácter espontâneo e imaginativo. Englobava também algumas realizações de carácter público e coletivo, como o graffiti.
Em novembro de 1947, Dubuffet apresentou pela primeira vez ao público a sua coleção de obras de Arte Bruta na galeria René Drouin, em Paris. Em junho do ano seguinte, foi constituída a Companhie de l'Art Brut (Companhia de Arte Bruta) que assumia como função principal a valorização, o incremento e a divulgação destes trabalhos. A esta associação juntam-se vários artistas, críticos de arte ou escritores como André Breton, Jean Paulhan e Michel Tapé.
Mais tarde, em 1967, a coleção de Arte Bruta foi objeto de uma grande mostra organizada pelo Museu de Artes Decorativas de Paris e, em partir de 1976, foi transferida para Lausanne, para o museu de Arte Bruta.
Os Cahiers de l'Art Brut, publicados desde 1964, constituíram o veículo de divulgação de trabalhos teóricos e artísticos de muitos autores, de entre os quais se destacam Joseph Crépin e Augustin Lesage. (Daqui)

 
Jean Dubuffet, Les commentaires, May 24, 1978

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

"Recordação" - Poema de Rainer Maria Rilke


 


Recordação 


E tu esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.

Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.

E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou. 


Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens" 
Tradução de
Maria João Costa Pereira
 
 
Helmuth Westhoff (German, 1891–1977), Portrait of Rilke, 1901


Rainer Maria Rilke, escritor modernista alemão, nasceu em 1875, em Praga, e faleceu em 1926, no sanatório de Valmont, vítima de leucemia. Tendo frequentado a Academia Militar e as universidades de Munique e Berlim, produziu, durante a infância e a adolescência, as primeiras coletâneas líricas - entre elas, Leben und Lieder (1896) e Advent (1898). A sua obra, influenciada pelos anos que passou em Praga e pelas diversas viagens que fez pela Europa ao longo da vida, é muito vasta. Merecem destaque especial, no romance, Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge (Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, 1910), e na poesia Sonette an Orpheus (Sonetos a Orfeu, 1923) e Duineser Elegien (Elegias de Duino, 1923). (daqui)
 
 
 Tradução e nota introdutória de Maria João Costa Pereira
Ano: 2005
 
 
"O Livro das Imagens é uma obra que Rilke escreveu na juventude, atravessada pela escrita de algumas das suas criações mais importantes (...) é uma compilação das diferentes fases criativas do poeta, dando-lhe um carácter híbrido e algo desconcertante. (...) Trata-se de uma obra composta por quase todo o tipo de poemas escritos por Rilke e nele estão já presentes muitos dos seus temas de culto: a natureza, a noite, a religiosidade, a solidão, a morte, a angústia, o amor. Sendo uma obra de juventude, O Livro das Imagens inclui alguns dos seus poemas mais conhecidos e mais amados, invariavelmente incluídos nas antologias, como Intróito, Outono, Oração e Anoitecer e traz em si a marca de muito do que viria a ser a criação da maturidade do poeta." 
 (in Nota introdutória de Maria João Costa Pereira)
 
Enquanto Rilke escreveu muito rapidamente algumas das suas grandes obras, O Livro das Imagens demoraria sete anos a chegar à sua forma final. A primeira edição remonta a Julho de 1902 e recolhia quarenta e cinco poemas escritos entre 1898 e 1901, a maior parte dos quais retirados do diário do autor. Rilke tinha então 26 anos. Em Dezembro de 1906, seria publicada uma segunda edição que modificava e aumentava significativamente a anterior. Eram-lhe acrescentados trinta e sete novos poemas, a ordem inicial pela qual eram apresentados os poemas anteriores fora modificada, um poema foi eliminado, assim como o verso final de um outro, foram dados títulos a poemas que antes os não tinham, outros que se apresentavam separados seriam unificados num só e a obra foi finalmente dividida em dois livros, cada um dos quais com duas partes.
As circunstâncias do poeta desempenhariam igualmente um papel determinante nesta obra, cuja conceção foi pontuada por acontecimentos significativos na sua vida: a atribulada relação amorosa com Lou Andreas-Salomé, as duas viagens de ambos à Rússia, a estada em Worspwede durante a qual conheceria a escultora Clara Westhoff, sua futura mulher, e Paula Becker, com quem manteve uma relação ambivalente, o período que passou em Paris, o nascimento da filha Ruth e o seu progressivo distanciamento da família.
Podem seguir-se em O Livro das Imagens os indícios destes acontecimentos e respetivas influências, pois ele constitui como que uma compilação das diferentes fases criativas do autor, dando-lhe um carácter híbrido e algo desconcertante. (daqui)
 
 

Thomas Eakins (American realist painter, 1844–1916), Self-portrait, 1902,  


Thomas Cowperthwait Eakins (25 de julho de 1844 - 25 de junho de 1916) foi um pintor realista americano, fotógrafo, professor e educador de artes plásticas. Ele é amplamente reconhecido como um dos artistas mais importantes da história da arte americana.

Ao longo de toda sua carreira Eakins trabalhou num estilo realista, tendo o ser humano como centro temático. Pintou centenas de retratos, que em conjunto dão um panorama da vida intelectual da Filadélfia em seu tempo, e isolados são penetrantes visões sobre os indivíduos. Como professor foi um nome altamente respeitado e muito influente no circuito das artes norte-americanas, apesar de escândalos pessoais terem prejudicado um sucesso mais amplo. Na fotografia foi um inovador, usando abordagens ousadas para sua época. Hoje é considerado o mais importante realista dos Estados Unidos na virada do século XIX para o século XX.

Durante o período de sua carreira profissional, desde o início da década de 1870 até que sua saúde começou a falhar, por volta de 40 anos depois, Eakins trabalhou rigorosamente, escolhendo como objeto para sua arte as pessoas de sua cidade natal, Filadélfia, na Pensilvânia. Ele pintou centenas de retratos, geralmente de amigos, membros da família ou pessoas proeminentes na arte, ciência, medicina e do clero. Vistos em conjunto, os retratos oferecem uma visão geral da vida intelectual de Filadélfia no final do século XIX, e início do século XX; individualmente, são representações incisivas de pessoas pensantes.

Além disso, Eakins produziu uma série de grandes pinturas, que o levaram de retratos em sua sala a pinturas em escritórios, nas ruas, em parques, rios, arenas e anfiteatros de sua cidade. Esses locais ao ar livre lhe permitiram pintar o tema que mais o inspirou: pessoas nuas ou levemente vestidas em movimento. No processo, ele poderia modelar as formas do corpo na plena luz solar, e criar imagens de espaço profundo, utilizando seus estudos em perspetiva. Eakins também se interessou pelas novas tecnologias da fotografia de movimento, um campo em que ele agora é visto como um inovador.

Não menos importante na vida de Eakins, foi seu trabalho como professor. Como instrutor, ele era uma presença com alta influência na arte americana. As dificuldades que o atormentaram como artista que procurava pintar o retrato e a figura de forma realista, foram paralelizadas e até mesmo amplificadas em sua carreira de educador, onde os escândalos comportamentais e sexuais atrapalharam seu sucesso e danificaram sua reputação. Eakins era uma figura controversa, cujo trabalho recebeu pouco reconhecimento oficial durante sua vida. Desde a sua morte, ele foi celebrado pelos historiadores da arte americanos como "o mais forte e mais profundamente realista da arte americana do século XIX e início do século XX". (daqui)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

"Falar contigo" - Poema de Renata Pallottini



Thomas Pollock Anshutz, Man and Woman on the Beach, 1893 



Falar contigo

 
Falo contigo
e é como se falasse
com essa qualidade
de luz das árvores.

É perfurar o verde
e emergir do outro lado
(o húmido porvir
dos vegetais).

Falo contigo
e compreendo o estado
dos sons que surgem
à noite, noite-em-claro.

Falo contigo
e entendo
o que não tem sentido.

Amor é assim, palavra:
lume comovido.


Renata Pallottini,
de "Um Calafrio Diário", 2002
 
 
Thomas Pollock Anshutz, Low Tide, 1897, watercolor on paper
 
 
Viola caipira
os remos dos barcos
seguem ritmo.

no livro "Yuuka. haicais".


Thomas Pollock Anshutz, Landscape with grey sky, 1900
 
 
Pôr-do-sol
em torno dele
todos os cinzas.
 
Alice Ruiz,
da obra "Boa companhia–poesia", 2003
 
 
"Boa companhia–poesia", 1ªed. (2003)
 
 
Apresentação
 
Autores - Dora Ferreira da Silva, Ferreira Gullar, Armando Freitas Filho, Francisco Alvim, Zuca Sardan, Chacal,  Nicolas Behr, Roberto Marinho de Azevedo,  Arnaldo Antunes, Josely Vianna Baptista, Alice Ruiz,  Bruno Zeni, Lélia Coelho Frota, Antonio Fernando de Franceschi, Eucanaã Ferraz, José Almino.
 
"Boa Companhia - Poesia" reúne dezasseis poetas brasileiros contemporâneos, em textos inéditos de diversas tendências estéticas, que refletem inquietações pessoais, dão contornos às incongruências da nossa sociedade e respondem aos desafios do tempo.
A pluralidade de caminhos da produção poética atual denota vitalidade artística. Os poemas reunidos nesta coletânea vão do coloquialismo ao apuro formal, do haikai à poesia em prosa, da contenção da poesia visual às formas mais expressivas do verso tradicional.

Depois de "Boa Companhia - Contos", este é o segundo volume de uma coleção que apresenta autores de destaque, brasileiros e estrangeiros, de todas as épocas, em diversos géneros da escrita, com o objetivo de demonstrar que o prazer da leitura é sempre uma boa companhia. (daqui)