Winslow Homer (American, 1836–1910), Shooting the Rapids, Saguenay River, 1905-1910
Queria que os portugueses
Queria que os portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor
sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal
todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler
teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura
e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale
até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião
que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira
alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto
se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia
deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro.
Agostinho da Silva,
in 'Poemas'
Professor Agostinho da Silva
- Solidão, Tolerância, Trabalho e Poesia -
Entrevista com Alice Cruz
Agostinho da Silva (Porto, 13 de fevereiro de 1906 — Lisboa, 3 de abril de 1994) é dos mais paradoxais pensadores portugueses do século XX. O tema mais candente da sua obra foi a cultura de língua portuguesa, num fraternal abraço ao Brasil e aos países lusófonos. Todavia, a questão das filosofias nacionais não é para si decisiva, parecendo-lhe antes uma questão académica: «Não sei se há filosofias nacionais, e não sei se os filósofos, exactamente porque reflectem sobre o geral, se não internacionalizam desde logo».
O problema de que parte é a procura de uma razão de ser para Portugal: «o que eu quero é que a filosofia que haja por estes lados arranque do povo português, faça que o povo português tenha confiança em si mesmo», entendendo por «povo português» não apenas os portugueses de Portugal, mas também os do Brasil, laçados de índios e negros, os portugueses de África, tribais e pretos, como também os da Índia, de Macau e de Timor.
Embarcando num sonho universalista em que os portugueses que vivem apenas para Portugal não têm razão de ser, apresentou-se aos olhos tantas vezes desconcertados dos seus leitores como um cavaleiro do Quinto Império, um reinado do Espírito Santo, respirando um misto de franciscanismo e de joaquimismo e, em todo o caso, obra mais de cigarras que de formigas como era próprio das crianças: «Restaurar a criança em nós, e em nós a coroarmos Imperador, eis aí o primeiro passo para a formação do império», o que é dizer que o primeiro passo dos impérios está sempre no espírito dos homens, aptos para servir, como os antigos templários ou os cavaleiros da Ordem de Cristo.
Um império sem clássicos imperadores, que leve aos povos do mundo uma filosofia capaz de abranger a liberdade por que se bate a América, a segurança económica conseguida pela União Soviética, e a renúncia aos bens que depois de ter estado na filosofia de Lao-tsé, diz estar também na de Mao-tsé, mas uma filosofia que as três possam corrigir, purgando a primeira de imperialismos, a segunda da burocracia, e a terceira de catecismos.
É esta uma filosofia que, como gostava de dizer, não parte imediatamente de uma reflexão sobre as ciências exactas, como em Descartes ou Leibniz, mas da fé, como em Espinosa. Partir de crenças como ponto vital e tomar como símbolo preferido que a palavra «crer» parece ter a mesma origem que a palavra «coração», fazendo depois como o Infante, abrindo-se à ciência dos seus pilotos, astrónomos e matemáticos. Tudo dito e defendido com a tranquilidade de quem sabe que até hoje ninguém desvendou os mistérios do mundo e conhece por isso os limites das soluções positivas.
Assim, seria possível valorizar aquilo que a seu ver nos distinguiria como povo e como cultura: um povo e uma cultura capazes de albergar em si «tranquilamente, variadas contradições impenetráveis, até hoje, ao racionalizar de qualquer pensamento filosófico».
Império do futuro precavido e purgado dos males que arruinaram os quatro anteriores, sem manias de mando, ambições de ter e de poder, sem trabalho obrigatório, sem prisões e sem classes sociais, sem crises ideológicas e metafísicas. Esse já não era o império europeu, dessa Europa ávida de saber e de poder, e por isso esgotada como modelo para os outros 80% da humanidade, menos ávida de poder e mais preocupada com o ser.
Trazer por isso o mundo à Europa, como outrora levámos a Europa ao mundo, tal a missão da cultura de língua portuguesa, construindo o seu domínio com uma base espiritual e sem base em terra, porque a propriedade escraviza e só não ter nos torna livres.
Obras
Sentido histórico das civilizações clássicas, 1929; A religião grega, 1930; Glosas, 1934; Sete cartas a um jovem filósofo, 1945; Diário de Alcestes, 1945; Moisés e outras páginas bíblicas, 1945; Reflexão, 1957; Um Fernando Pessoa, 1959; As aproximações, 1960; Educação de Portugal, 1989; Do Agostinho em torno do Pessoa; Dispersos, 1988.
Bibliografia
António Quadros, Introdução à Filosofia da História, Lisboa, 1982.
Pedro Calafate
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