Ateneu Art Museum: Finnish National Gallery
De um sonho
A areia retida nas mãos em concha
vaza, e inicia a ampulheta
preenchendo as formas das letras
e de algumas figuras:
a do A surge consistente
seguida do molde do rosto de uma criança
dentro da bacia oval e húmida que as mãos
escavaram, à beira da baía de igual formato
no intervalo de uma onda mais forte e outra.
O avanço do mar acaba apagando
a construção na praia, mas a memória
a reescreve com o mesmo espírito, método
e redundância, nas linhas da maré.
Armando Freitas Filho, em "Dever" (Suíte - 1ª parte).
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Armando Freitas Filho estreou em livro em 1963. Com "Dever" (2013), comemora 50
anos de carreira e deixa claro por que é um dos maiores poetas em
atividade no país.
Na primeira parte, "Suíte", o autor se detém em "casas, roupas, móveis
etc.", objetos do quotidiano que a princípio não teriam eco poético, caso
não fossem, como afirma o autor, "dispostos de tal forma que sirvam
para fins estéticos".
A segunda, "Anexo", já está na rua, é "jornalística", mas sem abrir mão
do transfigurador trabalho literário, dando conta dos eventos de antes e
de agora, que atravessaram o poeta.
A terceira, "Numeral", que desde 2003 é a coda dos livros de Armando,
continua a passar em revista sua poética, sempre sujeita a retificações
futuras.
É digna de nota sua capacidade de mesclar poemas íntimos, sobre a vida
amorosa e familiar, a poemas que conversam com o noticiário
contemporâneo, como o massacre da Candelária e o goleiro Bruno, e ainda
dialogar com a novíssima poesia brasileira, como no poema feito a partir
do último livro de Angélica Freitas, Um útero é do tamanho de um punho.
Num dos poemas do livro, o autor traça uma genealogia breve da
literatura brasileira, propondo um elo entre Machado de Assis,
Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Candido e João
Cabral de Melo Neto.
Armando Freitas Filho é sem dúvida um herdeiro dessa linha mestra da literatura brasileira. (Daqui)
A Tempestade do Destino
"Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos noutra direção. Mas então, a tempestade também muda de direção e o segue. Você muda mais uma vez seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha. As mudanças se repetem muitas e muitas vezes, como num balé macabro que se dança com a deusa da morte antes do alvorecer. Isso acontece porque a tempestade não é algo independente, vindo de um local distante. A tempestade é você mesmo. Algo que existe em seu íntimo. Portanto, o único recurso que lhe resta é se conformar e corajosamente pôr um pé dentro dela, tapar olhos e ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham de areia e atravessá-la passo a passo até emergir do outro lado. É muito provável que lá dentro não haja sol, nem lua, nem norte e, em determinados momentos, nem hora certa. O que há são apenas grãos de areia finos e brancos como osso moído dançando vertiginosamente no espaço. Imagine uma tempestade de areia desse jeito. E você vai atravessá-la, claro.
Falo da tempestade. Dessa tempestade violenta, metafísica e simbólica. Metafísica e simbólica, mas ao mesmo tempo cortante como mil navalhas, ela rasga a carne sem piedade. Muita gente verteu sangue dentro dela, e você mesmo verterá o seu. Sangue rubro e morno. E você vai apará-lo com suas próprias mãos em concha. O seu sangue e também o de outras pessoas.
E, quando a tempestade passar, na certa lhe será difícil entender como conseguiu atravessá-la e ainda sobreviver. Aliás, nem saberá com certeza se ela realmente passou. Uma coisa porém é certa:
Ao emergir do outro lado da tempestade, você já não será o mesmo de quando nela entrou.
Exatamente, esse é o sentido da tempestade de areia…"
Haruki Murakami, do livro “Kafka à beira-mar”.
Tradução: Leiko Gotoda
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