domingo, 30 de abril de 2023

"Desmantelamento de um rio" - Poema de José Luís Peixoto


Marius Borgeaud (Swiss Post-Impressionist painter, 1861–1924), La Chambre Blanche, 1924.
Huile sur toile, collection privée
 
 

Desmantelamento de um rio


Arranco os autocolantes da parede do quarto do nosso filho,
como se a faca elétrica da cozinha me atravessasse o braço.
Sou eu que apago os seus desenhos na parede. Não são riscos,
são desenhos. Há lápis de cera espalhados e partidos pelo chão.
Depois de nós, esta morada terá outros nomes e chegarão cartas
pacientes à caixa do correio. Agora, são impossíveis de imaginar,
como o nosso ontem será impossível de imaginar. Foi aos poucos
que ficou apenas o sofá e as recusas e os armários esventrados.
Foi muito demoradamente que chegaram as noites em que durmo
no sofá, sob um cobertor oferecido pela minha mãe ou pela tua.
Por fim, tenho tempo para habituar os olhos às sombras e avaliar
a devastação, acordar com o frio da madrugada, o esquecimento,
e assistir àquela hora azul em que já não é de noite, mas em que
ainda falta tanto para ser de dia. Despejo no fundo de um saco
tudo o que está naquela gaveta que nunca ninguém arrumou.
À minha volta, há caixotes que servem para guardar os livros,
já estão divididos. Escolho o lugar para pousar os pés. Fizemos
coisas nesta sala vazia, tivemos pensamentos, aprendemos
alfabetos. Resta-me agora o que sempre tive e, como se caísse
desamparado na banheira, prossigo e continuo o meu trabalho,
como se batesse com a cabeça na esquina de uma gaveta,
prossigo e continuo o meu trabalho.


José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis
 

Marius Borgeaud, Window, 1924


"A janela: não é onde a casa sonha ser mundo?"

Mia Couto
, in  Estórias Abensonhadas,
7. ed. Lisboa: Caminho, 2003.


sexta-feira, 28 de abril de 2023

"As Poetisas" - Poema de Eunice Arruda


 
Adolf Erbslöh (German Expressionist painter, 1881–1947), Portrait of the singer and author,
Anne Kayssler, 1924.
Oil on canvas, 100.5 x 79.5 cm, Palais Dorotheum, Vienna 


[The portrait depicts the singer and author Anne Kayssler. She was the wife of Fritz Kayssler, the son of Friedrich Martin Adalbert Kayssler, who formed a trio of artists along with Christian Morgenstern, Fritz Beblo and Erbslöh himself. The portrait is rendered with masterly skill, and depicts the young woman sunk in a deep reverie. The reddish-brown dress in front of the blue-green curtain and armchair offers a harmonious contrast to the delicate female figure.]



As Poetisas


Elas se amparam

Em papéis
palavras
no brilho
Faca cortando as águas

Os homens
tentam entendê-las
com abraços mágicos
colares
Elas dão poemas
filhos
sombra
e outras possibilidades de abrir
clareiras na floresta

Os homens riscam suas peles
com carinhos beijos
profundos

Mas
elas se amparam
estão
sempre atentas
à bifurcação dos caminhos
à mudança de lua

Os homens as confundem, às
vezes
com mulher


Eunice Arruda (1939-2017),
do livro 'À Beira', 1999
 
 

quinta-feira, 27 de abril de 2023

"Olha, Daisy" - Poema de Antônio Brasileiro Borges



Anselm Feuerbach (German painter, 1829–1880), Nanna, 1861,
 
 
Olha, Daisy, estou muito cansado.
Acho que não vou vê-la mais à noite.
Vou ler uns livros sobre alguns fantasmas
e rabiscar uns certos desconfortos.
Também quero arrumar uns papéis velhos
deixados nas gavetas da memória —
um homem nunca é mais que amargo espelho
a rebuscá-lo: farpa, sanha, horda
de animais medonhos. Olha, Daisy,
estou muito cansado, como disse,
e mesmo o amor da carne agora fez-se,
dentro de mim, sobejo à longa festa.
Meu espírito, vês, já açambarca
a matéria que sou. Já o que resta
é o homem em sua solitária barca.
 in "Como Aquela Montanha Sossegada"
 

quarta-feira, 26 de abril de 2023

"Pássaro Azul" - Poema de Fernanda de Castro

 
Ker-Xavier Roussel (French painter associated with Les Nabis, 1867–1944), Women in a Landscape 
in the Île de France, c. 1932-1935,  Musée départemental Maurice Denis "The Priory"
 
 

Pássaro Azul

 
(Ai, o Pássaro Azul da minha pena,
da minha pena, pena, pena…)

Eu tinha um Pássaro Azul,
Azul como o azul do arco-íris.
Não vivia numa floresta,
não morava numa gaiola.
Não era um pássaro de penas e de sangue.
Também não era um pássaro pintado.
Nem escrito. Nem pensado.
Era um pássaro sentido.
Sentido como os cegos vêem as cores,
como os surdos ouvem os sons.
Era demasiado pequeno para os dedos
mas podia encher uma alma.
O Pássaro Azul cantava,
mas a sua música
era uma grande alegria sem risos,
uma grande luz sem noite.
Em quase todas as casas havia silêncio
e o Pássaro Azul cantava.
Porque não havia em todas as casas
uma flor, uma estrela, um pássaro a cantar?
Não abri a porta da gaiola
porque não havia gaiola,
mas com mãos trémulas de esperança
fui buscar o Pássaro Azul
ao fundo da alma,
e abri as mãos
para que houvesse em todas as casas
uma flor, uma estrela, um pássaro a cantar.
Murcharam, porém, todas as flores,
apagaram-se todas as estrelas,
e o Pássaro Azul,
azul como o azul do arco-íris,
ficou frio e cinzento,
um Pássaro Cinzento
como um pássaro de lua.
Então as mãos,
aquelas mãos trémulas de esperança,
tomaram a forma de tépidas conchas,
de pequenos ninhos de calor,
e o verde,
o verde indeciso das marés,
cobriu de esperança as suas penas.
Era agora um Pássaro Verde,
verde e triste.
Então lágrimas lentas o envolveram,
pesada chuva de alma,
e o pássaro ficou branco.
Era agora um Pássaro Branco,
silencioso e triste.
Como um vento furioso,
a Ira sacudiu as raízes da alma,
da alma onde outrora
morava o Pássaro Azul,
mas o Pássaro Branco
era agora vermelho,
um Pássaro Vermelho e assustado,
pesado de solidão.
Então o desespero murchou-lhe as asas,
e ficou roxo como um lírio magoado,
um lírio de paixão,
negro como um céu sem astros,
um Pássaro Negro
tocado de morte.
E de nada serviram as mãos
que se fizeram conchas para o abrigar,
de nada serviu a Esperança,
de nada serviram as lágrimas,
de nada serviu o vendaval da Ira,
nem o Desespero, nem a Dor.
Ferido de silêncio e de morte,
o Pássaro Azul
fechou para sempre as asas
e nunca mais foi azul.

Não, na Ilha do Tesoiro
e do Pássaro Azul
não estão as minhas asas,
não estão nenhumas asas,
ficaram só as penas…

As penas e um tesoiro
que escondi, não sei onde,
quando parti
para a minha viagem sem partida
e sem regresso.

Oh! A minha viagem,
esses longos caminhos da Aventura
que imaginei, imóvel,
no quarto, a horas mortas.
Era tudo miragem,
silêncio, noite escura:
um mar de ondas paradas,
um chão de pedras soltas,
de plantas calcinadas…
Constelações de nuvens,
jardins de campas rasas,
florestas de silêncio,
sem frutos e sem asas.
Então vieste com teu passo lento,
com tuas mãos de flor
e teu sorriso breve,
então vieste, branca e alada,
pura e alada,
numa noite de tédio e nostalgia.
Não perguntaste,
não disseste nada,
mas eras a Poesia,
mas eras tu, Poesia,
meu tesoiro perdido,
meu tesoiro encontrado,
reencontrado.

A Ilha do Tesoiro,
a minha Ilha…

Porque eu tinha uma Ilha,
num continente sem limites
que nenhum mar banhava.
Era a Ilha da Seta,
da metade ascendente
do meu signo de Fogo, o Sagitário,
que não era de terra nem de lava
mas dum estranho calcário,
imponderável, fluido,
inconsistente.
Era a Ilha do mar inexistente,
do céu imaginário,
que julguei povoar de Sonho, de Ilusão,
e afinal povoei
de bolas de sabão.
É a Ilha da grande Solidão…
 

Fernanda de Castro

in «A Ilha da Grande Solidão», 1962



Ker-Xavier Roussel, Les Saisons de la vie (1892-1895), Paris, musée d'Orsay.


"Temos uma vida, uma só. Mas muitos julgam que há sempre muito tempo e, por isso, tantas vezes, decidimos adiar o importante para desperdiçar tempo com o que pouco vale."

José Luís Nunes Martins
, in Filosofias, 79 Reflexões
 
 

terça-feira, 25 de abril de 2023

"A Democracia" - Texto de Fernando Pessoa

 

Johann Jakob Mock (1776-1824), Landsgemeinde in Trogen, Appenzell,  c. 1820
(Die Landsgemeinde in Trogen Canton Appenzell V.R. am 24. April 1814)



A Democracia


Contra a democracia invoca-se, em primeiro lugar, o argumento da ignorância das classes cujo voto predomina, porque seja maior o seu número. Mas como os sábios divergem tanto como essas classes, não parece haver vantagens na ciência para elucidação dos problemas. Onde há, sem dúvida, vantagens para a ciência é na escolha dos homens que devem governar; ora é precisamente isso que o voto escolhe. O povo não é apto a saber qual a direção que a política pátria deve tomar em tal período; mas os homens cultos também não o sabem, pois que divergem em tal ponto. Mas o que os homens cultos sabem, e o povo não sabe, é avaliar de competências para certos cargos. Propriamente, só financeiros é que sabem avaliar qual o indivíduo que melhor geriria as finanças de um povo; só militares, qual o melhor indivíduo para ministro da Guerra.

Cumpre distinguir entre a vontade da maioria e a vontade nacional. A vontade da maioria é consciente; a vontade nacional é inconsciente. Em determinada altura, determinada nação segue certo rumo; não o sabem os políticos, em geral, nem o sabe o povo. Ora o único sentido de "vontade nacional" será o sentido desse rumo. Quem é que o sente? Como esse rumo é inconsciente, fruto de não sabemos que leis sociais, só pode existir, ou nas camadas inconscientes do país, ou nas camadas conscientes que sejam representativas intelectualmente dessa inconsciência.

(Vence sempre aquele partido que representa a força em dado momento; e se esse partido, e não outro, representa a força, é porque as camadas inconscientes da nação delegaram nele misteriosamente executar a sua inconsciente vontade.) (ex.) [...]

Uma nação, em qualquer período, é três coisas: (1) uma relação com o passado; (2) uma relação com o presente, nacional e estrangeiro; (3) uma direção para o futuro. Assim, em todos os períodos, há forças que tendem a manter o que está, forças que tendem a adaptar o que existe às condições presentes, e forças que tendem a dirigir o presente para um norte previsto, visionado no futuro. Não se trata aqui de partidos políticos, mas de íntimas forças nacionais. Assim, hoje, em Portugal, o partido democrático é o que tende a manter a sociedade portuguesa no seu estilo passado; é o partido conservador, visto que resume os vícios e as atitudes dos partidos monárquicos. Depois, há a corrente representada pela extinta ditadura Pimenta de Castro que pretende adaptar o país às circunstâncias presentes, equilibrá-lo, chamá-lo à realidade das necessidades quotidianas da vida moderna. Acima destes dois partidos paira, um pouco desorganizadamente, aquela corrente que pretende dirigir a sociedade portuguesa para um fim, para uma nova conceção de si própria.

Surgiu lentamente, através da Escola de Coimbra, com Antero de Quental sobretudo; atravessou a "Renascença Portuguesa", do Porto; paira hoje, um tanto no ar, buscando apoio e orientação nítida. É isto que lhe pretendemos dar, dispondo-nos a construir uma orientação portuguesa.
s.d.

Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (1888–1935).
 Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.
 Lisboa: Ática, 1979. - 22.
 

segunda-feira, 24 de abril de 2023

"Viesse logo a noite" - Poema de Renata Pallottini



Moritz von Schwind (Austrian painter, born in Vienna, 1804–1871), Early Morning, 1858,  
Schack Collection  


Viesse logo a noite


Viesse logo a noite
Uma noite completa
Universal
Que matasse todas as guerras
De um sono profundo e total

Viesse logo a noite exemplar
Em que se amariam todas as gentes
Como se as gentes tivessem alma para amar

Viesse a noite dos silêncios
Todos cessassem as palavras
Provadas já, inutilmente,
E fosse a noite de somenos
Dos grilos, das corujas e dos ventos

Em que, de pé, só eu sentisse
A voz pacífica e feliz
Das feras soltas na planície


Renata Pallottini, Poesia Não Vende, 2016


domingo, 23 de abril de 2023

"Morreste-me" - Texto de José Luís Peixoto


Lovis Corinth (German painter, sculptor, university teacher, graphic artist, drawer and lithographer, 
1858–1925), Franz Heinrich Corinth, The Artist's Father in his Sickbed, 1888, oil on canvas, 61 × 70 cm.,
Städel Museum, Frankfurt.
 
 
Pai
 
 
«(…) A minha mãe, mãe verdadeira de todos nós, olhava-nos e sorria assim e sorria por isso. Felizes. Distantes da chuva grossa deste Inverno negro, distantes do teu corpo gelado. Lívido na luz trémula das velas, arranjadinho, penteado com água, vestido com o fato que usaste no casamento da minha irmã: o teu corpo gelado. E a Capela de São Pedro cheia de gente a abraçar-me, cheia de gente a dizer-me coitadinho e os meus pêsames e sinto muito, cheia de gente a procurar-me e a querer agarrar-me e prender-me e dizer coitadinho e os meus pêsames e sinto muito. Pai. Perder-te. E revivi o silêncio insepulto dos teus lábios mortos. E as sombras de nós, como se apenas esperassem estes pensamentos para se perderem, misturaram-se no preto. O pó das horas sem gente a vivê-las cobriu os móveis e o espaço fechado entre eles. As paredes voltaram a separar o Inverno noturno, permanente da casa e o ciclo alternado dos dias e do mundo, alheio a nós, para lá de nós. Comigo, a casa estava mais vazia. O frio entrava e, dentro de mim, solidificava. As várias sombras da sombra de mim, imóveis, passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios. E abri a janela. Muito longe do luto do meu sentir, do meu ser, ser mesmo, o sol-pôr a estender-se na aurora breve solene da nossa casa fechada, pai. E pensei não poderiam os homens morrer como morrem os dias? Assim, com pássaros a cantar sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo e o fresco suave fresco, a brisa leve a tremer as folhas pequenas das árvores, o mundo inerte ou a mover-se calmo e o silêncio a crescer natural, natural, o silêncio esperado, finalmente justo, finalmente digno. Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei o teu rosto que encontro. Contra nós, cresce a manhã, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, não te posso esconder, ainda há uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz, fina a recordar-me todo o silêncio desse silêncio que calaste. Pai».

 
 
"Morreste-me" de José Luís Peixoto
Quetzal Editores
 

SINOPSE 
 
"Morreste-me", texto que deu a conhecer o jovem escritor José Luís Peixoto, é uma obra intensa, avassaladora e comovente: é o relato da morte do pai mas, sobretudo, o relato do luto, e ao mesmo tempo uma homenagem, uma memória redentora.
Toda o livro é um diálogo com o pai e a sua ausência, apelando tanto aos motivos da recordação como da necessidade de sobreviver à perda.
Foi durante esse doloroso luto, mergulhado em sofrimento mas, também, transportado por uma melancolia salvadora, que José Luís Peixoto escreveu um livro que se tornou referência para leitores em todo o mundo que, partilhando ou não a sua experiência, se reconhecem numa obra intensa, poderosa, cheia de ternura e compaixão. Raramente a literatura portuguesa produziu um livro tão partilhado.  (daqui)
 
 
Lovis Corinth, Self-portrait with Skeleton, 1896, oil on canvas, 66 x 86 cm.,
Städtische Galerie im Lenbachhaus


Lovis Corinth ou Franz Heinrich Louis Corinth (Tapiau, Prússia Oriental, 21 de julho de 1858 — Zandvoort, Países Baixos, 17 de julho de 1925) foi um pintor alemão que, ao lado de Max Liebermann, Lesser Ury e Max Slevogt, foi um dos mais importantes representantes do impressionismo em seu país.
Em 1876 iniciou seus estudos na Escola de Belas Artes de Königsberg e, em 1880, em Munique com os professores Defregger e Löfftz. Passa dois anos na França onde frequenta a Academia Julian sob orientação de Bouguereau e Robert Fleury (1884 a 1886).
Volta à Alemanha, vivendo entre Berlim e Munique. A partir de 1901 fixa-se na capital. Corinth e os conceituados mestres Max Liebermann e Max Slevogt tornaram-se os principais expoentes do impressionismo alemão. Participaram também, com outros vanguardistas, do movimento denominado Secessão de Berlim, que haveria de mudar a conceção da arte germânica.
Do impressionismo, Corinth iria evoluir para a corrente expressionista, época em que foi professor da pintora brasileira Anita Malfatti.
Para os nazistas a arte de Corinth era qualificada como decadente. Está sepultado no Südwestkirchhof Stahnsdorf. (daqui)

 
Lovis Corinth, The Artist and His Family, 1909, oil on canvas,
Niedersächsisches Landesmuseum, Hanover

 
Lovis Corinth, Tyrolean Landscape with a Bridge, 1913, oil on canvas, 95.5 x 120.5 cm.,
Österreichische Galerie Belvedere, Vienna
 

Lovis Corinth, Walchensee Panorama, View from the Pulpit, 1924, oil on canvas, 100 x 200 cm.,
Wallraf–Richartz Museum, Cologne
 

sexta-feira, 21 de abril de 2023

"Ricochete" - Poema de Natália Correia


 John Constable (English Romantic painter, 1776–1837), Wivenhoe Park, 1816. 
National Gallery of Art, Washington


Ricochete

 
Que margens têm os rios?
para além das suas margens?
Que viagens são navios?
Que navios são viagens?

Que contrário é uma estrela?
Que estrela é este contrário
de imaginarmos por vê-la
tudo à volta imaginário?

Que paralelas partidas
nos articulam os braços
em formas interrompidas
para encarnar um espaço?

Que rua vai dar ao tempo?
Que tempo vai dar à rua
onde o relógio do vento
para na hora da lua?

Que palavra é o silêncio?
Que silêncio é esta voz
que num soluço suspenso
chora cá dentro por nós? 


in "Passaporte", 1958


 
 
 
 “Cada fracasso ensina ao homem algo que ele precisava aprender.” 

(Charles Dickens)


Portrait of Dickens, c. 1850, 
 
Charles Dickens foi um escritor inglês nascido a 7 de fevereiro de 1812, em Landport, Portsmouth, e falecido a 9 de junho de 1870, em Gadshill, Rochester.
Charles Dickens nasceu numa família modesta e foi obrigado a trabalhar, ainda criança, depois do pai ter sido preso por acumulação de dívidas. Nessa altura já vivia em Londres, para onde se mudou aos dois anos. Conseguiu fazer a instrução primária e foi então trabalhar como ajudante num escritório de advogados.
Aos 18 anos, também fazia leituras públicas no Museu Britânico. Entretanto, tornou-se jornalista, tendo elaborado crónicas sobre o parlamento britânico e textos para jornais humorísticos. Aos 21 anos iniciou a carreira de escritor, assinando contos e ensaios que eram publicados em jornais.
Cinco anos mais tarde, escreveu o livro The Pickwick Papers (As Aventuras Extraordinárias do Senhor Pickwick) e tornou-se, desde logo, um autor de sucesso. Passou então a publicar romances através de folhetins mensais que se tornaram muito populares. Com este livro, nasceu um novo tipo de mercado para os escritores ingleses, propondo obras mais baratas.
Oliver Twist, uma das obras mais conhecidas de Dickens, também foi inicialmente publicada em fascículos, entre 1837 e 1839. Neste livro, conta a história de um rapaz a quem é escondida uma valiosa herança e que acaba por integrar um bando de jovens ladrões.
Seguiu-se Nicholas Nikelby, lançado entre 1838 e 1839, que conta a história de um rapaz em busca de fortuna. Este romance foi adaptado ao cinema, em 1948, por David Lean. Em 1843, surgiu A Christmas carol (Cântico de Natal), que tornou famosa a personagem de Mr. Scrooge, nomeadamente através de diversas adaptações cinematográficas.
Em David Copperfield, acabado de publicar em 1850, Dickens aproveitou a sua experiência de trabalho numa fábrica para escrever a história.
Entre 1860 e 1861, publicou uma das suas últimas grandes obras, Great Expectations (Grandes Esperanças), onde conta a história de um órfão que é adotado por uma família rica e se torna um snob. Mas quando o seu protetor morre, tem de partir de novo do nada.
Inspirado na sua infância infeliz, Dickens lançou romances protagonizados por crianças, como David Copperfield, Hard Time (Tempos Difíceis) e Oliver Twist, onde estas são os heróis, mas onde há muito humor.
As suas obras denunciam a vida difícil do operário na sociedade industrial emergente e, em particular, a miséria das classes sociais mais baixas e a precariedade da infância, ao mesmo tempo que evidenciam uma arte narrativa caracterizada por uma grande penetração psicológica posta na composição dos caracteres.
Paralelamente à carreira de escritor, Charles Dickens viajou bastante fazendo campanha contra os males da sociedade. Dedicou-se também a dar conferências, nomeadamente nos Estados Unidos da América.
Depois de ter vivido em Londres, Itália, Suíça e França, Dickens estabeleceu-se em Gadshill (Inglaterra), em 1860, onde viria a morrer a 9 de junho de 1870. (daqui)
 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

"Soneto da Poesia Narrativa" - Poema de Vasco Graça Moura


Heinrich Campendonk (German, 1889–1957), Composition with 2 Figures, c. 1912


 Soneto da Poesia Narrativa


foi assim que cheguei à poesia narrativa:
nos poemas moviam-se figuras
e a essas figuras aconteciam coisas
e essas coisas tinham um sentido deslizante,
era uma espécie de hipálage do mundo:

com precisão a seta era dirigida
à maça equilibrada na cabeça da criança,
mas devolvia-se ao arco, depois
de varar o coração dos circunstantes
e era a vibração do arco a derrubar o fruto,

num zunido do ar que a flecha deslocava
na sua trajectória. foi assim que cheguei
à poesia narrativa: havia flores nos alpes
e a corda em vibração levava à música.

Vasco Graça Moura, Poemas com Pessoas
Lisboa: Quetzal Editores
 
 
Heinrich Campendonk, 20 Minuten vor 1 Uhr (20 minutes to 1 o'clock), 1922 
 


SEM ESTAÇÃO

月花もなくて酒のむ独りかな
tsuki hana mo / nakute sake nomu / hitori kana

(1689)

Que lua, que flor
nada, bebo umas doses
aqui sozinho.



Matsuo Bashō
,
in FRADE, Gustavo. Dez poemas de Matsuo Bashô.
Em Tese, Belo Horizonte, v. 20 n. 2 maio-ago. 2014, p. 137-146.
(aqui)
(Tradução Gustavo Frade) 
 

Heinrich Campendonk, 1916


Heinrich Campendonk (Krefeld, 3 de novembro de 1889—Amesterdão, 9 de maio de 1957) foi um pintor, gravador e vitralista alemão enquadrado no expressionismo, membro entre 1911 e 1912 do movimento artístico Der Blaue Reiter em Munique.
Quando o regime nazista chegou ao poder em 1933 foi um de artistas modernistas considerados como artistas degenerados a quem foi proibido expor. Mudou-se então para os Países Baixos onde passou o resto da sua vida trabalhando na Rijksakademie de Amesterdão, primeiro como professor de Arte Decorativa, depois de gravura e de pintura de vitrais e, finalmente, como diretor da Academia. Nunca regressou à Alemanha.
Entre os seus discípulos contam-se Willem Hofhuizen (1915–1986), Jaap Min (1914–1987) e Anton Rovers (1921-2003). (Daqui)
 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

"A uma ovelha" - Poema de Teixeira de Pascoaes


Franz von Lenbach (German painter, 1836–1904), A shepherd boy, 1860,  
 
 
A uma ovelha

 
Entre as meigas ovelhas pobrezinhas
Que eu guardo pelos montes, uma existe
Que anda longe, balindo, sempre triste
E vive só das ervas mais sequinhas.

Que pressentes na alma? Que adivinhas?
Etérea voz de dor acaso ouviste?
Que foi que tu nas nuvens descobriste?
Não és irmã das outras ovelhinhas!

Sobes às altas fragas inclinadas,
E contemplas o sol que desfalece
E as primeiras estrelas acordadas...

E assim ficas a olhar o céu profundo;
Faminta dessa relva que enverdece
Os outeiros e os vales do Outro Mundo.
 
 
Teixeira de Pascoaes, in Vida Etérea, 1906


Franz von Lenbach, Shepherd boy on a grass hill, ca. 1859, Lenbachhaus 
 

Sem Poesia não há Humanidade
 
 

“Sem Poesia não há Humanidade. É ela a mais profunda e a mais etérea manifestação da nossa alma. A intuição poética ou orfaica antecede, como fonte original, o conhecimento euclidiano ou científico. E nos dá o sentido mais perfeito e harmónico da vida. Aperfeiçoando o ser humano, afasta-o do antropoide e aproxima-o dos antropos. Que a mocidade atual, obcecada pela bola e pelo cinema, reduzida quase a uma fotografia peculiar e uma espécie de máquina de fazer pontapés, despreza o seu aperfeiçoamento moral; e, com o seu fato de macaco, prefere regressar à Selva a regressar ao Paraíso. E assim, igualando-se aos bichos, mente ao seu destino, que é ser o coração e a consciência do Universo: o sagrado coração e o santo espírito. Eis o destino do homem, desde que se tornou consciente. E tornou-se consciente, porque tal acontecimento estava contido nas possibilidades da Natureza. Sim, a nossa consciência é a própria Natureza numa autocontemplação maravilhosa. Ou é o próprio Criador numa visão da sua obra, através do homem. E, vendo-a, desejou corrigi-la, transfigurando-se em Redentor.” 

Teixeira de Pascoaes (1877-1952), in “A Saudade e o Saudosismo – Dispersos e Opúsculos (1998)
 
[Em A Saudade e o Saudosismo apresenta-se um conjunto de artigos dispersos, escritos por Teixeira de Pascoaes de 1910 a 1952, mas que o autor não pensou publicar em vida.
Organizado cronologicamente por Pinharanda Gomes, este livro inclui os artigos iniciais de  A Águia e os que aludem ao estatuto doutrinal da Renascença Portuguesa, bem como o núcleo da polémica com António Sérgio, as conferências sobre a “Saudade”, e os estudos de alguns poetas, como António de Magalhães e João Lúcio.]
 

Teixeira de Pascoaes por Bottelho (1964-2014) 
 
 
 
Teixeira de Pascoaes
 Por Maria das Graças Moreira de Sá
 

Uma das figuras mais proeminentes da literatura e da cultura portuguesas do século XX, Teixeira de Pascoaes (Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos) é estruturalmente um poeta-filósofo, mesmo quando se instaura como mentor do Saudosismo ou resvala da poesia para outros géneros literários, cujo hibridismo (de géneros e de linguagem) tem vindo a ser explorado pela crítica moderna.

Nascido a 2 de novembro de 1877, em Amarante (Gatão), cursa Direito em Coimbra (1896-1901) e chega a exercer profissão, durante dez anos, no Porto, entregando-se depois, e até à data da sua morte (1952), à escrita, recolhido no solar cujo nome adotou (Pascoaes), no seio da paisagem da sua intimidade – o Marão e o Tâmega, que eleva, enquanto canto à Terra e à Natureza, em termos míticos e místicos, a uma figura integral do Mundo e do destino humano.

A sua estreia no parnaso português, numa procura de rumo entre as diversas tendências herdadas da viragem do século, não foi brilhante. Em 1895 publica a primeira obra poética, Embriões, que merece a crítica menos favorável de Guerra Junqueiro. Nas obras que imediatamente se seguem, Belo I (1896) e Belo II (1897) e À Minha Alma (1898), transparece já uma vivência original, que toma o Homem como centro e caminho de uma ascensão espiritual crescente, transformando o material em espiritual, a memória em sonho, o Real em Irreal, a presença corpórea em ausência saudosa. As coordenadas do seu universo imaginário, já imbuído do que mais tarde chamaria Saudade, estavam lançadas. Mas a sua consagração só seria alcançada com Sempre (1898), que simboliza o encontro do poeta consigo mesmo. Nesta obra estão já patentes traços que tornarão a sua poesia inconfundível: a fusão do subjetivo e do objetivo; o sentimento religioso das coisas, esse além que, num mesmo instante, se esconde e se revela nas sombras, nos fantasmas e nos espectros; o fascínio pelo mistério e pela substância enigmática de tudo o que o rodeia; a vocação mística, que tudo transforma.

Depois de Sempre, o seu ímpeto de criação parece imparável: surgem Terra Proibida (1900), À Ventura (1901), Jesus e Pã (1903), Para a Luz (1904), Vida Etérea (1906), As Sombras (1907), Senhora da Noite (1909), Marânus (1911) e Regresso ao Paraíso (1912), ou seja, grandes coletâneas de poesia, cuja redação acompanha a reformulação consecutiva da sua obra, em que refunde, amplia e transfere poemas, o que demonstra, contrariamente à visão tradicional que se possuía do poeta, uma atenção extrema pelo aperfeiçoamento formal da sua escrita. Um breve apontamento a algumas destas composições: Para a Luz, dedicado ao irmão que se suicidou, representa, pelos poemas de intuito realista e social que contém, um certo desvio a uma poesia vocacionada para a transcendência; Vida Etérea é, enquanto hino à harmonia cósmica e à procura ansiosa de Absoluto, considerado um dos melhores livros do poeta; As Sombras têm merecido destaque por mais tipicamente desenharem a atmosfera espiritual pascoaesiana; de Senhora da Noite afirma a crítica ter inspirado os dois “finais” de “Ode de Álvaro de Campos”; finalmente, em Jesus e Pã, destaca-se o pendor filosófico do poema, onde estão já presentes os princípios orientadores do Saudosismo como doutrina de restauração nacional, que consubstanciarão também Marânus e Regresso ao Paraíso. De fôlego e estrutura épica, estas duas obras exaltam a Saudade, embora o cunho nacionalista da primeira (a Saudade como deusa portuguesa da redenção) se veja, na segunda, amplificado a uma dimensão universal (a Saudade como valor humano mais perfeito que reconduzirá o Homem ao Paraíso).

Serão estes dois vetores da Saudade – o nacional e o universal – que ditarão a cruzada saudosista do poeta nas páginas d’A Águia, de que é o diretor artístico desde que esta revista se torna órgão da “Renascença Portuguesa” em 1912. Vulto maior desta Associação, transforma-se no teorizador, por excelência, da Saudade, nos seus aspetos políticos, filosóficos e estéticos, entendendo esta como sentimento-ideia caracterizador da fisionomia lusitana e motor do ressurgimento nacional, mas também, enquanto ideia, como criadora de tensões dinâmicas (Lembrança/Esperança, Passado/Futuro, Matéria/Espírito, etc.), nunca abandonadas por completo na sua obra posterior. Desta atividade, a que o seu nome ficou sempre ligado e que obscureceu, durante largos anos, a potencialidade estética da sua escrita, incluem-se textos e conferências como O Espírito Lusitano e o Saudosismo (1912), O Génio Português na sua Expressão Filosófica, Poética e Religiosa (1913), A Era Lusíada (1914), Arte de Ser Português (1915) e, já afastado da revista onde se mantém até 1917, Os Poetas Lusíadas (1919). Pela força da sua personalidade e pela grandeza da sua obra, reúne à sua volta, apesar da célebre polémica sobre a Saudade que, nas páginas d’ A Águia, o opôs a António Sérgio, uma série de poetas de tendências afins, os chamados poetas saudosistas, de que se salientam aqui António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira, Afonso Duarte ou Mário Beirão.

Depois de Elegias (1912) e de O Doido e a Morte (1913), onde, com mais intensidade, a conceção filosófica se une ao lirismo emotivo, a edição de Verbo Escuro (1914) inaugura uma nova via de expressão, a da prosa poética. Prosa e verso passam a coexistir na obra do autor. Citem-se, por exemplo, O Bailado (1921) e O Pobre Tolo (1924), onde os aforismos invadem a tónica lírica da escrita, ou os Cantos Indecisos (1921) e os Cânticos (1925), ou, ainda, a versão, em elegia satírica, de O Pobre Tolo (1930). O acento lírico da prosa e o prosaísmo filosófico do verso tornam-se uma constante na obra de Pascoaes. Desta época, e ainda em verso, são o drama D. Carlos (1925), espécie de contrapanfleto da Pátria de Junqueiro – experiência teatral a que se junta a colaboração com Raul Brandão na tragicomédia Jesus Cristo em Lisboa (1924) –, Painel (1935), curiosa panorâmica de Portugal vislumbrada do Marão, Versos Pobres (1949) e Últimos Versos (1953). A Versos Brancos, de que ainda hoje se não conhece a totalidade das composições, referia-se Pascoaes já como “pensamentos metrificados”.

A partir, pois, de 1914, a prosa conquista terreno no panorama literário do autor, com grande variedade de géneros e de interesses, desembocando na redação de grandes biografias que lhe deram renome internacional. A Beira (Num Relâmpago), de 1916, é um livro de viagens que propicia a entrada no mundo imagético do autor – tal como acontece em Duplo Passeio (1942) –, onde cada pormenor avistado, paisagem ou gesta humana, é símbolo de uma realidade transcendente, desveladora do sentido mais íntimo das coisas; O Bailado (1921) constitui-se como, nas palavras de Pascoaes, “uma espécie de romaria”, viagem pelos “outros” na tentativa de construção de um “eu” simultaneamente individual e universal; O Pobre Tolo, de teor autocaricatural, dá conta do drama da existência humana na sua consciência de Ser e de não Ser ao mesmo tempo; o Livro de Memórias (1927), mais do que um documento histórico preciso, é uma anotação autobiográfica que prima pela reelaboração imposta pela memória, tal como acontece em Uma Fábula (o Advogado e o Poeta), de publicação póstuma em 1978.

Mas é em 1934 que Pascoaes envereda pelas biografias romanceadas que lhe abrem novos caminhos na perscrutação da alma humana. Todos os biografados são figuras relevantes na história espiritual do Homem ou são movidos por sentimentos ou ideias de alcance universal. Irrompem, assim, São Paulo (1934), São Jerónimo (1936), Napoleão (1940), O Penitente: Camilo Castelo Branco (1942) e Santo Agostinho (1945). Porque polémicas (sobretudo a primeira), as biografias contribuíram para chamar, mais uma vez, a atenção do nosso meio cultural para a obra de Pascoaes. Talvez por isso tenha o autor sentido a necessidade de esclarecer quer o seu pensamento poético, o que faz em O Homem Universal (1937), quer o seu conceito religioso, que explicita em A Minha Cartilha, escrita em 1951, mas só editada em 1954.

Duas obras de ficção narrativa marcam ainda a última fase do percurso vivencial do poeta: O Empecido (1950) e Dois Jornalistas (1951), onde, respetivamente, o tema da Saudade e o do Medo são tratados com uma ironia que mais realça o sentido da dúvida que se pretende inculcar como fonte dinamizadora do sentir e do pensar do Homem.

Herdando, pois, o neogarrettismo e o idealismo finissecular, este antipositivista e antinaturalista por definição (com ecos de Antero, Junqueiro, Gomes Leal, António Nobre e da poética simbolista do Vago e do Indefinido), Teixeira de Pascoaes cria algo de novo na literatura portuguesa com o seu universo imaginário virado para o mistério da alma, para a essência das coisas, para o paradoxo da existência em que tudo e o seu contrário se implicam numa amálgama inesperada, feita de antinomias que, conceptualmente, se harmonizam. Desligando-o do Saudosismo de escola, que, descontextualizado, passou a ser lido como sinónimo de nacionalismo reacionário, a crítica dos últimos vinte anos tem vindo a valorizar, no campo literário e no filosófico, inúmeros aspetos da modernidade de Pascoaes, quer pela conceção filosófica do Homem (ser imaginante e imaginário) como substância mesma da Realidade (Eduardo Lourenço), quer pela virtualidade da sua escrita, com aspetos ainda hoje surpreendentes. A publicação, em curso, da imensa obra de Teixeira de Pascoaes pela Assírio & Alvim, depois de ter ficado incompleto o projeto das suas Obras Completas (ed. de Jacinto do Prado Coelho) pela Livraria Bertrand, os numerosos estudos críticos entretanto surgidos e, até, a recente atenção pela sua obra plástica, revelam o interesse renovado na redescoberta de Pascoaes.

Bibliografia ativa sumária

(por ordem cronológica da 1ªedição)

  • Belo / À Minha Alma / Sempre / Terra Proibida [1896-97 / 1898 / 1898 / 1900], introdução de António Cândido Franco, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997.
  • As Sombras / À Ventura / Jesus e Pã [1907 / 1901 / 1903], introdução de Gil de Carvalho, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.
  • Para a Luz / Vida Etérea / Elegias / O Doido e a Morte [1904 / 1906 / 1912 / 1913], prefácio de A. Fernandes da Fonseca, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.
  • Senhora da Noite / Verbo Escuro [1909 / 1914], apresentação de Mário Garcia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999.
  • Marânus [1911], prefácio de Eduardo Lourenço, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990.
  • Regresso ao Paraíso [1912], introdução de Agostinho da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1986.
  • Arte de Ser Português [1915], introdução de Miguel Esteves Cardoso, 2ªed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.
  • A Beira (Num Relâmpago) / Duplo Passeio [1916 / 1942], introdução de António Mega Ferreira, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994.
  • Os Poetas Lusíadas [1919], introdução intitulada “Reflexões sobre Teixeira de Pascoaes por Joaquim de Carvalho refletidas por Mário Cesariny”, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987.
  • O Bailado [1921], introdução de Alfredo Margarido, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987.
  • O Pobre Tolo, Prosa e Poesia [1924 / 1930], apresentação de José Tolentino Mendonça, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000.
  • Livro de Memórias [1927], prefácio de António Cândido Franco, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001.
  • São Paulo [1934], apresentação de António-Pedro de Vasconcelos, ed. de António Cândido Franco, 2ª ed. Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.
  • São Jerónimo e a Trovoada [1936], introdução de António M. Feijó, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992.
  • O Homem Universal e Outros Escritos [1937 / Outras datas], fixação do texto, prefácio e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.
  • O Penitente (Camilo Castelo Branco) [1942], apresentação de António-Pedro Vasconcelos, ed. de António Cândido Franco, 2ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.
  • Epistolário Ibérico, Cartas de Unamuno e Pascoaes [1957], introdução de José Bento, Lisboa, Assírio & Alvim, 1986.
  • A Saudade e o Saudosismo (Dispersos e Opúsculos), compilação, introdução, fixação do texto e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.
  • Teixeira de Pascoaes, Desenhos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.
  • Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita (Opúsculos e Dispersos), compilação, apresentação e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.

Bibliografia passiva sumária

  • Andrade, Eugénio e Gonçalves, Dario, Uma Casa para a Poesia, Amarante, Edições do Tâmega, 1990.
  • Barata, Gilda Nunes, A Presença na Ausência em Teixeira de Pascoaes e Mário Beirão, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004.
  • Casulo, José Carlos de Oliveira, Filosofia da Educação em Teixeira de Pascoaes, Braga, Universidade do Minho, 1997.
  • Cesariny, Mário [antologia organizada por; ed. António Cândido Franco], Poesia de Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.
    • [selecção e organização de], Aforismos, Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.
  • Coelho, Jacinto do Prado, A Poesia de Teixeira de Pascoaes e Outros Escritos Pascoaesianos [seguido de] A Educação do Sentimento Poético (org. de A. Cândido Franco e Luís Amaro, prefácio de Fernando Guimarães), 2ª ed., Porto Lello Editores, 1999.
  • Coutinho, Jorge, O Pensamento de Teixeira de Pascoaes – Estudo Hermenêutico e Crítico, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, 1995.
  • Dias, J.M.de Barros, Miguel de Unamuno e Teixeira de Pascoaes, Compromissos Plenos para a Educação dos Povos Peninsulares, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002.
  • Franco, António Cândido, A Literatura de Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000.
  • Uma Bibliografia de Teixeira de Pascoaes [Separata da Obra A Literatura de Teixeira de Pascoaes], Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000.
  • Garcia, Mário, Teixeira de Pascoaes: Contribuição para o Estudo da sua Personalidade e para a Leitura Crítica da sua Obra, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 1976.
  • Mesquita, Armindo Teixeira, Espiritualidade Poética de Teixeira de Pascoaes, Guimarães, Editora Cidade Berço, 2001.
  • Morão, Paula e Sá, Maria das Graças Moreira (org. de), Encontro com Teixeira de Pascoaes – No Cinquentenário da sua Morte, Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri e Departamento de Literaturas Românicas da Universidade de Lisboa, 2004.
  • Nova Renascença, Revista trimestral de Cultura, Actas do “Colóquio sobre Teixeira de Pascoaes”, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, Inverno / Verão, 1997.
  • Patrício, Manuel Ferreira, O Messianismo de Teixeira de Pascoaes e a Educação dos Portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1996.
  • Sá, Maria das Graças Moreira de, Estética da Saudade em Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992.
  • O Essencial sobre Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999.
  • Samuel, Paulo, Teixeira de Pascoaes na Revista “A Águia”, Edições Caixotim, 2004.
  • Viajar com… Teixeira de Pascoaes, Edições Caixotim, 2004.
  • Sena, Jorge de [estudo prefacial, selecção e notas de], A Poesia de Teixeira de Pascoaes, Porto, Brasília Editora, 1982.
  • Teixeira de Pascoaes, Actas do “Colóquio Olhares – Cinquenta anos da Morte de Teixeira de Pascoaes”, Revista da Faculdade de Letras, Série de Filosofia, II série, Volume XXI, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004. (Daqui)