Um o outro irá conter
Facilmente — e a Vós — também —
O Cérebro é mais fundo do que o mar —
Pois — considerai-os — Azul e Azul —
Um o outro irá absorver —
Como as Esponjas — à Água — fazem —
O Cérebro é apenas o peso de Deus —
Pois — Pesai-os — Grama a Grama —
E eles só irão diferir — e tal acontecer —
Como a Sílaba do Som —
in “Esta é a Minha Carta ao Mundo e Outros Poemas”
Tradução de Cecília Rego Pinheiro
A verdade em linguagem oblíqua
Duzentos Poemas: Emily Dickinson - 1ªED. (2014)
[A poesia de Emily Dickinson é marcada por uma peculiar gramaticalidade: inserção forçada de plurais, posições sintáticas invertidas, ou, muitas vezes, desrespeito pelos géneros, pelas pessoas ou pelas concordâncias verbais. É ainda necessário destacar da linguagem de Dickinson não só os desvios sintático-formais, mas ainda os desvios semânticos internos, aqueles que sustentam, pela rutura, a arquitetura dos seus textos poéticos e que resultam numa linguagem críptica, compacta, plena de elipses, traduzida em textos que desafiam a tradição da poesia enquanto comunicação e oferecem à linguagem literária um lugar de destaque e autonomia mais próximo da estética que informa a poesia moderna. Excessiva, em relação ao seu tempo; excessiva, mesmo em relação ao nosso, pela opacidade de leitura e apreensão e pelas temáticas envolvidas. “Uma linguagem altamente desviante que arrisca tudo”, como defende David Porter, pois, “na extrema elipse e transposição, desbasta a armadura mesma do sentido.”»] (daqui)
Emily Dickinson nasce a 10 de Dezembro de 1830, em Amherst, Massachusetts, e morre a 15 de Maio de 1886. Justamente considerada a maior poeta norte-americana (quando não a maior de língua inglesa), Dickinson escreveria um dia: "Because I see - New Englandly / The Queen discerns - / like Me - provincially". Nesse olhar, que ela descreve simultaneamente provinciano e arrogante, encontra-se a génese da sua poesia, porque esse olhar, partindo do limite, relativiza o ilimitado, faz aproximar pontos aparentemente extremos, para em seguida lhes frustrar a resolução. Do ponto de vista estritamente físico, esse olhar em pouco mais se podia deter do que sobre um curto mundo: a casa e os seus aposentos, o jardim, a pequena cidade de Amherst, rodeada por colinas suaves, alguns amigos e os poucos habitantes do lar que ela habitava. Para o final da sua vida, essa visão física iria ainda, devido à doença, encontrar-se dramaticamente reduzida. O que lhe permitiu a expansão até zonas de limite praticamente inimaginadas na poesia norte-americana foi a exercitação da palavra, escrita e lida, e também a exercitação de um silêncio - eloquente. Revestindo a palavra de sentidos próprios e esvaziando-a de outros, alheios, Emily Dickinson aplicou à sua poesia um processo misto de desvelamento e ocultação, onde a contenção significa excesso. Desse processo não esteve ausente nem o seu sexo, nem a sua condição de mulher da classe média, descendente dos primeiros puritanos, simultaneamente privilegiada pela classe e marginalizada pelo sexo.
Tendo vivido toda a sua vida em Amherst, Dickinson movimentou-se numa casa dominada por homens prósperos e instruídos. Uma casa que havia sido, desde o seu avô, Samuel Fowler, seio de uma família obcecada com a educação. Uma casa onde entravam diariamente jornais, onde as principais obras dos autores clássicos eram lidas; uma casa onde lhe foi reservado o melhor quarto, ainda que ela dramatizasse, em poesia, o oposto ("I was the slightest in the House - / I took the smallest Room -". Se o sentido de injustiça deve ter sido sentido por Dickinson tanto mais agudamente quanto as diferenças eram exercitadas entre si própria e, por exemplo, o seu irmão, não devemos esquecer que a educação que recebeu em Mount Holyoke (excelente, para os padrões do seu tempo) foi por ela interrompida voluntariamente; nem que, a determinado momento da sua vida, ela própria recusaria a entrada nos círculos públicos pela mão de mulheres como Helen Hunt Jackson. Nem devemos esquecer que a sua quase reclusão física foi de facto uma excentricidade, um exagero real, acarinhado por quem lhe era próximo. Possivelmente, fosse Dickinson homem, a sua condição seria diversa: o acesso a esferas públicas de poder encontrar-se-ia contrabalançado pela necessidade (provável) de sobreviver economicamente. Ser mulher, branca, solteira e da classe média alta negou-lhe a igualdade e o domínio público, permitindo-lhe, simultaneamente, na ausência de responsabilidades económicas e encargos emocionais e familiares, dois fatores fundamentais para o exercício da escrita: tempo e, ironicamente, liberdade para o utilizar.
E todavia, se é importante referir Emily Dickinson como norte-americana, branca, protestante, proveniente de uma classe social abastada, não é menos importante pensá-la como ser humano do sexo feminino, sobretudo do século passado, quando o acesso ao poder se encontrava mais dificultado às mulheres. Adicionalmente, se são complexas as questões da relação entre o sujeito que escreve e o texto e a deteção nesse texto de uma identidade sexual, é também complexa a questão da relação entre o texto e o sujeito que o lê. Os poemas, a não ser quando deliberadamente camuflam a identidade sexual, têm assinatura, não são produto de um ser (impossivelmente) "neutro". Nesse sentido, estabelecem um contrato com quem, de uma outra forma, os reproduz, e desse contrato de leitura entre texto e leitor consta a consciência, neste último, do sexo de quem assinou o texto, sobretudo se quem o fez era mulher. Essa consciência deve-se justamente ao facto de o espaço feminino se fazer sentir pela diferença na gestão desse espaço.
O aviso de Emily Dickinson ao seu mentor literário, Thomas Higginson, de que a pessoa que aparecia nos poemas, esse "neutro" "Representative of the Verse" não era ela, mas uma "supposed person" (C. 268), de pouco serviu, a não ser como estratégia intra-literária, precursora, aliás, da atitude modernista de dramatização e desdobramento do sujeito poético. Higginson sempre a leria como mulher, dentro dos moldes esperados no século XIX, a ponto de recomendar, já depois da sua morte, que o poema "Wild Nights" (P. 249) fosse omitido da edição que ele próprio ajudava então a compor, justificando essa atitude pelo medo de que os futuros outros leitores, na inevitável construção de um outro contrato de leitura, lessem no poema sinais de imoralidade por parte quem o escrevera. A autora do poema nunca o vira publicado. Como veria só publicados em vida pouco mais de dez poemas (mesmo esses modificados e com títulos - ausentes dos textos originais). Parecendo ter demonstrado, por volta dos trinta anos, interesse na publicação, Dickinson acabaria por desistir, ou pelas revisões a que os seus textos eram sujeitos, ou ainda porque a sua poesia, tal como se encontrava, não cabia nos cânones de publicação. Essa opção permitiu-lhe o exercício da escrita de uma forma eminentemente lúdica e experimental, mas, ao dar-lhe espaço total de movimentação poética, nunca deixou de ser fator de angústia ("Fame is a bee. / It has a song - / It has a sting - / Ah, too, it has a wing".
A "normalização" da sua poesia, quando esta é publicada - normalização essa presente em aspetos como a regularização da sintaxe, ou a supressão de traços então considerados inaceitáveis, como os seus famosos travessões, e sua substituição por uma pontuação canónica - visava suprimir o que era considerado desproporcionado, anormal, excessivo. Iniciado com uma primeira edição póstuma, em Novembro de 1890, esse processo de normalização estender-se-ia até 1955, altura em que Thomas Johnson levaria a cabo a edição crítica dos poemas, em três volumes, com variantes, sem títulos, com parte da pontuação que lhes era característica e demonstrando uma tentativa de aproximação cronológica. Essa edição inauguraria uma nova etapa na crítica dickinsoniana, que agora tinha à sua disposição o que, até ao início dos anos 1980, seria considerado a única versão "autorizada" da poesia de Dickinson. Em 1981, Robert W. Franklin publicaria a edição fac-similada dos manuscritos de Dickinson e um novo ciclo se iniciaria: os manuscritos, tal como surgiam apresentados, respeitando a ordem escolhida por Dickinson, punham em questão as datas oferecidas por Johnson, evidenciando que a poeta organizara cuidadosamente vários pequenos volumes de poemas (os "fascicles"), equivalentes a livros - para consumo privado.
Salientava-se mais ainda dos poemas de Dickinson a ausência de uma versão única, a simultaneidade de alternativas, a, muitas vezes, "escolha da não escolha". Que a polémica continue ainda hoje a ser levantada pela crítica em relação à edição de Johnson, incomparavelmente mais fidedigna do que as anteriores, é prova de que a forma de escrita de Dickinson continua a revelar fraturas e desvios. Essas fraturas e esses desvios revelam-se na sua obra (em que se devem incluir também as suas cartas, muitas delas com verdadeiro estatuto de poema) e também na sua vida: vestir-se de branco (o que passa a ser uma constante a partir dos seus trinta anos) ou tornar-se praticamente reclusa - alimentará a sua imagem de excentricidade e exceção. Insistir ficar na casa do pai, transformando meros sinais de recato noutros de reclusão, esvazia a casa paterna do seu significado bíblico e do seu simbolismo como ponto de passagem para a casa do marido. É isso que permite a Dickinson escrever "I am alive because I do not own a house", porque, de facto, a casa é de seu pai, não sua, como ela notaria, numa carta: "I do not cross my Father's ground / To any House or town".
Recusando-se a transgredir abertamente, o que Dickinson utiliza é um processo de subversão, que passa não pela explícita substituição de códigos constrangedores por outros opostos, assim incorrendo no risco do castigo ("Assent - and you are sane / Demur - you're straightway dangerous - / And handled with a Chain -"), mas pela deslocação desses códigos, estendendo-os para lá dos seus limites. Assim, Dickinson cria uma outra versão do texto social, simultaneamente uma sub-versão, subterrânea, marginal, e uma sobre-versão, que não obstante teima em vir à superfície e em ser notada. O que era texto prescrito, consensual, pertencendo à ideologia dominante, torna-se texto privado mas, porque de exceção, passível de ser lido como diferença. O branco e a reclusão são, assim, formas silenciosas de, ruidosamente, falar outra linguagem. "The Soul selects her own Society / Then shuts the Door", escreveu Dickinson. Essa sociedade a que a poeta se abriu era pequena; escolheu não ser vista, mas ser falada, ter a liberdade de ver "seletivamente" e de poder ela própria falar através de uma linguagem idiossincrásica e desviada, oposta à "normalidade". E, todavia, nesse desvio e nesse sentido de diferença, Dickinson inserir-se-ia também na ideologia que a formara.
Aos trinta e dois anos, numa carta a Thomas Higginson, diria, referindo-se à família: "They are religious - except me - and address an Eclipse, every morning - whom they call their 'Father'." Muito embora essa afirmação possa inscrever-se numa pose construída, interessa notar que essa pose parte de uma posição fortemente individualista. O que se conhece da vida de Dickinson ecoa a análise que Tocqueville faz do individualismo americano, e até mesmo a ambiguidade de que para ele o conceito se reveste.
A subversão dos valores canónicos não passa só, em Dickinson, pela subversão das normas sociais e religiosas vigentes: passa também pela subversão dos valores canónicos literários. "Descontrolada" e "espasmódica" (como ela se auto-caracterizaria, ironicamente, numa carta a Higginson, que a havia aconselhado a rever, e assim "normalizar", os seus poemas - o que Dickinson sempre recusaria fazer) nunca ela deixaria de ser considerada, nem mesmo depois da sua morte, por Higginson. E Higginson é um barómetro do seu tempo, afinando a sua avaliação por um diapasão idêntico ao de Ralph Waldo Emerson, quando este lera Dickinson e havia dito que ela escrevia como se estivesse "ameaçada por febres". Essa suposta ausência de controle e essa rutura de escrita fazem parte das estratégias poéticas de Dickinson.
Subverter as regras gramaticais, juntamente com outras regras, correspondia a violar e desafiar o próprio ato discursivo e o respetivo posicionamento social. Essa subversão revela-se ora clara ora implicitamente, quando, por exemplo, Dickinson oferece duas alternativas para um mesmo poema ("Going to Him - Happy Letter" e "Going to Her - Happy Letter"; ou quando, mais abertamente, subverte padrões de comportamento sexual ao utilizar explicitamente referentes femininos ("I showed her Heights she never saw", "Her sweet Weight on my Breast one Night"; ou ainda quando, pura e simplesmente, omite diferenciações sexuais, substituindo-as pelo género neutro ("This was a Poet - It is That".
Descentrada relativamente quer aos valores poéticos predominantes (masculinos), quer aos valores poéticos do seu próprio sexo, Dickinson é também descentrada em relação aos próprios valores sociais. Mas esse descentramento não contraria o que se pode ler também na poesia de Dickinson e que acaba por se inserir na ideologia americana: a tentativa de construção de um novo mundo, neste caso, poético.
Sandra Gilbert explica a criação na poesia americana de uma tradição feminina e de uma tradição masculina iniciadas com Dickinson e Whitman: articulada em termos de diferença sexual, essa ideia de desvio à tradição dever-se-ia ao facto de Dickinson e Witman terem produzido o que Gilbert considera ser "not poetry"; e Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, dialogando com Gilbert, define "not poetry" precisamente como a asserção da originalidade na retórica americana que afirma a legitimidade de diferença. Assim, se Whitman recorre a um tom oratório, de características semelhantes à do sermão, Dickinson utiliza, embora transgredindo, a estrutura prosódica do hino religioso. Informados ambos pela estética puritana, ambos a subvertem, embora diferentemente: Whitman, na parodização inconsciente das entoações bíblicas através da utilização de uma voz bárdica, semelhante à de um sacerdote ou de um profeta; Dickinson, no aproveitamento da estrutura e no recurso a uma voz elíptica que desafia e ilude, pelo sentido, a própria economia e contenção puritanas. Dickinson recorre, assim, a um estilo compacto e elíptico, à economia (quando não frugalidade) verbal, onde não parece haver espaço para aquilo que geralmente se atribui ao excesso: a super-abundância, a demasia. E todavia, a sua contenção formal pode ser considerada uma forma de excesso, não só por servir muitas vezes conteúdos semânticos de extremidade, mas também pela mensagem paradoxal de presença pela ausência, em que o próprio efeito de omissão é denunciador de excesso. Daí a sua utilização recorrente da elipse: destruindo a sintaxe, Dickinson revoluciona a linguagem poética, fazendo abalar a coesão de sentidos. "Tell all the Truth / But tell it slant", escreveu ela.
Tal como Pessoa e o seu poema sobre o fingimento poético, também Dickinson dizia dizer toda a verdade, mas de forma oblíqua. Não só nos seus textos considerados poemas. Sabemos que a única reprodução da imagem de Dickinson é um daguerreótipo; quando Thomas Higginson lhe pede uma fotografia, a resposta da poeta é: "Could you believe me - without? I had no portrait, now, but am small like the Wren, and my Hair is bold, like the Chestnut Bur - and my eyes, like the Sherry in the Glass, that the Guest leaves - Would this do just as well?". Higginson não fica a conhecer melhor a figura de Dickinson através desta descrição poética, nem a ficará a conhecer melhor quando a visita, muitos anos depois. Sobretudo, não a fica a conhecer pelas palavras das cartas que ela lhe enviaria até morrer, e que lhe oferecem somente, tal como esta carta, representações, máscaras, não auto-representações.
Representações atravessadas (literalmente, pelos travessões) por espaços em branco - e todavia, profundamente poderosas: A still - Volcano - Life - That flickered in the night - When it was dark enough to do Without erasing sight Too subtle to suspect By natures this side Naples - The North cannot detect The lips can never lie - Whose hissing Corals part - and shut - And Cities - ooze away - Tal como a vida do sujeito lírico do seu poema, também a vida e a obra da poeta foram vulcânicas, brilhando na escuridão do praticamente anonimato; com tremores de terra imperceptíveis a outros; com níveis de subterraneidade riquíssimos e escondidos sob um aparente sossego comunitário; todavia capazes, de, uma vez despertos, como aconteceu quando, após a sua morte, se deu a libertação desse anonimato, demolirem as estruturas fixas do texto canónico e pulverizarem a imagem fixa que dela se possuía.
As Emily Dickinsons que existem ao longo dos textos que, sendo dela, foram também por outros recriados, e as Emily Dickinsons que se lêem ao longo dos livros que se debruçam sobre essas poesias, assumem, num e noutro caso, máscaras diversas e são possíveis porque de facto não está presente uma só Emily Dickinson no texto publicado. Sem publicação, todo o poema se torna um poema possível; e assim somos muitas vezes deixados na incerteza, que se deve à ambiguidade da poesia, e às máscaras diferentes assumidas já não só pela poeta, mas ainda pelo ser humano que foi Dickinson. Resta talvez o olhar que, partindo do limite, relativizava o que o não tinha, esse olhar que, detendo-se em tão pouco (as colinas suaves de Amherst, alguns amigos, a casa), se alargaria tanto, fazendo da sua utilizadora uma das maiores poetas do nosso tempo; aquela que um dia, elipticamente, escreveria: "Had I known I asked the impossible, should I perhaps have asked it, but Abyss is it's [sic] own Apology." - 29 de Abril de 2000, (Daqui)
Charles Conder (1868 – 1909), The Shore at Dornoch, Highlands, 1896
Não viverei em vão, se puder
Salvar de partir-se um coração,
Se eu puder aliviar uma vida
Sofrida, ou abrandar uma dor,
Ou ajudar exangue passarinho
A subir de novo ao ninho —
Não viverei em vão.
Emily Dickinson,
Tradução de Aíla de Oliveira Gomes
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