segunda-feira, 10 de outubro de 2022

"Onde fica a minha pátria" - Poema de Carlos Carranca

 
 
 

Onde fica a minha pátria


Se me perguntarem onde fica a minha pátria
eu direi que em tudo que em mim convive:
nesse menino de bibe que pula nos meus joelhos
no cachimbo de meu pai fumado por voz ausente
nas ruas tristes nos gatos que se lamentam de vício
no candeeiro de esquina lançando sobras de gente
no cachorro que ali uiva e no mendigo
bebendo a solidão de água ardente
no comboio que não passa tragado pelo progresso
na rua – casa ensombrada varada de sol
e cimento e desse olhar que em mim mora
como se fosse um caminho
mais o recreio da escola mais o corredor do colégio
o corrimão das escadas que davam para o alpendre
e a mão sentida na perna assim mesmo feminina
essa ternura que a vida sabe sentir mais urgente
que a hora em que se acorda
para outra vida diferente alcandorada na glória
de sermos bem sucedidos entre empresários gulosos
e meretrizes sem dentes e capitães de escritório
e abortadeiras cristãs de muitas e desvairadas gentes
que se atropelam de medo e se enfurecem
de serem eternamente ninguém e todo o mundo
onde às vezes nasce uma flor que se sente.

Se me perguntarem onde fica a minha pátria
Eu direi entre esses livros que li e outros frequentaram
e que por eles se bateram em horas vivas horas raras.
Fica na voz de um poema salpicado de esperma
na doçura do silêncio na luz filtrada da tarde
onde outra luz se revela onde outra luz é mais vida.
Fica na chinela-varina dessa mulher que a usou
No ronronar da traineira nas redes que o mar ditou
p'ra que o futuro nos prenda a uma promessa maior.


Carlos Carranca
(1957-2019), Frátria


«Frátria», de Carlos Carranca 
(com fotografias de Miguel Afonso Carranca) 
Editora: Mar da Palavra - Edições, Lda
 
 
(Excerto)

«O que a Vida tem de melhor é o facto de ser breve na eternidade que deixamos nos outros. Nela há qualquer coisa que nos escapa, desde o nosso corpo como objeto da nossa representação, até ele se tornar vontade e através dele estarmos em relação com a Natureza. O meu corpo passa a ser a Natureza em mim.
Mas nós somos sempre mais do que conhecemos e os nossos versos vão para além daquilo que sabemos, daquilo que escrevemos.
A vontade (ou a falta dela), como essência de tudo, é a responsável (irresponsável) da nossa miséria, da miséria humana.
A Morte, essa, não está em parte alguma – ela existe na Natureza que se renova.
Toda a palavra sobre a Morte é do domínio do imaginário mas, como todo o imaginário, está cheia de conteúdo da Vida, sobretudo do que da Vida nos escapa. Ela procura uma resposta para a solidão ontológica radical, singular, condenada a sonhar o sonho, que é como quem diz, condenada à inconsistência do sonho.
Pensar na Vida como ela é, é pensá-la com a Morte; é sentir, é sentir-se, é falar de si mesmo, conviver, é entender-se com os outros sem subjugar ninguém nos caminhos da razão.
O que desejamos verdadeiramente? Tocar o coração das coisas ou, como afirmou um dia Unamuno, “nas entranhas do presente buscar a eternidade viva”.
É, pois, trágico, para quem vive em constante procura da essência das coisas, assistir, impotente, à dura realidade de uma Pátria a afastar-se da essência e a perder-se na imitação e na vulgaridade utilitárias. Porque não há nada que mais nos degrade do que esta entrega à idolatria da técnica e do consumismo de massas, onde a preocupação dominante do negócio e a intensidade frenética da Vida aniquilam toda a inquietação espiritual.
Agitar, inquietar, libertar, essa foi, é e será a eterna missão da Poesia.
Interrogo-me, frequentes vezes, se não estará a poesia mais próxima da magia do que da literatura. Ora, o Poeta não é um literato, é um mágico, sendo na dimensão transfiguradora da realidade que o Poeta se cumpre, e não no acervo de obras consultadas ou na profusão de autores citados. Não é citando os criadores que o Poeta existe, é existindo que o Poeta é.
Vivemos num tempo em que os discursos soam a oco. Vivemos num tempo de múltiplas palavras sem sentido, usadas nos comércios diários dos interesses; palavras que são utilizadas e deitadas fora, palavras sem peso específico, sem leveza, em suma, sem valor.
Porque a Poesia passa pelo ritmo encadeado das palavras, e porque ele, o ritmo, assenta na originalidade com que as juntamos ou separamos, é que, ao confrontarmo-nos com a palavra poética, nos reencontramos com a originalidade, com o valor da palavra, com a oração do silêncio – onde nenhum silêncio é já possível, o de alguém que procura a palavra perdida e o seu lugar no homem, o mundo como adjetivo: asseado, purificado, limpo. Ao entrarmos na obra poética, penetramos na vida que se afasta da razão sem a dispensar, e se aproxima da pura sensibilidade. A Poesia, com as palavras, refaz sentidos, dá-lhes outra coloração, transforma-as sem as deformar.
Há na Poesia uma conciliação da disciplina com a liberdade, ela não mistura poema com ideias, elas estão lá mas são a Poesia. Não cede à facilidade, não transige com a rima, dá-se numa entrega contida, lúcida, solitária. São palavras depuradas pela sua nudez. São palavras recolhidas em si mesmas.
Há na Poesia uma dimensão espiritual, direi mesmo, religiosa, que entra em nós e se recolhe – é a nossa voz que ressoa e nos acorda na transparência da voz do Poeta.
Na ética e na religião, a questão essencial é saber se o homem se redime a si mesmo ou se será redimido por outro; se a sua obrigação é quebrar as suas grilhetas ou, agrilhoado, ir quebrar as grilhetas alheias.
A Poesia tenta, pela palavra, libertar-nos do ruído que aprisiona e, em função do outro, libertá-lo, religando-o à palavra perdida no aperfeiçoamento do mundo.
No princípio era o Verbo. Todas as coisas foram feitas pela palavra, a palavra desocultadora do mundo, da Vida, da beleza. Sabemos que a Morte é a mentira e a verdade é a Vida, mas também sabemos que a única verdade objetiva é a Morte, porque a Vida é um conjunto de mentiras que nos serve de consolo; mas o Poeta sabe, também, que a palavra vence a Morte e que é a palavra poética a mais humana das obras.»

Carlos Carranca
Monte Estoril, 22 de Setembro de 2007
(daqui)
 
 
João Marques de Oliveira, Praia com figuras e barcos, 1887


"Não há segredo mais supremo nem mais simples do que esta relação vital entre o corpo e o espaço, entre o alento e a paisagem, entre o olhar e o ser."

António Ramos Rosa
, O Aprendiz Secreto




João Marques de Oliveira
(Porto, 1853 – Porto, 1927)

Frequenta a Academia portuense de Belas-Artes, de 1864 a 73, concluindo o curso de Pintura de História. Aluno de Cabanel e de Yvon na École des Beaux-Arts, em Paris, onde se estabelece com bolsa do Estado, tal como  Silva Porto, contacta com a estética da escola de Barbizon, assiste à grande retrospetiva de Corot no ano da sua morte, 1875, e eventualmente conhece as novas propostas impressionistas, em exposição nesse ano. Em 1876, viaja pela Bélgica, Holanda e Inglaterra, com Silva Porto e fixa-se em Roma, até meados de 1878, onde se relaciona com Artur Loureiro e regressa a Paris ainda nesse ano. Termina o curso com a pintura Céfalo e Prócris

Em 1880, já no Porto desde 79 e depois de viajar por Madrid e Sevilha, participa na fundação do Centro Artístico Portuense, na Arte portuguesa e na organização das exposições de Arte do Ateneu Comercial do Porto. Foi nomeado académico de mérito da Academia portuense, ainda em 79, e em 81 é um dos fundadores do Grémio Artístico. Leciona a cadeira de Desenho Histórico neste ano, e em 95, a de Pintura Histórica, ocupando o cargo de Diretor em 1886. As suas funções de professor e de figura ativa nos meios artístico-culturais, foram marcantes para a divulgação de uma estética naturalista, dedicando-se particularmente ao retrato e à pintura de paisagem, nos arredores do Porto e zonas minhotas. 

Por vezes incompreendido pela crítica, o que justifica a sua diminuta projeção, face ao sucesso de Silva Porto, Marques de Oliveira apresentou propostas de grande modernidade, referências a Manet e Boudin, que abandonou, para se ajustar ao gosto pela cena de género e a um cromatismo melancólico, normalmente aceites com êxito. (Daqui)


João Marques de Oliveira, À espera dos barcos, 1892. Pintura a óleo sobre tela, 77,5 cm × 97 cm.
 Museu do Chiado, Lisboa

[À espera dos barcos é uma pintura a óleo sobre tela do artista português da corrente do Naturalismo, João Marques de Oliveira (1853-1927) datada de 1892 e que está atualmente no Museu do Chiado, em Lisboa.  
 
À espera dos barcos é uma pintura de costumes representando as mulheres familiares dos pescadores que aguardam na praia pelo regresso deles da faina do mar, e tratando-se da praia da Póvoa de Varzim, a pintura representava os momentos de ansiedade diária da família dos pescadores marítimos daquele tempo. 

Em primeiro plano vê-se uma rapariga sentada na areia à beira-mar da praia da Póvoa do Varzim, virada de perfil para a direita, descalça, com um lenço amarelo cobrindo o cabelo escuro, vestindo uma camisola escura e uma saia comprida. Unindo as duas mãos junto do joelho esquerdo, com uma face rosada pelo sol, olha inexpressivamente para o mar.

Mais atrás, sentadas na areia, estão outras mulheres com crianças, ou carregando cestos, que esperam também que os seus maridos, namorados e pais pescadores regressem com os seus barcos da labuta diária e perigosa no mar. Mais além vê-se a rebentação das ondas junto do areal molhado, e no horizonte calmo do fundo o perfil de alguns moinhos, habitações e barcos parados na areia.] (daqui)


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