sexta-feira, 11 de março de 2022

"Viste o cavalo varado a uma varanda?" - Poema de António Ramos Rosa

 
 
George Stubbs (1724–1806), Whistlejacket, c. 1762, National Gallery, London
 

Viste o cavalo varado a uma varanda?



Viste o cavalo varado a uma varanda?
Era verde, azul e negro e sobretudo negro.
Sem assombro, vivo da cor, arco-íris quase.
E o aroma do estábulo penetrando a noite.

Do outro lado da margem ascendia outro astro
como uma lua nua ou como um sol suave
e o cavalo varado abria a noite inteira
ao aroma de Junho, aos cravos e aos dentes.

Uma língua de sabor para ficar na sombra
de todo um verão feliz e de uma sombra de água.
Viste o cavalo varado e toda a noite ouviste
o tambor do silêncio marcar a tua força

e tudo em ti jazia na noite do cavalo.


António Ramos Rosa,
in 'Ciclo do Cavalo', 1975 
 
 
'Ciclo do Cavalo' de António Ramos Rosa

 

[O desenvolvimento cíclico ou temático reveste-se de um valor especial, quando o autor considera, num texto seu de natureza ensaística, que "as palavras repetem, não se repetem". É o que acontece no Ciclo do Cavalo, com a palavra "cavalo", por vezes prolongada por outras que têm uma referência significativa comum: "garupa", "cascos", "galope", etc. Ela desencadeia ao longo de todos os poemas uma dispersão de sentido ou uma errância de natureza simbólica fundamentais, cujo limite poderá ser o próprio espaço da escrita poética: "porque há um chão de terra no poema / e um cavalo que pasta a solidão real".]


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