quarta-feira, 12 de outubro de 2022

"Nesta hora" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Maurice de Vlaminck (French, 1876–1958), The Seine at Chatou, 1906, oil on canvas, 
 


Nesta hora

 
Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo
É preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
– Sob o ausente olhar silente de atenção –

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste.
 
20 de maio de 1974

Sophia de Mello Breyner Andresen,
do livro "O nome das Coisas
", 1977
 

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