sábado, 30 de julho de 2011

"Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo" - Texto de Miguel Torga


Edgar Walter Simmons (1917-1994), Paisagem


"Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras, e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Ângelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerez, Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare... Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!"

Miguel Torga, in "Diário (1942)"

sexta-feira, 29 de julho de 2011

"Os Amigos" - Poema de Camilo Castelo Branco


Pintura de Edgar Walter



Os Amigos


Amigos cento e dez, e talvez mais, 
Eu já contei. Vaidades que eu sentia! 
Supus que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais, 
Tão zelosos das leis da cortesia, 
Que eu, já farto de os ver, me escapulia 
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente 
Que não desfez os laços quase rotos. 

- Que vamos nós (diziam) lá fazer? 
Se ele está cego, não nos pode ver...
Que cento e nove impávidos marotos!


Camilo Castelo Branco 



Camilo Castelo Branco, retratado por Bottelho 


Novelista entre os anos 50 e 80 do século XIX e um dos grandes génios da Literatura Portuguesa, Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu a 16 de março de 1825, em Lisboa, e suicidou-se a 1 de junho de 1890 em S. Miguel de Seide, Famalicão. Órfão de mãe aos dois anos e de pai aos nove, passou, a partir desta idade, a viver em Vila Real com uma tia paterna. Aos 16 anos, casou-se com Joaquina Pereira, em Friúme, Ribeira de Pena. Em 1844, instalou-se no Porto com o intuito de cursar Medicina, acabando por não passar do 2º ano. Em 1845, estreou-se na poesia e no ano seguinte no teatro e também no jornalismo - atividade, aliás, que nunca abandonaria. Viúvo desde 1847, fixou-se definitivamente no Porto a partir de 1848 (onde, em 1846, já estivera preso por ter raptado Patrícia Emília, um dos seus tumultuosos amores, de quem teria uma filha). De 1849 a 1851 consolidou a sua atividade jornalística, retomou o teatro, estreou-se no romance com Anátema (1851), conheceu a alta-roda portuense bem como os meios boémios e foi protagonista de aventuras romanescas.

Em 1853, abandonou o curso de Teologia no Seminário Episcopal, fundou vários jornais e em 1855 tornou-se o redator principal de O Porto e de Carta. Nessa altura, o seu nome começava a soar nos meios jornalísticos e literários do Porto e de Lisboa: já alimentara várias polémicas e publicara alguns romances. Mas foi a partir de 1856 que atingiu a maturidade literária (no domínio dos processos de escrita) com o romance (por alguns autores considerado novela) Onde Está a Felicidade?. Foi ainda neste ano que iniciou o relacionamento amoroso com Ana Plácido, casada desde 1850 com Manuel Pinheiro Alves. 

Por proposta de Alexandre Herculano, foi eleito sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa em 1858 - ano em que nasceu Manuel Plácido, filho de Camilo e de Ana Plácido. Em 1860, Manuel Pinheiro Alves desencadeou o processo de adultério: em junho foi presa a mulher e a 1 de outubro Camilo entregou-se na cadeia da Relação do Porto. D. Pedro V visitou-o, em 1861, na cadeia, e a 16 de outubro desse ano os réus foram absolvidos. Era intensa a atividade literária de Camilo (não sendo a esse facto de todo alheias as dificuldades económicas): entre 1862 e 1863, o escritor publicou onze novelas e romances atingindo uma notoriedade dificilmente igualável. Em 1864, fixou-se na quinta de S. Miguel de Seide (propriedade de Manuel Pinheiro Alves que, entretanto, falecera em 1863) e nasceu-lhe o terceiro filho, Nuno. Quatro anos depois, dirigiu a Gazeta Literária do Porto; em 1870 iniciou o processo do viscondado (o título ser-lhe-ia atribuído em 1885) e, em 1876, tomou consciência da loucura do segundo filho, Jorge. No ano seguinte morreu Manuel Plácido. A partir de 1881, agravaram-se os padecimentos, incluindo a doença dos olhos que o afetava. Em 1889, por ocasião do seu aniversário, foi objeto de calorosa homenagem de escritores, artistas e estudantes, promovida por João de Deus. No ano seguinte, já cego, impossibilitado de escrever (a escrita foi, no fim de contas, a sua grande paixão), suicidou-se com um tiro de revólver. A casa de Seide é hoje o museu do escritor e na sua vizinhança foram inauguradas, a 1 de junho de 2005, as novas instalações do Centro de Estudos Camilianos. 

Camilo foi o primeiro escritor profissional entre nós. Dotado de uma capacidade prodigiosa para efabular narrativas, conhecedor profundo do idioma, observador, ora complacente ora sarcástico, da sociedade (sobretudo da aristocracia decadente e da burguesia boçal e endinheirada), inclinado (por gosto, por temperamento e formação) para a intriga e análise passionais (muitas vezes atingindo o sublime da tragédia, como no Amor de Perdição), este genial autor romântico deixou-nos uma obra incontornável (apesar de irregular) na evolução da prosa literária portuguesa. De facto, foi na novela passional e no "romance de costumes" que Camilo se notabilizou, legando-nos uma série de personagens ainda hoje inesquecíveis, quadros e situações que valem pela espontaneidade narrativa, pelo ritmo avassalador da ação, pela sugestão realista e ainda pela novidade temática, como em A Queda dum Anjo. A sua versatilidade literária e criadora (aliada à necessidade de não perder o público com a progressiva influência de Eça e de Teixeira de Queirós) levaram-no a assimilar (depois de ter parodiado) a atitude estética e os processos de escrita do Realismo e do Naturalismo, visíveis nesse notável livro que é A Brasileira de Prazins e em certa medida já iniciados com Novelas do Minho

A sua arte de narrar constituiu, a par da de Eça de Queirós, um modelo literário para muitos escritores, principalmente até meados do século XX. 

As suas obras principais são: A Filha do Arcediago, 1855; Onde está a Felicidade?, 1856; Vingança, 1858; O Romance dum Homem Rico, 1861; Amor de Perdição, 1862; Memórias do Cárcere, 1862; O Bem e o Mal, 1863; Vinte Horas de Liteira, 1864; A Queda dum Anjo, 1865; O Retrato de Ricardina, 1868; A Mulher Fatal, 1870; O Regicida, 1874; Novelas do Minho, 1875-1877; Eusébio Macário, 1879; A Brasileira de Prazins, 1882. 

Além destas obras em prosa narrativa, assinale-se ainda os outros géneros (ou domínios) pelos quais se repartiu o labor de Camilo: poesia, teatro (de que se devem destacar O Morgado de Fafe em Lisboa, 1861, e O Morgado de Fafe Amoroso, 1865), dezenas de traduções (do francês e do inglês), polémica, prefácios, biografia, história, crítica literária, jornalismo e epistolografia (compreendendo mais de duas mil cartas). 

Camilo Castelo Branco. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012.  


quinta-feira, 28 de julho de 2011

"Amar!" - Poema de Florbela Espanca


Maria Oakey Dewing, The Dance, 1920-1921
Pastel on paper, Private collection 



Amar!


Eu quero amar, amar perdidamente! 
Amar só por amar: Aqui... além... 
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... 
Amar! Amar! E não amar ninguém! 

Recordar? Esquecer? Indiferente!... 
Prender ou desprender? É mal? É bem? 
Quem disser que se pode amar alguém 
Durante a vida inteira é porque mente! 

Há uma Primavera em cada vida: 
É preciso cantá-la assim florida, 
Pois se Deus nos deu voz, foi p'ra cantar! 

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada 
Que seja a minha noite uma alvorada, 
Que me saiba perder... p'ra me encontrar... 


in "Charneca em Flor" 


"Vida" - Poema de Agostinho da Silva


Absurdist painting by Michael Cheval



Vida 


Três votos fará aquele 
que não ser tolo decida 
e venha deles primeiro 
o de obediência à vida 

será o segundo a vir 
o de não querer ser rico 
o muito passe de largo 
o pouco lhe apure o bico 

não violar-se a si próprio 
como principal o veja 
alto ou baixo gordo ou magro 
assim nasceu assim seja


 in 'Poemas'
 


Per7ume - 'Intervalo' 
(participação especial de Rui Veloso)


"Imaginação" - Poema de Rosa Lobato Faria



Ellen Jantzen, Emanation 
 

Imaginação



A imaginação é magia e é arte
que nos faz inventar, sonhar e viajar.
Com imaginação podemos ir a Marte
ou ao centro da Terra, ou ao fundo do mar.

Com imaginação nunca estamos sozinhos.
A imaginação é um voo, um lugar
onde temos amigos, onde há outros caminhos
nos quais, sem te mexeres, podes ir passear.

Inventa uma cantiga, um poema, um desenho
um arco-íris, um rio por entre malmequeres;
esse lugar é teu, sem limite ou tamanho.
A esse teu lugar, só vai quem tu quiseres.





"Eu" - Poema de Florbela Espanca


Absurdist painting by Michael Cheval


Eu


Eu sou a que no mundo anda perdida, 
Eu sou a que na vida não tem norte, 
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte 
Sou a crucificada... a dolorida... 

Sombra de névoa ténue e esvaecida, 
E que o destino amargo, triste e forte, 
Impele brutalmente para a morte! 
Alma de luto sempre incompreendida!... 

Sou aquela que passa e ninguém vê... 
Sou a que chamam triste sem o ser... 
Sou a que chora sem saber porquê... 

Sou talvez a visão que Alguém sonhou, 
Alguém que veio ao mundo p'ra me ver 
E que nunca na vida me encontrou! 


 in "Livro de Mágoas" 


quarta-feira, 27 de julho de 2011

"Canção" - Poema de Cecília Meireles





Canção 


Pus o meu sonho num navio 
e o navio em cima do mar; 
— depois, abri o mar com as mãos, 
para o meu sonho naufragar. 

Minhas mãos ainda estão molhadas 
do azul das ondas entreabertas, 
e a cor que escorre dos meus dedos 
colore as areias desertas. 

O vento vem vindo de longe, 
a noite se curva de frio; 
debaixo da água vai morrendo 
meu sonho, dentro de um navio... 

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo 
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Cecília Meireles, in 'Viagem' 

"Um Poema" - Miguel Torga


  Pier Toffoletti (pintor italiano, nasceu 1957)



Um Poema


Não tenhas medo, ouve:

É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz... 


Miguel Torga
,
Diário XIII 

"Urgentemente" - Poema de Eugénio de Andrade

 

Maurice Prendergast
, Salem Willows (also known as The Promenade, Salem Harbor), 1904
 


Urgentemente 


É urgente o amor.
É urgente um barco no mar. 

É urgente destruir certas palavras, 
ódio, solidão e crueldade, 
alguns lamentos, 
muitas espadas. 

É urgente inventar alegria, 
multiplicar os beijos, as searas, 
é urgente descobrir rosas e rios 
e manhãs claras. 

Cai o silêncio nos ombros, 
e a luz impura, até doer. 
É urgente o amor, 
é urgente permanecer.


Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã", 1956


Roberto Cacciapaglia - Oceano
Roberto Cacciapaglia (nascido em 1953, em Milão ) é um pianista e compositor italiano.


"Segredo" - Poema de Miguel Torga

  
Um ninho é uma estrutura construída pelas aves e alguns outros animais
 para ali porem os ovos e fornecerem proteção aos recém-nascidos.
 
 
 
Segredo


Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...


Miguel Torga
, Diário (1956)
 
 
 
O rouxinol (Luscinia megarhynchos), também conhecido como rouxinol-comum


O rouxinol não sabe
que o seu canto
é verde. 
 


O canto do rouxinol tem sido descrito como um dos sons mais bonitos na natureza, 
inspirando canções, contos de fadas, ópera, livros e uma enorme quantidade de poesia.
 

Rouxinol

 
Designação de aves da família dos Muscicapídeos. O rouxinol-comum (Luscinia megarhychos) é uma ave de cores sóbrias e de comportamento discreto. A plumagem é de cor castanha uniforme e a cauda castanho-avermelhada em todas as penas. Encontra-se em charnecas com vegetação rasteira húmida, bosques e parques. Alimenta-se de insetos, aranhas e algumas sementes. O seu comprimento total varia entre os 16 e 17 centímetros, com um comprimento de asa de 78 a 90 milímetros. O seu peso oscila entre as 20 e 25 gramas.

Na época da reprodução constroem um ninho, a nível do chão ou de uma moita, em forma de taça, espesso, de folhas mortas, forrado com ervas finas e pelos. A postura é de quatro a cinco ovos que são incubados pelos progenitores. Canta durante a época da reprodução, tanto de dia como de noite. O macho é muito brigão e não tolera qualquer invasão do seu território. O canto do rouxinol atinge o ponto culminante em junho quando nascem as crias, que são pintalgadas.(Daqui)


Rouxinol-bravo (daqui)

 
"Um poeta é um rouxinol que se senta na escuridão e canta com doces sons para alegrar a sua própria solidão; os seus ouvintes são como homens encantados com a melodia de um músico invisível, que sentem que estão a ser movidos e suavizados, mas não sabem de onde ou porquê". 
 
 
Percy Bysshe Shelley, in "Uma Defesa da Poesia e Outros Ensaios"
  

"Saudação do Amigo" - Poema de José Fernandes de Oliveira (Padre Zezinho)


 
Jenny Nyström (Swedish painter and illustrator, 1854-1946)
 
 

Saudação do Amigo

 
Quero ser o teu amigo
Nem de mais e nem de menos
Nem tão longe, nem tão perto
Na medida mais precisa que eu puder
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida
Da maneira mais amiga
Da maneira mais discreta, sem jamais te sufocar
Sem forçar tua vontade, sem jamais te aprisionar
E saber quando falar e saber quando calar
Nem ausente, nem presente por demais
Fraternalmente ser amigo e dar-te a paz
A paz que o mundo não dá, a paz de Jesus
A paz esteja com você! E comigo também! 
 

José Fernandes de Oliveira

[José Fernandes de Oliveira, SCJ, conhecido como Padre Zezinho (Machado, 8 de junho de 1941) é um padre católico Brasileiro da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus.
Padre Zezinho foi um dos precursores da Música católica no Brasil, sendo autor de 1.500 canções religiosas, além de gravar 120 álbuns. O religioso também escreveu pelo menos 60 livros.]


Pe. Zezinho - Utopia


domingo, 24 de julho de 2011

"O Tempo Passa? Não Passa" - Poema de Carlos Drummond de Andrade



Rosa Schweninger
 (Austrian painter, 1848-1918), Expectation.
 


O Tempo Passa?


O tempo passa? Não passa 
no abismo do coração. 
Lá dentro, perdura a graça 
do amor, florindo em canção. 

O tempo nos aproxima 
cada vez mais, nos reduz 
a um só verso e uma rima 
de mãos e olhos, na luz. 

Não há tempo consumido 
nem tempo a economizar. 
O tempo é todo vestido 
de amor e tempo de amar. 

O meu tempo e o teu, amada, 
transcendem qualquer medida. 
Além do amor, não há nada, 
amar é o sumo da vida. 

São mitos de calendário 
tanto o ontem como o agora, 
e o teu aniversário 
é um nascer toda a hora. 

E nosso amor, que brotou 
do tempo, não tem idade, 
pois só quem ama 
escutou o apelo da eternidade. 


in 'Amar se Aprende Amando' 


Beethoven - Moonlight Sonata

"As janelas do meu quarto" - Poema de António Gedeão


Morteza Katouzian, Marvels of Light, 1986



As janelas do meu quarto

 
 Tenho quarenta janelas,
nas paredes do meu quarto,
sem vidros nem bambinelas,
posso ver através delas,
o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas,
que andam no céu a rolar.

Por esta entra a Via Láctea,
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.

Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza,
que inunda de canto a canto.

Pela quadrada entra a esperança,
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.

Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala,
à semelhança das ondas.

Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa.

E o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio,
a que se chama poesia.

E a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade.

E o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro,
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo.

Todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra,
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar,
com tanta janela aberta,
falta-me a luz e o ar.


António Gedeão, Obra Poética
Rómulo de Carvalho (pseudónimo  António Gedeão)


"O teu riso" - Poema de Pablo Neruda


William Henry Margetson (British artist, 1861-1940), A Moment's Reflection


O Teu Riso 


Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, porém nunca
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que debulhas,
a água que de repente
em tua alegria estala,
essa onda repentina
de prata que te nasce.

De áspera luta volto
com olhos fatigados
por vezes de ter visto
a terra que não muda,
mas ao chegar teu riso
sobe ao céu me buscando,
e abre para mim todas
as portas desta vida.

Amor meu, no momento
mais escuros desata
o teu riso, e se acaso
vês que meu sangue mancha
as pedras do caminho,
ri, porque teu riso
será, em minhas mãos,
como uma espada fresca.

Junto ao mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e em primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Que te rias da noite,
ri do dia, da lua,
das ruas tortas da ilha,
ri do desajeitado
rapaz que te quer tanto,
porém quando mal abro
os olhos, quando os fecho,
quando os meus passos vão,
quando os meus passos voltam,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
senão, amor, eu morro. 
 
 
in “Os versos do capitão”.
 [Tradução de Thiago de Mello]. 
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p.28-31. 


"Canção do Mar" - Poema de Frederico de Brito


José Navarro Llorens (pintor espanhol, 1867-1923), Dia nublado



Canção do Mar

 
Fui bailar... no meu batel
Além do mar cruel
E o mar bramindo
Diz que eu fui roubar
A luz sem par
Do teu olhar tão lindo

Vem saber 
Se o mar terá razão
Vem cá ver 
Bailar meu coração

Se eu bailar no meu batel
Não vou ao mar cruel
E nem lhe digo 
Aonde eu fui cantar, sorrir, bailar, 
Viver, sonhar contigo


Frederico de Brito
 


Canção do Mar - Dulce Pontes
(Letra de Frederico de Brito e música de Ferrer Trindade)


"Canção do Mar" é uma canção portuguesa com letra de Frederico de Brito e música de Ferrer Trindade, foi cantada por Amália Rodrigues em 1955, sob o título Solidão, no filme Os Amantes do Tejo.

Em 1987, Anamar lança o álbum "Almanave", onde incluiu uma nova versão de "Canção do Mar". Este álbum chegou a disco de prata. 
 
Dulce Pontes gravou uma versão da música no seu álbum Lágrimas, de 1993, tornando-se a mais conhecida versão, sendo incluída nas bandas sonoras dos filmes americanos "A Raiz do Medo" (título inglês - "Primal Fear"), no qual Richard Gere (que quis pessoalmente que esta música fosse incluída) contracena com Edward Norton e "Atlantis: O Continente Perdido" (título inglês - "Atlantis: The Lost Empire"), da Disney.

Outras artistas internacionais também se renderam a esta música, cantando as suas próprias versões em outras línguas, tal como: Hélène Segara ("Elle, tu l'aimes", 2000, com o videoclipe filmado no Alentejo e com Ricardo Pereira), Chenoa ("Oye, Mar", 2002) e Sarah Brightman ("Harem", 2003).

No Brasil, a Canção do Mar foi gravada inicialmente por Agostinho dos Santos em 1956, pelo selo Polydor, e, no ano seguinte, foi gravada por Almir Ribeiro, pelo selo Copacabana. Também foi usada como tema de abertura de uma adaptação do romance As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis, em telenovela. 
 
Interpretado por Dulce Pontes, este tema tornou-se um dos maiores êxitos da canção portuguesa de sempre (paradoxalmente nesta versão da "Canção do Mar" ouvem-se muito bem influências árabes), sendo provavelmente a canção portuguesa mais conhecida fora de Portugal, interpretada até hoje pelo mundo fora por vários artistas. (Daqui)

"Reinvenção" - Poema de Cecília Meireles


Ellen Jantzen, Perceptibility, 2010



 Reinvenção


A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.


Cecília Meireles


Dalida - Paroles, paroles


                                                                                                                                                                                           

"Anoitecer" - Poema de Armando Côrtes-Rodrigues


Harold Brett
(American illustrator and painter, 1880-1955), Summer Moonlight
 


Anoitecer


Ficou o céu descorado…
E a Noite, que se avizinha,
Vem descendo ao povoado,
Como trôpega velhinha.

Para a guiar com cuidado
Veio-lhe ao encontro a Tardinha,
Não fosse a Noite sozinha
Perder-se em caminho errado.

Vão as duas caminhando…
E como o Sol já não arde,
Para o caminho ir mostrando

A primeira estrela brilha…
Então diz a Noite à Tarde:
– Vai-te deitar minha filha.
 in 'Alma Nova' 


Kenny G - Peace

"À Descoberta do Amor" - Texto de Mahatma Gandhi


Pintura de Ron Hicks


À Descoberta do Amor


Ensaia um sorriso
e oferece-o a quem não teve nenhum.
Agarra um raio de sol
e desprende-o onde houver noite.
 
Descobre uma nascente
e nela limpa quem vive na lama.
Toma uma lágrima
e pousa-a em quem nunca chorou.
 
Ganha coragem
e dá-a a quem não sabe lutar.
Inventa a vida
e conta-a a quem nada compreende.
 
Enche-te de esperança
e vive à sua luz.
Enriquece-te de bondade
e oferece-a a quem não sabe dar.
 
Vive com amor
e fá-lo conhecer ao Mundo.
 

Mahatma Gandhi





"Para quem sabe amar bem, nada é impossível."
 
- A qui sait bien aimer, il n’est rien d’impossible.

Pierre Corneille
 
- "MEDEE", in: "Théatre de P. Corneille: avec les commentaires de Voltaire", volume 3 - página 104; Por Pierre Corneille, Voltaire, Fontenelle (Bernard Le Bovier), William Shakespeare, Thomas Corneille, Jean Racine, Georges de Schudéry; Publicado por Ches Bossange, Masson et Besson, 1797


Pierre Corneille

Pierre Corneille, mais conhecido por Corneille (Rouen, 6 de junho de 1606 — Paris, 1 de outubro de 1684) foi um dramaturgo de tragédias francês. Ele foi um dos três maiores produtores de dramas na França, durante o século XVII, ao lado de Molière e Racine
Era chamado de "fundador da tragédia francesa", e escreveu peças por mais de 40 anos.


"A razão e o amor são eternos inimigos."
 
- La raison et l'amour sont ennemis jurés.

Pierre Corneille

 - "La Veuve" (1634) in: "Oeuvres de P. Corneille: avec les commentaires de Voltaire", volume 1 - Página 266; de Pierre Corneille, Thomas Corneille, Voltaire, Jean Racine, Charles Palissot de Montenoy, Gabriel-Henri Gaillard, Scudéry (Georges), Fontenelle (Bernard Le Bovier), Jean Michel Moreau - Publicado por A.A. Renouard, 1817


sábado, 23 de julho de 2011

"Pedra filosofal" - Poema de António Gedeão


Cruzeiro Seixas, Os Segredos do Vento, 2004.



Pedra filosofal


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
in Movimento Perpétuo, 1956



Manuel Freire: "Pedra Filosofal"