segunda-feira, 27 de setembro de 2021

"Lavoura" - Poema de Aníbal Beça


  Albert Anker, Still life: Coffee and Potatoes, 1897 
 

Lavoura


Calma colheita do verbo sereno
Madura mansidão que se apresenta
Nessa escolha do fruto mais ameno
Servido à mesa suado e tão sedento.

Palavras semeadas num terreno
Quintal comum, adubo que se inventa
Na lida da lavoura em plano pleno
De quem se sabe longe da tormenta.

O fruto verde envolto nas lianas
Há muito debelado do seu travo
Hoje se escolhe o doce em filigranas.

No duro aprendizado fiz-me escravo
Cavalo de um arado em terra plana
Transpirando crepúsculos no estábulo.


Aníbal Beça
(1946-2009) 
 
Anibal Augusto Ferro de Madureira Beça Neto nasceu em Manaus em 13 de setembro de 1946. Poeta, compositor e jornalista faz parte da geração de poetas amazonenses denominada Pós-Madrugada, surgida no final da década de sessenta. Membro da UBE e envolvido também com teatro e artes plásticas, tem dado efetiva contribuição à divulgação da cultura amazónica. Membro da Academia Amazonense de Letras e Presidente do Conselho Municipal de Cultura de Manaus, de sua obra poética poderiam ser destacados os livros: Convite frugal (1966), Filhos da Várzea (1984), Dez haicais para os olhos da amada e outros poemas tocantes (1984), Itinerário Poético da noite desmedida à mínima fratura (1987), Suíte para os habitantes da noite (1994) - com o qual ganhou o Prémio Nestlé de Literatura, na categoria Poesia - e Banda de asa (1998). (Daqui)
 
 
Albert Anker, Still life: Moderateness, 1896
 

Sozinho na casa.
Lá fora o canto das cigarras —
ah, se não fossem elas...
 
(Haicai / Haikai / Haiku)
 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

"Vida" - Poema de Camilo Pessanha

 
Vincent van Gogh, View of Arles with Irises in the Foreground, 1888, Van Gogh Museum 
 
 
 
Vida


Choveu! E logo da terra humosa
Irrompe o campo das liliáceas.
Foi bem fecunda, a estação pluviosa!
Que vigor no campo das liliáceas!

Calquem. Recalquem, não o afogam.
Deixem. Não calquem. Que tudo invadam.
Não as extinguem. Porque as degradam?
Para que as calcam? Não as afogam.

Olhem o fogo que anda na serra.
É a queimada... Que lumaréu!
Podem calcá-lo, deitar-lhe terra,
Que não apagam o lumaréu.

Deixem! Não calquem! Deixem arder.
Se aqui o pisam, rebenta além.
- E se arde tudo? - Isso que tem?
Deitam-lhe fogo, é para arder...

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'




 
Camilo Pessanha
[N. Casal de Leão, Coimbra, 7-09-1867 – m. Macau, 1-03-1926]

O "único verdadeiro simbolista da literatura portuguesa e, em absoluto, um dos maiores intérpretes do Simbolismo europeu", nas palavras de Barbara Spaggiari, teve como pai Francisco António de Almeida Pessanha, um estudante de Direito (mais tarde juiz), e como mãe uma criada, Maria do Espírito Santo Duarte Nunes Pereira. Será significativo referir que C. Pessanha nasce no ano da morte de Baudelaire, que, dez anos antes, com a sua "teoria das correspondências", havia lançado as bases do simbolismo francês na obra Les Fleurs du Mal.

 Em 1883 iniciou os seus estudos em Direito, na Universidade do Coimbra, onde veio a tomar contacto com as novas ideias literárias, originárias de França, com expressão nas revistas Boémia Nova e Os Insubmissos. Datam dessa época os seus primeiros trabalhos literários, de pouca repercussão. 

Em 1890 António Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio e Raul Brandão formam no Porto o grupo dos "Nefelibatas", ao qual Eugénio de Castro (que publica nesse ano Oaristos, introduzindo o Simbolismo, como escola, em Portugal) e Pessanha aderem momentaneamente. As adesões deste último aos movimentos culturais da época são, aliás, sempre pouco evidentes, atribuindo-se-lhe várias razões para tal procedimento: insegurança, orgulho, apatia e tendência para o isolamento. Já então Pessanha (de constituição física débil, por natureza) se ressentia dos anos de boémia vividos em Coimbra, onde o absinto era a sua bebida favorita e onde várias crises nervosas o haviam abatido. 

Em 1890, também, a Grã-Bretanha impõe o Ultimatum a Portugal. Em 1891 termina o seu curso. No ano seguinte é publicado em Paris o de António Nobre. Pessanha encontra-se então em Trás-os-Montes, exercendo advocacia, donde partirá, no ano seguinte, acompanhado de seu primo Alberto Osório de Castro, para Óbidos. Decidiu-se então, devido à desilusão que a vida na província lhe havia provocado e às humilhações sofridas por Portugal no campo político, a procurar uma nova vida no Oriente, para onde concorreu a uma vaga de professor no Liceu de Macau e onde foi colocado em 1894. Aí foi, durante três anos, companheiro de Wenceslau de Moraes e exerceu as actividades de conservador do Registo Predial (1900) e juiz. Também aí ganhou o gosto pelo coleccionismo de objectos raros e pelo estudo de literatura e língua chinesa. 

C. Pessanha teve uma vida íntima atribulada, dividida entre o consumo demasiado de ópio e a relação com uma companheira chinesa que lhe deu um filho - João Manuel - nascido em 1896 e falecido alguns anos depois, devido ao ópio e à tuberculose. 1896 é, por coincidência, o ano em que morre Verlaine (tido como autor de cabeceira de P.), que em 1874 havia publicado Romances sans Paroles, dando à luz a máxima "de la musique avant toute chose". 

O Simbolismo surge como uma corrente literária que estabelece a ligação entre a época romântica e a contemporânea, privilegiando o significante em relação ao significado, a melodia assim como a sugestão, a sensação difusa, a imaginação e o fascínio pelo hermetismo e pela magia verbal. E é esta tendência da poesia para a música que P. irá cultivar na sua própria poética. 

Em 1899 alguns poemas seus são publicados na revista Ave Azul e em jornais de província, na sequência da sua segunda estada na metrópole entre 1899-1900. A primeira teria sido entre 1896-1897, numa possível tentativa de recuperação da degradação física para a qual caminhava a passos largos.

 Regressou a Portugal entre 1905-1909 e assistiu ao regicídio de D. Carlos e do príncipe herdeiro. Voltará por uma última vez em Setembro de 1915 (permanecendo até Março de 1916), ano da publicação dos dois números únicos da revista Orpheu. Neste período, possivelmente, terá sido elaborada a carta que Fernando Pessoa escreveu ao poeta e em que a dado passo se pode ler: "Se estivessem inteiramente escondidos da publicidade, [...] seria, da parte de V. Ex.ª, lamentável mas explicável. O que se dá, porém não se explica; visto que, sendo de todos mais ou menos conhecidos [...], eles não se encontram acessíveis a um público maior e mais permanente na forma normal da letra redonda. [...] sei-os de cor, aqueles cujas cópias tenho, e eles são para mim fonte contínua de exaltação estética. [...] é porque muito admiro esses poemas, e porque muito lamento o seu actual carácter de inéditos (quando, aliás, correm, estropiados, de boca em boca nos cafés), que ouso endereçar a V. Ex.ª esta carta, com o pedido que contém." 

O pedido era de que alguns poemas fossem publicados na edição de Orpheu 3. E também Mário de Sá-Carneiro se havia já manifestado, em entrevista ao jornal República, em 1914, sobre a inexplicável ausência de edição da obra de P.: "A minha vibração emocional, a melhor obra de arte escrita dos últimos trinta anos [...] é um livro que não está publicado - seria com efeito aquele, imperial, que reunisse os poemas inéditos de Camilo P. o grande ritmista." António José Saraiva afirmará mesmo: " [...] A sua presença indirecta na literatura portuguesa é anterior ao seu aparecimento perante o público, visto que já Pessoa e Sá-Carneiro lhe devem tanto, pelo menos, como a Cesário ou a Nobre." 

No ano do suicídio de Sá-Carneiro, Luís de Montalvor publica quinze poemas de P. no n.º 1 da revista Centauro. Mas só em 1920 Ana de Castro Osório edita um conjunto significativo da produção de P., sob o título de Clepsydra, reunindo poemas ditados de memória pelo próprio autor, sob a insistência de seu filho João de Castro Osório (grande admirador de P.), que, em 1969, publicará uma edição mais completa e fiel. 

Ao título Clepsydra atribuem-se muitas e variadas origens, sendo, porém, a mais considerada a que remete para Baudelaire, no seu poema "L'horloge" e no verso "Le gouffre a toujours soif; la clepsydre se vide". A clepsidra é tomada como um objecto que participa das noções concreta abstracta de tempo. Como afirma Jacinto do Prado Coelho: "[...] inculca o sentimento melancólico de que a vida corre no tempo, de que o próprio Homem é constante passagem e se esvai no tempo". 

E é assim que Pessanha, numa poética de exercício da palavra, procurando um entendimento entre os signos e os sinais do universo, sugerindo e subentendendo, constata a relação existente entre a passagem da vida e a inevitável aproximação da morte.

 O tempo das clepsidras é um tempo linear, angustiante, que marca a hemorragia constante dos segundos. Existe em Clepsydra um plano teórico que faz reconhecer desde "Inscrição" (o poema que abre a obra, remetendo para as inscrições tumulares) até "Poema final" (em que o eu esgotou a sua vida, entrando na morte) uma unidade. O plano da contemplação subjaz à obra, o que levou, por exemplo, Esther de Lemos a afirmar: "[...] falta um verdadeiro sensualismo, uma paixão ardente que permita participar fisicamente na realidade". 

Pessanha abandonou a vida a 1 de Março de 1926, vítima de tuberculose pulmonar».

in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses
[Camilo Pessanha (Biografia. Bibliografia)]
 
 

 
 
"Não é a resposta que nos ilumina, mas sim a pergunta." 
 
 
Eugène Ionesco, dramaturgo francês, de origem romena, nascido em 1912 e falecido em 1994, parodiou o absurdo da existência em La Cantatrice chauve (A Cantora Careca, 1950), La Leçon (A Aula, 1951) e Les Chaises (As Cadeiras, 1952). A morte é o tema de Rhinocéros (Rinoceronte, 1959) e Le roi se meurt (O Rei está a morrer, 1962), enquanto a política é o alvo de Jeux de massacre (1970) e Macbeth (1972). Publicou ainda Journal en miettes (1967-68) e vários ensaios sobre teatro coligidos em Notes et Contre-notes (1962). (Daqui)
 

terça-feira, 21 de setembro de 2021

"Raízes" - Poema de Carlos de Assumpção


Adolf Erbslöh (German, 1881–1947), Haus im Garten, 1912,



Raízes

Para Aristides Barbosa


Estou de volta pra casa
Estou de volta a meu lar
A vida aqui tem sentido
Aqui é que é meu lugar

Oxum passeia na praça
Xangô conversa no bar
Hoje de volta pra casa
Convivo com os Orixás

Estou de volta pra casa
Aqui tudo é natural
Té felicidade é fruto
Que se consegue alcançar

Enfim reencontro a fonte
Donde axé jorrando está
Estou de volta pra casa
Estou de volta a meu lar

A vida aqui tem sentido
Aqui é que é meu lugar
Aqui tem congada samba
Batuque pra se dançar

Tem mulheres lindas lindas
Lindas feito lemanjá
Mulheres de largas ancas
E doce encanto no olhar

Estou de volta pra casa
Estou de volta a meu lar
A vida aqui tem sentido
Aqui é que é meu lugar

Agora livre de abismo
Livre pássaro a voar
Aqui tenho vida plena
Com a bênção dos Orixás

Estou de volta pra casa
Estou de volta a meu lar
Hoje vivo como vive
Caracol no meu quintal.
 
 
Carlos de Assumpção
(Quilombo, p. 73-74)
 
 

 Adolf Erbslöh, Autorretrato, 1928
 
 
 "As ideias são as raízes da criação." 
 
 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

"Doente" - Poema de José Duro

 
Franz Kline (American, 1910-1962), Untitled 
(Abstract Composition in Green), Oil on canvas.
 

 Doente
 
 
Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d'olhar cálido...
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido,
Comentam entre si: - coitado, está por pouco!...

Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.

Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço...

Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.

E amando doidamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar...

São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Ou como a aspiração de Charles Baudelaire.

Apraz-me o simbolismo ingénito das coisas...
E aos lábios da Mulher, a desfazer-se em beijos,
Prefiro os lábios maus das negregadas loisas,
Abrindo num ancelar de mórbidos desejos.

E é vão que medito e é em vão que sonho:
Meu coração morreu, minha alma é quase morta...
Já sinto emurchecer no crânio a flor do Sonho,
E oiço a Morte bater, sinistra, à minha porta...

Estou farto de sofrer, o sofrimento cansa,
E, por maior desgraça e por maior tormento,
Chego a julgar que tenho - estúpida lembrança -
Uma alma de poeta e um pouco de talento!

A doença que me mata é moral e física!
De que me serve a mim agora ter esperanças,
Se eu não posso beijar as trémulas crianças,
Porque ao meu lábio aflui o tóxico da tísica?

E morro assim tão novo! Ainda não há um mês,
Perguntei ao Doutor: - Então?...- Hei de curá-lo...
Porém já não me importo, é bom morrer, deixá-lo!
Que morrer - é dormir... dormir... sonhar talvez...

Por isso irei sonhar debaixo dum cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos...
O poeta nunca morre embora seja agreste
A sua aspiração e tristes os seus versos!
 
 
José Duro, in Fel.
 
 
José Duro
 

[“Fel é uma espécie de diário poético dos últimos dias de José Duro (1875-1899). O poema Doente, que encerra o livro, é uma longa confissão de amargura e desespero de um jovem que sabe já que a morte está muito próxima.” — Ademar Santos]


domingo, 12 de setembro de 2021

"Os Cinco Sentidos" - Poema de Almeida Garrett


Albert Henry Collings (English, 1868-1947), Girl with lilac, Watercolor 
 


Os Cinco Sentidos


São belas - bem o sei, essas estrelas,
Mil cores - divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:
Em toda a natureza
Não vejo outra beleza
Senão a ti - a ti!

Divina - ai! sim, será a voz que afina
Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.
será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia,
Nem sinto outra harmonia
Senão a ti - a ti!

Respira - n'aura que entre as flores gira,
Celeste - incenso de perfume agreste,
Sei... não sinto: minha alma não aspira,
Não percebe, não toma
Senão o doce aroma
Que vem de ti - de ti!

Formosos - são os pomos saborosos,
É um mimo - de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão... mas é de beijos,
É só de ti - de ti!

Macia - deve a relva luzidia
Do leito - ser por certo em que me deito.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias,
Tocar noutras delícias
Senão em ti! - em ti!

A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos num confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;
Em ti, por ti deliram.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti;
E quando venha a morte,
Será morrer por ti.


Almeida Garrett
,
in 'Folhas Caídas'


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

"Poema do Coração" - António Gedeão


William Arthur Breakspeare (1855/1914), "The First Kiss", Date unknown



Poema do Coração 


Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e também a Bondade,
e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração
Então poderia dizer-vos:
"Meus amados irmãos,
falo-vos do coração",
ou então:
"com o coração nas mãos".

Mas o meu coração é como o dos compêndios
Tem duas válvulas (a tricúspide e a mitral)
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).
O sangue a circular contrai-os e distende-os
segundo a obrigação das leis dos movimentos.

Por vezes acontece
ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados
e uma lâmina baça e agreste, que endurece
a luz nos olhos em bisel cortados.
Parece então que o coração estremece.
Mas não.
Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,
que esse vento que sopra e ateia os incêndios,
é coisa do simpático.
Vem tudo nos compêndios.

Então meninos!
Vamos à lição!
Em quantas partes se divide o coração?"


[Rómulo de Carvalho (pseudónimo António Gedeão)]



Snow Patrol - Chasing Cars


“O coração tem razões que a razão desconhece.” 

(Blaise Pascal)

[Blaise Pascal (Clermont-Ferrand, 19 de Junho de 1623 — Paris, 19 de Agosto de 1662) foi um físico, matemático, filósofo moralista e teólogo francês.]