segunda-feira, 30 de setembro de 2019

"Cheios de espessa névoa os horizontes" - Soneto de Pedro António Correia Garção


Peder Mørk Mønsted (1859–1941), Spring landscape with water, 1909.



Soneto



Cheios de espessa névoa os horizontes,
Espantosas voragens vem saindo!
Foi-se o Sol entre as nuvens encobrindo,
Voltando para o mar os quatro Etontes.

Caiu a grossa chuva pelos montes,
Os incautos pastores aturdindo;
E engrossados os rios vão cobrindo
Com embate feroz as curvas pontes.

Com medonho estampido, pavorosos
Os longos ecos dos trovões soando
A rezar nos pusemos temerosos.

Parou a chuva; correm sussurrando
Os torcidos regatos vagarosos;
Não me atrevo a sair, fico jogando.


Pedro António Correia Garção
(1724-1772)
 

domingo, 29 de setembro de 2019

"Poema Pial" - Fernando Pessoa


William-Adolphe Bouguereau (1825-1905), The Nut Gatherers, 1882


Poema Pial

Casa Branca — Barreiro a Moita (Silêncio ou estação, à escolha do freguês)

Toda a gente que tem as mãos frias
Deve metê-las dentro das pias. 

Pia número UM,
Para quem mexe as orelhas em jejum.

Pia número DOIS,
Para quem bebe bifes de bois.

Pia número TRÊS,
Para quem espirra só meia vez. 

Pia número QUATRO,
Para quem manda as ventas ao teatro. 

Pia número CINCO,
Para quem come a chave do trinco. 

Pia número SEIS,
Para quem se penteia com bolos-reis. 

Pia número SETE,
Para quem canta até que o telhado se derrete.

Pia número OITO,
Para quem parte nozes quando é afoito.

Pia número NOVE,
Para quem se parece com uma couve. 

Pia número DEZ,
Para quem cola selos nas unhas dos pés.

E, como as mãos já não estão frias,
Tampa nas pias! 

s.d.

Fernando Pessoa

Quadras ao Gosto Popular
 (Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) 
Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973). - 120-121.

domingo, 22 de setembro de 2019

"O Pássaro Azul" - Poema de Charles Bukowski


O Pássaro Azul


há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei
que ninguém o veja.

há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.

há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí, quer acabar
comigo?
quer foder com minha
escrita?
quer arruinar a venda dos meus livros na
Europa?

há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo, sei que você está aí,
então não fique
triste.

depois o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
com nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, e
você?


Charles Bukowski,
emTextos autobiográficos, de Charles Bukowski”
[tradução de Pedro Gonzaga; edição de John Martin].
Porto Alegre: L&PM Editores, 2009.
(Daqui)


 
Marc Chagall, L'oiseau bleu (The Blue Bird), 1952


Bluebird


there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too tough for him,
I say, stay in there, I’m not going
to let anybody see
you.

there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he’s
in there.

there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too tough for him,

I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?

there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody’s asleep.
I say, I know that you’re there,
so don’t be
sad.

then I put him back,
but he’s singing a little
in there, I haven’t quite let him
die

and we sleep together like
that
with our
secret pact

and it’s nice enough to
make a man
weep, but I don’t
weep, do
you?
 in “The Last Night of the Earth Poems”
Santa Rosa CA: Black Sparrow, 1992.
(Daqui)


Animação baseada no poema "O pássaro azul" de Charles Bukowski. 
“Bluebird” inspirou a designer Monica Umba, estudante de Cambrigde School of Art a fazer uma releitura
 do poema em forma de animação gráfica.


"Eu não sei porque comecei a escrever poesia. É uma questão de sobrevivência. O pássaro sabe porque voa? Não. Então também não sei [porque escrevo]."


 Deborah Brennand, em "Letras verdes", 2002.


segunda-feira, 16 de setembro de 2019

"Setembro" - Poema de Hermann Hesse


Peder Mørk Mønsted (1859–1941), Autumn day in the forest, 1889 



Setembro


Entristece o jardim.
Fria nas flores a chuva cai.
O verão se arrepia
em silêncio diante do seu fim.

Pétala a pétala goteja em ouro
do alto pé de acácia.
O verão ri abatido e perplexo
no sonho do jardim em agonia.

A prolongar-se ainda junto às rosas,
ele espera, de pé, pelo repouso,
e os grandes olhos fatigados vai
entrecerrando aos poucos.


In Andares - Antologia Poética
Nova Fronteira, 2a. ed., Rio de Janeiro, 1982


domingo, 15 de setembro de 2019

"Separação" - Poema de Bella Akhmadulina


Robert McGinnis



Separação


Hoje nos separamos para sempre
e isso faz o mundo transformar-se.
Tudo nele anuncia a traição:
os rios vão se afastando das margens,
as nuvens vão se afastando do céu,
a mão direita olha para a esquerda
e arrogante diz: “Vou embora, adeus!”

Abril não mais prepara o mês de maio,
mês de maio que nunca mais verás,
e as flores se desfolham, feitas pó.
É a derrota do azul para o amarelo!

Já as últimas flores se esturricam,
comprimento e largura não há mais,
o branco, em estertor, já agoniza,
deixando um arco-íris de orfãzinhas.

A natureza afoga em sua tristeza,
a maré baixa sobe pela margem,
calam-se os sons e isso porque nós,
você e eu, pra sempre nos deixamos.


Bella Akhmadulina
Tradução de Lauro Machado Coelho


terça-feira, 10 de setembro de 2019

"Tenho mil irmãs para amar sem palavras" - Poema de José Luís Peixoto


Philip Richard Morris (1836-1902), "Sisters", Date unknown



Tenho mil irmãs para amar sem palavras


Tenho mil irmãs para amar sem palavras.
Tenho aquela irmã que caminha encostada
às paredes e sem voz, tenho aquela irmã de
esperança, tenho aquela irmã que desfaz o
rosto quando chora. Tenho irmãs cobertas
pelo mármore de estátuas, refletidas pela
água dos lagos. Tenho irmãs espalhadas por
jardins. Tenho mil irmãs que nasceram
antes de mim para que, quando eu nascesse,
tivesse uma cama de veludo. Agradeço com
amor a cada uma das minhas irmãs. São mil
e cada uma tem um rosto a envelhecer. As
minhas mil irmãs são mil mães que tenho.
Os olhos das minhas irmãs seguem-me com
bondade e, quando não me compreendem,
é porque eu próprio não me compreendo.
Tenho mil irmãs a esperar-me sempre, com
silêncio para ouvir-me e para proteger-me
no inverno. Tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola e tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola. Tenho irmãs como música, como
música. Tenho mil irmãs feitas de branco.
Eu sou o irmão de todas elas. Sou o guardião
permanente e incansável do seu sossego.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.


José Luís Peixoto
in Gaveta de Papéis
(Daqui)



domingo, 8 de setembro de 2019

"Dorme Amor" - Poema de Yevgeny Aleksandrovich Yevtushenko



Jan van Beers (1852–1927, Belgian painter and illustrator, the son of the poet Jan van Beers,
 1821–1888), The letter, 1885. 


Dorme Amor


Brilham na vala as gotas salgadas.
A porta está fechada. E o mar,
fervente, erguendo-se e rompendo contra os diques,
absorveu o sol salgado.
Dorme amor...
Não atormentes a minha alma.
Adormecem já as montanhas e a estepe,
e o nosso cão coxo,
de pelo emaranhado,
deixa-se cair e lambe a corrente salgada.
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão acorrentado
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...
Dorme, amor...
Esquece que nos zangámos.
Imagina por exemplo:
acordamos.
Tudo está fresco.
Caímos sobre o feno.
Temos sono.
Vem um cheiro a leite azedo
lá de baixo,
da cave
convidando a sonhar.
Oh, como poderei fazer-te
imaginar tudo isto,
a ti, tão desconfiada!
Dorme, amor...
Sorri entre sonhos.
Não chores mais! Corta flores e vai pensando
onde hás de pô-las,
e compra muitos vestidos bonitos.

Disseste alguma coisa?
É o cansaço do teu sonho inquieto.
Envolve-te no sonho, agasalha-te bem nele.
Podemos ver em sonhos tudo o que queremos,
tudo o que ansiamos
quando estamos acordados.
É absurdo não dormir,
é mesmo um delito:
o que trazemos oculto
grita-nos nas entranhas.
Que difícil para os teus olhos
trazer tanta coisa!
Debaixo das pálpebras
sentirão o alívio do sonho.
Dorme, amor...
Porque estás acordada?
É o bramido do mar?
A súplica das árvores?
Um mau pressentimento?
A sem-vergonha de alguém?
Ou talvez não de alguém,
mas simplesmente a sem-vergonha minha?
Dorme, amor...
Não é possível fazer nada,
mas sabe desde já que não é culpa minha esta culpa.
Perdoa-me — estás a ouvir?
Ama-me — estás a ouvir? —
mesmo que seja só em sonhos,
só em sonhos!
Dorme, amor...
Estamos num mundo
que voa enlouquecido
e ameaça explodir,
e é preciso abraçarmo-nos
para não cairmos dele,
e se tivermos que cair,
vamos cair abraçados.
Dorme, amor...
Não te deixes encher de raiva.
Que o sonho penetre suavemente nos teus olhos
já que é tão difícil dormir neste mundo.
Mas apesar de tudo
— ouves-me, amor? —
dorme...
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão na corrente
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...


Yevgeny Aleksandrovich Yevtushenko,
Trad. de J. Seabra-Dinis


Jan van Beers, In the Hammock, undated
 

"Sonhar é acordar-se para dentro."

(Mário Quintana)

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

"Para os que virão" - Poema de Thiago de Mello


Emanuel Phillips Fox (Australian impressionist painter, 1865–1915), The ferry, 1911



Para os que virão


Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.

Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.

Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular - foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se
- muito mais sofridamente -
na primeira e profunda pessoa
do plural.

Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.

É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.


Thiago de Mello

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

"Pensei que eras meu inimigo" - Poema de Bella Akhmadulina


 
Philip Richard Morris (1836-1902), A fond farewell



Pensei que eras meu inimigo


Pensei que eras meu inimigo,
a minha grande infelicidade.
Mas inimigo não és – só um mentiroso
e são vãs as tuas manobras.

Diante do carrossel
eu joguei cara ou coroa.
Queria, com essa moeda,
saber se te amo ou não.

Meu lenço ficou caído
no chão, no jardim Aleksándrov.
Aqueci as mãos; mas todos souberam
o que eu pensava – e que também mentia.

As mentiras devem estar voando
à minha volta como corvos.
Mas da próxima vez que te despedires
não verás, em meus olhos, nem azul nem negro.

Ah, continua vivendo, não fique triste.
Por mim está tudo bem.
Mas como tudo isso é inútil,
como é tudo absurdo!
Você indo para um lado,
eu indo para outro.


Bella Akhmadulina

Tradução de Lauro Machado Coelho 


terça-feira, 3 de setembro de 2019

"Nós" - Poemas de Guilherme de Almeida


Lasar Segall, Encontro, 1924


Nós


I

Fico - deixas-me velho. Moça e bela,
partes. Estes gerânios encarnados,
que na janela vivem debruçados,
vão morrer debruçados na janela.

E o piano, o teu canário tagarela,
a lâmpada, o divã, os cortinados:
- "Que é feito dela?" - indagarão - coitados!
E os amigos dirão: - "Que é feito dela?"

Parte! E se, olhando atrás, da extrema curva
da estrada, vires, esbatida e turva,
tremer a alvura dos cabelos meus;

irás pensando, pelo teu caminho,
que essa pobre cabeça de velhinho
é um lenço branco que te diz adeus!

II

Nessa tua janela, solitário,
entre as grades douradas da gaiola,
teu amigo de exílio, teu canário
canta, e eu sei que esse canto te consola.

E, lá na rua, o povo tumultuário
ouvindo o canto que daqui se evola
crê que é o nosso romance extraordinário
que naquela canção se desenrola.

Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia,
calado e frio, na gaiola fria,
o teu canário que cantava tanto.

E eu chorarei. Teu pobre confidente
ensinou-me a chorar tão docemente,
que todo mundo pensará que eu canto.

III

Mas não passou sem nuvem de tristeza
esse amor que era toda a tua vida,
em que eu tinha a existência resumida
e a viva chama de minha alma, acesa.

Nem lemos sem vislumbre de incerteza
a página do amor, lida e relida,
mas pouquíssimas vezes entendida,
sempre cheia de engano e de surpresa,

Não. Quantas vezes ocultei a minha
dor num sorriso! Quanta vez sentiste
parar, medroso, o coração de gelo!

- É que nossa alma às vezes adivinha
que perder um amor não é tão triste
como pensar que havemos de perdê-lo.

IV

Quando as folhas caírem nos caminhos,
ao sentimentalismo do sol poente,
nós dois iremos vagarosamente,
de braços dados, como dois velhinhos...

E que dirá de nós toda essa gente,
quando passarmos mudos e juntinhos?
-" Como se amaram esses coitadinhos!
Como ela vai, como ele vai contente!"

E por onde eu passar e tu passares,
hão de seguir-nos todos os olhares
e debruçar-se as flores nos barrancos...

E por nós, na tristeza do sol posto,
hão de falar as rugas do meu rosto...
Hão de falar os teus cabelos brancos...


Guilherme de Almeida
(1890-1969)


A casa da colina de Guilherme de Almeida (Daqui)


A Casa Guilherme de Almeida é um museu biográfico-literário localizado na cidade de São Paulo, no Brasil. Fundado em 1979, é um museu público estadual, subordinado à Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, administrado em parceria com uma organização privada, com recursos provenientes do erário. O museu está instalado na residência onde Guilherme de Almeida viveu de 1946 até o ano de sua morte (1969), conhecida como Casa da Colina, situada no bairro do Pacaembu.

O museu tem por objetivo conservar, organizar e expor o acervo bibliográfico, histórico, artístico e documental que pertenceu ao poeta e tradutor Guilherme de Almeida, bem como estimular e realizar pesquisas e estudos críticos sobre sua obra e divulgar a literatura e os autores nacionais em geral. Também mantém o Centro de Estudos de Tradução Literária, responsável por organizar e ministrar cursos e outras atividades relacionadas à teoria e à prática da tradução.

A Casa Guilherme de Almeida possui um acervo com aproximadamente 15.300 peças, em que se destaca sua ampla e diversificada biblioteca, bem como uma significativa coleção de obras de arte de grandes expoentes do modernismo brasileiro (como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Lasar Segall e Victor Brecheret), muitas das quais oferecidas ao poeta pelos próprios autores. A coleção também abarca objetos decorativos, indumentária, têxteis, comendas, numismática, jóias, discos e outros objetos que pertenceram a Guilherme e sua esposa, Belkiss Barrozo de Almeida (Baby de Almeida). (Daqui)


Lasar Segall, Retrato da jovem Baby de Almeida, 1927 



Mergulho


Almejo mergulhar
na solidão e no silêncio,
para encontrar-me
e despojar-me de mim,
até que a Eterna Presença
seja a minha plenitude.


Helena Kolody


segunda-feira, 2 de setembro de 2019

"Magnificat" - Poema de Álvaro de Campos (Heterónimo de Fernando Pessoa)


Ernst Ludwig Kirchner, "The Drinker (self-portrait)", 1914,
Germanisches Nationalmuseum



Magnificat


Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!

7-11-1933

Álvaro de Campos,
Heterónimo de Fernando Pessoa,
Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993) - 298.


domingo, 1 de setembro de 2019

"Últimos cinco poemas para Cris" - Poemas de Julio Cortázar


 
Últimos cinco poemas para Cris

1.

Agora escrevo pássaros.
Não os vejo chegar, não os invoquei,
mas de repente estão ali, são
um bando de palavras
pousando
uma
a
uma
nos fios da página,
chilreando, picotando, uma chuva de asas
e eu sem pão para lhes dar, unicamente
deixando-os vir. Talvez
isso seja uma árvore
ou talvez
o amor.

2.

A noite passada sonhei que eras
a sacerdotisa de Sekhmet, a deusa com cabeça de leão.
Ela nua em pórfiro,
tu nua na tua pele lisa.
Que presente estendias à deusa selvagem
que olhava através dos teus olhos
um horizonte eterno e implacável?
A taça das tuas mãos continha
a libação secreta, lágrimas
ou o teu sangue menstrual, ou a tua saliva.
Em todo o caso, não era sémen
e o meu sonho sabia
que a oferta seria recusada
com um lento rugido de desprezo
tal como tu esperavas desde sempre.
Depois, talvez, já não sei,
as garras nos teus seios, preenchendo-te.

3.

Nunca saberei porque a tua língua entrou na minha boca
quando nos despedimos no teu hotel
depois de uma visita amigável à cidade
e de um ajuste preciso de distâncias.
Acreditei por um momento que apontavas
uma data futura,
que abrias uma terra de ninguém, um interregno
de onde alcançar o teu minucioso musgo.
Cercado por amigas me beijaste,
eu a excepção, o monstro,
e tu a transgressora balbuciante.
Vá-se lá saber quem tu beijavas,
de quem te despedias.
Fui o vigário feliz de um só instante,
o que às vezes encontra na saliva
um breve gosto a madressilva
sob os céus austrais.

4.

Quisera eu ser Tirésias esta noite
e numa lenta espera de cabeça para baixo
receber-te e gemer sob os teus flagelos
e as tuas tíbias medusas,
sabendo que é a hora
da metamorfose recorrente,
e que ao descer o redemoinho de espuma
abrir-te-ias chorando,
sendo docemente empalada.
Para voltares depois
ao teu imperioso reino de falanges,
ao cerco de tua pele, aos teus húmidos tentáculos,
até juntos nos arrastarmos e abraçados alcançarmos
as areias do sonho.
Mas eu não sou Tirésias,
apenas um unicórnio
que procura a água nas tuas mãos
e encontra entre os lábios
uma mão cheia de sal.

5.

Não te vou aborrecer com mais poemas.
Digamos que te disse
nuvens, tesouras, pássaros, lápis,
e que alguma vez
tu sorriste.


Julio Cortázar
Tradução de Jorge Sousa Braga


 
A jornalista, tradutora e poeta Cristina Peri Rossi e o escritor Julio Cortázar (Daqui)


"Vem dormir comigo: não faremos amor, ele nos fará."

(Julio Cortázar)