sexta-feira, 30 de junho de 2023

"Santo António, São João, São Pedro" - Poemas de Fernando Pessoa


El Greco (Greek painter, sculptor and architect of the Spanish Renaissance,  
1541-1614), Saint Anthony of Padua, c. 1580, Museo del Prado, Madrid


Santo António


Nasci exatamente no teu dia —
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.

(Refleti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)

Adiante... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração —
Está sempre aberto lá o vinho novo.

Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.

Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.

Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.

Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.

Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos, naturais em singeleza,
Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.

(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.

És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas, ou não coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.

És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.

És este, e este és tu, e o povo é teu —
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.

Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António —
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?


Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro.
(Organização de
Alfredo Margarido), Lisboa: A Regra do Jogo, 1986.
 

El Greco, Saint John the Baptist, c. 1597–1607
Legion of Honor Museum, San Francisco


São João


Ó Precursor, fizeste-la bonita!
Não que teu Cristo, incarnação do Bem —
Não seja quem seja o teu Divino Anunciado.
O mal são os que após, sem mística divina
Nem ternura cristã, ou só humana,
Meteram a Jesus na cela da doutrina
Com as algemas do ódio manietado
Para depois manchar de falsa fé
O pobre homem que todo homem é.

A cruel multidão negramente infinita
Que tem sido o algoz ou o ladrão
Da ingénua humanidade aflita —
Esses que, aqui mesmo, pelos modos,
Dão ao inferno realização...
Ah, não podiam ser piores, nem
Que a mulher do Diabo, se ele a tem,
Os tivesse parido a todos.

Eu bem sei que houve muito santo e crente,
Muito puro, bondoso e inocente.
Bem sei, bem sei:
Sei-o eu e sabe-o toda a gente.
Mas esses, cuja alma está em Cristo
São só isto —
Qualquer remédio que se dissolvesse
No chá que para isso há,
E cujo gosto nele se perdesse;
O chá fica sabendo só a chá.
Se o remédio faz bem,
Não o sabe ninguém.
Que o chá não presta, não duvida alguém.

Sabemos isso, e sabê-lo-ia antes
De todos nós teu Mestre que viria,
Profeta, Deus e guia dos errantes,
Quão dolorosamente o saberia?
Sei que houve astros no céu da fé vazia.
Sei, mas repara que falso isso soa!
Por mais astros que a noite use brilhantes,
Que Diabo!, a noite não se chama dia.

Ó Precursor! Fizeste-a boa!

Daí, para nós, és de Lisboa,
Não és o precursor de nada.
És um rapaz ainda menino
Que tem por missão boa,
Por missão sorridente e sossegada
Ter ao colo um cordeiro pequenino.

Lá o que esse cordeiro significa
Não tem cheiro
Para o povo, que tem a alma rica
Da emoção que não conhece.
Para ele o cordeiro é um cordeiro,
E o menino sorri e a vida esquece.

O resto são fogueiras
E os saltos dados a gritar
Com um medo exagerado
Feito tudo de maneira
A mostrar
O riso, as pernas e o agrado.
É quente e anónima a aragem,
Tudo é juventude e viço
Num arraial multicolor e vasto.
Bonito serviço
Como homenagem
A quem, ainda com cabeça, foi um casto!

Mas é assim que és
E é assim que serás,
Até que pisem esta terra os pés
Do último fado que o Destino traz.

Então, esperamos, eu e todos,
Ver-te «surgir no céu», como quem vence
Tudo que é realidade ou ilusão
Por o menino ser que lhe pertence,
E os seus bons e santos modos
«Com o cordeirinho na mão»,
Como te viu Catullo Cearense.

Mas, desçamos à terra,
Que, por enquanto, o céu aterra,
Porque antes disso mete a morte.
Há muita coisa desconhecida
Na tua vida.
Tens muita sorte
Em ninguém saber da partida
Que em mil setecentos e dezassete
Tu fizeste à Igreja constituída
Estás, eu bem sei, cansado
Com o que a Igreja se intromete
Com tua vida e o teu divino fado.
 
E foi então que, para te vingar
E à maneira de santo, os arreliar
Desceste mansamente à terra
Perfeitamente disfarçado
E fizeste entre os homens da razão
Um milagre assinado,
Mas cuja assinatura se erra,
Quando em teu dia, S. João do Verão,
Fundaste a Grande Loja de Inglaterra. 

Isto agora é que é bom,
Se bem que vagamente rocambólico
Eu a julgar-te até católico,
E tu sais-me maçon. 

Bem, aí é que há espaço para tudo,
Para o bem temporal do mundo vário.
Que o teu sorriso doure quanto estudo
E o teu Cordeiro
Me faça sempre justo e verdadeiro,
Pronto a fazer falar o coração
Alto e bom som
Contra todas as fórmulas do mal,
Contra tudo que torna o homem precário.
Se és maçon,
Sou mais do que maçon — eu sou templário.

Esqueço-te santo
Deslembro o teu indefinido encanto.

Meu Irmão, dou-te o abraço fraternal. 


Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro.
(Organização de Alfredo Margarido), Lisboa: A Regra do Jogo, 1986.


 
 

São Pedro

 
Tu, que Diabo?, és velho.
És o único dos três que traz velhice
Às festas. Tuas barbas brancas
Têm contudo um ar terno
A que o teu duro olhar não dá razão.
Parece que com essas barbas brancas
Por um fenómeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

Carcereiro do céu, isso é o que és.
Basta ver o tamanho dessas chaves —
As que Roma cruzou no seu brasão.
Segundo aquele passo do Evangelho
Do «Tu és Pedro» etcetera (tu sabes),
Que é, afinal uma fraude
Meu velho, uma interpolação.

Carcereiro do céu, que chaves essas!
Nem dão vontade de ser bom na terra,
Se, segundo evangélicas promessas
Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.
Isso — fecharem-me — não quero eu,
Nem com Deus e o que é seu
Que o estar fechado faz-me mal
Até na beatitude do teu céu,
Entre os santos do paraíso,
(A liberdade — Deus dá a Deus —
Um Deus que não sei se é o teu),
O estar fechado, aqui ou ali, dizia eu
Faz-me terríveis cócegas no juízo.

Enfim, que direi eu de ti, amigo,
Que não seja uma coisa morta,
Anti-popular, gongórica,
Por fruste deselegante,
Como de quem, sem saber nada, exorta,
Começo por duvidar bastante,
Desculpa-me chaveiro antigo,
De que tivesses existência histórica.
Mas isso, é claro, não importa
Se nos trazes
A alegria da singeleza
Ou a bondade que não sabe ter tristeza.
O pior é que nada disso fazes.
O teu semblante é duro e cru
E as barbas que roubaste ao Deus que tens
Só arrancam aos dandies teus loquazes
Ditos de dandyissimos desdéns.
Que diabo, és uma série de ninguéns.
O Santo são as chaves, e não tu.

Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,
Para outros as barbas já citadas,
Para uns o tal fatídico chaveiro
Que fecha à chave as almas sublimadas.
Para uns tu fundaste a Roma do Papado
(Andavas bêbado ou enganado
Ou esqueceste
O teu Mestre quando o fizeste)
E para outros enfim, como é o povo
E segundo as ideias que ele faz,
És quem lhe não vem dar nada de novo —
Umas barbas com S. Pedro lá por traz.

É difícil tratar-te em verso ou prosa,
Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,
Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser
E a alma mais humilde é clamorosa
De qualquer coisa que se possa ver,
Em sonho até, qual se estivesse perto.

Olha, eu confesso
Que nunca escreveria
Este vago poema, em que me apresso
Só para me ver livre do teu nada,
Se não fosse para dar um cunho
A este livro da trilogia
(Santo António, S. João, S. Pedro. —
De popular, que bem que soa!)
Mas porque diabo de intuição errada
É que vieste parar a Junho
E a Lisboa?

Isto aqui ainda tem
Um sorriso que lhe fica bem,
Que até, até
No teu dia,
(Ó estupor velho
Com um chavelho,)
Nas ruas
O povo anda com alegria,
É fé,
Não em ti nem nas barbas tuas
Mas no que a alegria é.

Olha, acabei.
Que mais dizer-te, não sei.
Espera lá, olha
Roma, fingindo que viceja,
Lentamente se desfolha. 
Um gesto volvente e mudo
Teu último gesto seja. 
Se tens poder milagroso,
Se essas chaves abrem tudo,
Deixa esse céu lastimoso.
Deixa de vez esse céu,
Desce até à humanidade
E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,
As portas da Justiça e da Verdade. 


 Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro.
(Organização de Alfredo Margarido), Lisboa: A Regra do Jogo, 1986.
 

 Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro. 
Lisboa: A Regra do Jogo, Edições, 1986 
 
 
Resumo

Apresenta-se o tríptico de poemas «Santo António», «S. João» e «S. Pedro», que Fernando Pessoa escreveu em Junho de 1935, durante as festas dos três «santos populares» de Lisboa, e que projetava publicar sob o título Praça da Figueira, mas deixou inéditos. O tríptico foi publicado pela primeira vez em 1986, com um estudo introdutório de Alfredo Margarido. Com Praça da Figueira, Fernando Pessoa pretendia contestar a apropriação dos tradicionais festejos populares para os fins religiosos e políticos da Igreja católica e do seu aliado, o Estado Novo de Salazar. Para tal, o poeta enfatiza o cunho pagão e dionisíaco das festas juninas e associa provocatoriamente S. João à Maçonaria, então a inimiga principal do regime salazarista e da Igreja. — José Barreto  (daqui)
 

El Greco

Pintor de origem cretense radicado em Espanha, Domenikos Theotokopoulos, nascido em 1541 e falecido em 1614, recebeu uma educação humanista, o que justifica o interesse que sempre demonstrou pelos mais variados domínios do pensamento e da arte. Depois de uma formação em Veneza e em Roma, veio a estabelecer-se definitivamente em Toledo em 1577. 
Rodeado de uma excelente reputação artística, foi incumbido dos mais variados trabalhos para as igrejas e conventos de Toledo: O Espólio (1579), O Batismo de Cristo (1595-1600), O Cristo no Jardim das Oliveiras (1605-10), A Ressurreição (1608-10), o que não impediu que o tratamento pouco tradicional dos temas causasse alguma controvérsia entre as autoridades eclesiásticas.
Para além de temas religiosos, pintou retratos de importantes personalidades da vida espanhola e paisagens da cidade, apresentando-a sob uma luz dramática. Na sua obra podem encontrar-se o misticismo bizantino, a sensibilidade pela cor e pelos jogos de luz de Ticiano, a conceção do espaço de Tintoretto, os alongamentos e posições distorcidas do Maneirismo e a mistura de realismo e de fantástico presentes na atmosfera religiosa espanhola. 
Nos últimos trabalhos, nomeadamente em Visão do Apocalipse (cerca de 1610), o ambiente de fervor espiritual cria uma força pictórica que atinge uma dimensão expressionista. (daqui)
 

terça-feira, 27 de junho de 2023

"Receita para lavar palavra suja" - Poema de Viviane Mosé



Eugene de Blaas
(Italian painter, 1843-1931), Sharing the News, 1904



Receita para lavar palavra suja



Mergulhar a palavra suja em água sanitária,
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza,
por exemplo a palavra vida.

Existem outras e a palavra amor é uma delas
que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que ainda permanecem sujas
depois de submetidas a esses cuidados
mas existem aquelas.

Dizem que limão e sal tiram as manchas mais difíceis e nada.
Todas as tentativas de lavar a piedade foram sempre em vão.
Mas nunca vi palavra tão suja
como a palavra perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas,
soltam um líquido corrosivo
—que atende pelo nome de amargura—
capaz de esvaziar o vigor da língua.
Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade.

Agora se o que você quer
é somente aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo aqui é misturar palavras que mancham
no contacto umas com as outras.
A culpa, por exemplo, mancha tudo que encontra
e deve ser sempre clareada sozinha.
Uma mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
já que desejo sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que não é inevitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.

Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva
produz uma oleosidade que conserva a cor
e a intensidade dos sons.

Muito valioso na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Para isso conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos
que passeie pelas expressões dos seus sentidos.
À noite, permita que se deite,
não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme
a palavra plantada em sua carne
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar a convivência
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.

Uma palavra limpa é uma palavra possível.


Viviane Mosé
, do livro "Receita para lavar palavra suja"
(Coletânea de poemas escolhidas pela autora).
Rio de Janeiro: Arteclara, 2004.


segunda-feira, 26 de junho de 2023

"A Poesia" - Poema de Luís Augusto Palmeirim


 
Enrique Casanova (Pintor aguarelista espanhol, 1850-1913), 
Santuário do Bom Jesus de Braga
, s.d.




 A Poesia

 
Vou cantar; foi minha sina
Cantando levar a dor:
Hei de cumpri-la. É divina
A missão do trovador.
Quis-me Deus por seu profeta,
Fadou-me, fez-me poeta,
Deu-me este mago condão;
Não hei de mentir à lira,
Nem envolver na mentira
As vozes do coração.

Não hei de, que a poesia
Dentro d’alma me nasceu,
Tão casta como a sentia 
A namorada Dirceu.
Tão pura como desliza
Das palavras d’Heloísa
A descrever Abeilard;
Tão robusta, tão provada,
Como contam da espada
Do Camões – a guerrear!

Brotou-me puro e singelo
O meu singelo trovar,
Como nasce o lírio belo
Sem cultura à beira-mar.
Nunca teve outro cimento,
Que não fosse o sentimento
D’este mundo desleal;
Nunca teve outra alegria,
Senão em sonhar um dia
Venturas a Portugal.

Cantei em trovas sentidas,
Como cantou Bernardim,
Todas as juras mentidas
Que me fizeram a mim!
Fui poeta dos amores;
Com os demais trovadores
Uns lindos olhos cantei;
Como o Tasso desprezado,
Ainda não sei, coitado!
Como à vida me voltei!

Mas voltei; tinha saudades
Da minha terra infeliz,
Esqueceram-me as maldades
D’esta nova Beatriz.
Tinha prisões mais doiradas:
Eram as crenças herdadas
Da minha terra natal;
Eram os contos viçosos,
Noutros tempos mais ditosos,
Contados de Portugal.

Era tudo o que no peito
Sente quem tem coração;
Era temporal desfeito
De saudades e de paixão.
Ao amor faziam guerra
As lembranças desta terra,
Em que vi, gozei a luz;
Em que, pela vez primeira,
Tive crença verdadeira
Na santa lei de Jesus.

Nascera-me dentro d’alma
Um mais forte e puro amor.
Que a todos levava a palma,
Que tinha maior valor.
Eram cantos decorados,
Dos altos feitos, marcados
Com o cunho português;
Eram as quinas erguidas,
Nas arestas denegridas
De Ceilão, Ormuz e Fez!

De novo voltei à vida,
Saudei o luso pendão,
Numa lágrima nascida
Do fundo do coração!
Chorei o tempo perdido
Nesse amor estremecido,
Que me fora tão cruel;
Chorei antigos delitos,
Como outrora esses proscritos
Sobre a terra d’Israel!

Chorei o ter-me esquecido
De tudo o que Deus mandou,
Que fosse no mundo tido
Como Ele o ensinou!
Chorei sobre a liberdade,
Que nos braços da beldade
Por pouco que não morreu;
Chorei tudo, chorei tanto,
Que pude com o meu pranto
Lavar o delito meu.

Desde então a minha terra
Foi só tudo para mim;
As crenças que o peito encerra,
Depôr-lhas aos pés eu vim.
Nunca mais a minha lira
Se adornou de vã mentira
Dum falso mentido amor;
Ergui-me de pé – altivo,
Depus ferros de cativo
Por honra do trovador.

Sou um poeta soldado,
Não sei à missão mentir;
Neste canto magoado,
Disse tudo sem fingir.
Poeta da liberdade,
Fiz desta, nova deidade
A dama do meu pensar;
Prostrei-me aos pés da donzela,
Hei de com ela, e por ela,
A minha terra cantar!

Hei de, sim, que as rudes falas
De soldado as pus aqui;
Mentiras que são das salas,
Nunca eu as traduzi.
Não as sei – nem que soubera,
Nestes versos as pusera,
Que todos verdades são;
Nem tem lugar a mentira,
Traduzindo aqui na lira
As vozes do coração!


Luís Augusto Palmeirim
(01/02/1849)

domingo, 25 de junho de 2023

"Os Pobres" - Poema de Olavo Bilac



Manuel Henrique Pinto
(Pintor português, 1853-1912), "As velhas" ou "As velhas do café", 1903
(Figueiró dos Vinhos, Portugal)




Os Pobres


Aí vêm pelos caminhos,
Descalços, e pés no chão,
Os pobres que andam sozinhos,
Implorando compaixão.

Vivem sem cama e sem teto,
Na fome e na solidão:
Pedem um pouco de afeto,
Pedem um pouco de pão.

São tímidos? São covardes?
Têm pejo? Têm confusão?
Parai para os encontrardes,
E dai-lhes a vossa mão!

Guiai-lhes os tristes passos!
Dai-lhes, sem hesitação,
O apoio de vossos braços,
Metade de vosso pão!

Não receeis que, algum dia,
Vos assalte a ingratidão:
O prémio está na alegria
Que tereis no coração.

Protegei os desgraçados,
Órfãos de toda a afeição:
E sereis abençoados
Por um pedaço de pão... 
 
 
Olavo Bilac
, in Antologia poética


Olavo Bilac, Antologia poética, 1997
 Coleção L&PM

 

Resumo 
 
Quem escreveu In extremis, Hino à tarde e outros poemas desse nível é um grande poeta, teve a alma vibrando de beleza. Esta seleção pretende fazer justiça a Olavo Bilac. Para ele eram tão fáceis a expressão e a palavra, escrita ou falada, que a bem dizer teve o direito de se demorar no âmbito delas, sem aprofundar uma visão da vida, a pregar o dever de ser bom, instruído, trabalhador, patriota e amar. Com isso todos estavam de acordo e adotaram o poeta, jornalista e orador que o sabia dizer tão bem. (...) Realmente, ninguém tem na língua verso mais plástico e musical. Nem Bocage, nem Guerra Junqueiro, nem Vicente de Carvalho. E essa música, nos momentos de êxtase que são vários, já é música das esferas, vai ao cerne da vida. - Paulo Hecker Filho (daqui)



Olavo Bilac
 
Nasce em 1865 no Rio de Janeiro. Seu nome completo, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, dá um verso alexandrino, o que sempre foi tomado popularmente como um sinal de sua vocação. Obtém matrícula na Faculdade de Medicina aos 15 anos, vai até o quinto ano, passa a Direito, mas não termina nenhum curso superior, tinha mais o que fazer. E fazia: escrevia e vivia sem parar, em rodas boémias, literaturas, amores. Aos 21, um soneto em francês, o que era chique e não incomum na época, sai com o “Ora (direis) ouvir estrelas”. É o sucesso, que logo o tornaria o mais conhecido e benquisto homem de letras do país de todos os tempos, até a morte em 1918 (de edema pulmonar por insuficiência cardíaca, tinha gasto o coração...).

A prosa é inacabável, inclusive com contos e um romance, “O esqueleto”, mas mais artigos, conferências, crónicas, e que reúne em vida em vários volumes, alguns em colaboração, com Coelho Neto, Pardal Mallet, até com o Eça iniciou brincando um romance. Em verso, edita “Poesias” em 1988, com a “Profissão de fé”, em que, num eco de “L´art” de Théophile Gautier, empunha a bandeira da Arte e dá o poeta como ourives; não param de criticar, mas ele até podia, pelo poeta que era além do ou­rives... Seguiam-se, no volume, “Panóplias”, “Via Láctea” e “Sarças de fogo”. A segunda é uma série de 35 sonetos, dados aqui na íntegra, e que, na maioria, cantam um amor, com uma perfeição que impressiona, ainda mais se lembrarmos que tinha apenas 23 anos. Apesar da repercussão, a segunda edição de “Poesias” só vem em 1902, acrescentada de “Alma inquieta”, “As viagens” e “O caçador de esmeraldas”, tentativa de poema épico procurada, verbal, mas que acha inspiração para o fim, aqui reproduzido. De 1904 são as “Poesias infantis”, de que o Brasil aprendeu e ainda hoje sabe de cor tantos versos. Por fim, o livro que o grande sensual quer com a solenidade do crepúsculo, “Tarde”, em 1919, no ano seguinte de sua morte, mas cujas provas ainda revisou.

Texto de Paulo Hecker Filho. Em Antologia Poética (L&PM POCKET, v.38) (daqui)


sábado, 24 de junho de 2023

"João Batista" - Poema de Sílvia Araújo Mota


Bartolomé Esteban Murillo (Spanish Baroque painter, 1617–1682),
The Christ Child and the Infant John the Baptist (right) with a Shell
or The Holy Children with a Shell, c. 1670/75. Oil on canvas.
Museo del Prado, Madrid.


João Batista

 
João Batista, pregador judeu,
no início do Séc. I, chamado
de João, o Batizador,
citado por Evangelizadores
nasceu 2 a.C e morreu 30 d.C.

Filho do Sacerdote Zacarias
e de Isabel, prima de Maria,
a jovem Mãe de Jesus.
Batizou muitos judeus,
incluindo seu primo Jesus.

João foi reconhecido Profeta!
Considerado pelos cristãos,
como o precursor do Prometido,
o Messias, Jesus Cristo, por ele
batizado no Rio Jordão.

João Batista introduziu
o Batismo de Gentios
nos Rituais Judaicos
de Conversão, adaptados
para o Batismo do Cristão.

João nasceu na cidade de Judá,
a seis quilómetros de Jerusalém.
Sua mãe pertencia à Sociedade
Religiosa para a Educação,
das “Filhas de Aarão”.

João foi muitas vezes chamado
de “Encarnação de Elias.”
Até na forma de se vestir,
com peles de animais
e no método de exortação.

O Discurso principal de João
era sobre a vinda do Messias
fonte de Esperança para a Nação
que esperava sempre o dia
de tornar-se digna e independente.

Os judeus defendiam a ideia
da sua nacionalidade
ter iniciado com Abrahão
e que culminaria, na Verdade,
com a chegada do Messias da Salvação.

João, na aldeia chamada
“Adão” pregou sobre o Messias:
“Aquele que viria”, do qual
não seria digno de atar-lhe as alparcas...”
A polémica surgiu, naturalmente...

Importante notar o novo Batismo
que João trouxe aos arrependidos...
A experiência do Batismo de Jesus
motivou ainda mais a sua fé
e seus Ministérios vividos.

A mando do Rei Herodes Antipas,
João ficou dez meses preso até à morte,
porque lhe fez críticas pelo discurso...
A cabeça de João foi entregue ao Rei
e o corpo queimado, em uma fogueira.

Belo Horizonte, 27 de agosto de 2007.
(Professora e escritora brasileira, n. 1951)


Bartolomé González y Serrano (Spanish Baroque painter, 1564–1627),
Saint John the Baptist, c. 1621. Oil on canvas, 150 x 90 cm,
Museum of Fine Arts, Budapest.
 

 
 Anton Raphael Mengs (German painter, 1728-1779),
  St. John the Baptist Preaching in the Wilderness, 1760
 

Personagem bíblica e santo do Cristianismo, S. João Baptista terá nascido na Judeia, no ano 2 a. C., e morrido em 30 d. C. Era filho de Zacarias, um sacerdote judaico, e de Isabel, prima de Maria. Introduziu o batismo, como prática na conversão de gentios, cerimónia que mais tarde seria adotada pelo cristianismo.
Surge como um precursor de Jesus Cristo, que veio a batizar, no rio Jordão, e a reconhecer como o verdadeiro messias. Partiu para o deserto para pregar.
Censurou Herodes Antipas por ter cometido adultério com a sua cunhada, Herodíade. Foi, por isto, preso e, mais tarde, decapitado, a pedido de Salomé, sobrinha do rei e filha de Herodíade. (daqui)




O Nascimento de João Batista (ou Dia de São João ou Nascimento do Precursor) é uma festa cristã celebrando o nascimento de João Batista, um profeta que previu o advento do Messias na pessoa de Jesus Cristo e o batizou. Esta festa é amplamente comemorada no mundo cristão no dia 24 de junho e é uma das festas juninas. É também o único santo cujo nascimento e martírio, este último em 29 de Agosto, são evocados em duas solenidades pelo povo cristão.
A noite de 23 de Junho, véspera do Dia de São João, marca o início da celebração da festa de São João Batista. O Evangelho de Lucas (Lucas 1:36, 56-57) afirma que João nasceu cerca de seis meses antes de Jesus; portanto, a festa de São João Batista foi fixada em 24 de junho, seis meses antes da véspera de Natal. Este dia de festa é um dos poucos dias santos que comemora o aniversário do nascimento, ao invés da morte, do santo homenageado.  (daqui)
 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

"Porto" - Poema de Vítor Cintra


Luciano dos Santos (Pintor e professor português, 1911 - 2006),
Porto - Ribeira e Ponte de D. Luíz I, s/d


Porto

 
Antiga, quer na História, quer na gente,
Jamais o teu passado será morto;
E, seja no futuro ou no presente,
Serás sempre a Invicta, nobre Porto.

Há muitos, muitos anos, junto ao Douro,
Fundaram-te, subindo encosta acima;
Com o rio fez-se eterno o teu namoro,
É ele que, banhando-te, te mima.

Chamaram-te cidade do trabalho
Por ser tão empenhada no labor
A gente, que em ti vive, e ao redor;

As cepas, fecundadas pelo orvalho,
Das margens do teu rio, são penhor,
De quanto há no teu pão pago em suor.
 Editora: Temas Originais, 2011
 
 
Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Ribeira do Porto, s/d


“Se nessa cidade há muito quem troque o B pelo V, há muito pouco quem troque a honra pela infâmia e a liberdade pela servidão.”
 

Almeida Garrett
(1799 - 1854)
[Sobre a cidade do Porto, local onde nasceu.]


Mota Urgeiro, Porto, Ribeira, s/d

 
"O Porto não é um lugar. É um sentimento.” 

quinta-feira, 22 de junho de 2023

"Flor de beleza" - Poema de Gonçalves Dias


John Collier (British painter and writer, 1850-1934), The Sleeping Beauty, 1921,
Oil on canvas, 111.7 x 142.2 cm. Private collection


Flor de beleza

Não vejas!… se a vires… — Eu sei porque o digo:
Tu morres de amor. (Macedo)


Se fosse rainha aquela
Em cuja fronte singela,
Como em tela delicada
Luz da beleza o condão,
Foras rainha adorada;
Mas rainha sedutora,
Que exige preitos numa hora,
E na outra hora adoração.

Foras rainha! e ditosos
Teus vassalos extremosos,
Que ao renderem-te seus preitos
Beijaram-te a nívea mão.
Pedes amor e respeitos!
Quem não ama a formosura,
Quem não respeita a candura
De um sincero coração?

Mas antes que nos curvemos
Ante a beleza que vemos,
Tua angélica bondade
Conquista a nossa afeição:
Não és mulher, mas deidade,
Uma fada sedutora,
Que nos pede amor agora,
Logo mais — adoração.

Quando pois, cheia de graças,
Entre a turba alegre passas,
Entre a turba sequiosa
De beijar-te a nívea mão;
Dizem uns: quanto é formosa!
Eu porém, sei que és mais bela
Nos dotes da alma singela,
Nas prendas do coração.

Passa rápida a beleza,
Como flor que a natureza
Cria em jardim melindroso,
Ou num agreste torrão:
Passa como um som queixoso,
Como felizes instantes,
Como as juras dos amantes,
Como extremos da paixão.

Mas d’alma a vida é mais fina,
Exala essência divina,
Que avigora e fortifica
O dorido coração;
Morto o corpo, ainda fica,
Como em rosal arrancado,
Leve aroma derramado
Dos espaços na extensão.


Gonçalves Dias,
in 'Poesia e prosa completas'
Editora Nova Aguilar, 1998
 
 

Retrato de Gonçalves Dias, c. 1855


Gonçalves Dias

 
Poeta, professor e etnólogo brasileiro, António Gonçalves Dias nasceu a 10 de agosto de 1823, em Caxias, no Maranhão (Brasil).
Filho de um comerciante português e de uma mestiça, Gonçalves Dias partiu, em 1838, para Portugal, onde iniciou, na Universidade de Coimbra, o curso de Direito que concluiu em 1845. Durante esse período, relacionou-se com o grupo de poetas medievistas, que se reunia n'O Trovador, e foi influenciado não só pelos escritores portugueses, como também pelos românticos europeus. Escreveu, em 1843, a "Canção do Exílio", uma das mais conhecidas poesias em língua portuguesa.
Após a conclusão do curso, regressou ao Brasil, ao Maranhão, e partiu, um ano depois, para o Rio de Janeiro, onde exerceu o cargo de professor de Latim e de História do Brasil, no Colégio Pedro II, e fundou também a revista Guanabara, com Macedo e Porto Alegre. Em 1851, partiu para o Norte em missão oficial e, em 1852, casou com Olímpia Carolina da Costa, da qual se separou em 1856.
Entre 1854 e 1858, nomeado para a Secretaria dos Negócios Estrangeiros, viajou pela Europa, em missão oficial de estudos e de pesquisa. Em 1861, regressou ao Brasil, e viajou pelo Norte, no ano seguinte, pelos rios Madeira e Negro, como membro da Comissão Científica de Exploração. Nesse mesmo ano, partiu, de novo, para a Europa, à procura de estações de cura.
A 10 de setembro de 1864, Gonçalves Dias faleceu, vítima do naufrágio do navio "Ville de Boulogne" que tinha partido do Havre em direção ao Brasil e que naufragou próximo do Maranhão (Brasil).
Gonçalves Dias, patrono da cadeira n.º 15 da Academia Brasileira de Letras, publicou várias obras, das quais se destacam: Primeiros Contos (1846); a peça de teatro Leonor de Mendonça (1847); Segundos Cantos e Sextilhas de Frei Antão (1848); Últimos Cantos (1851); Os Timbiras (1857); Dicionário da Língua Tupi (1858) e Obras Póstumas (1868-1869, organizadas por António Henriques Leal). 
Da primeira geração romântica, Gonçalves Dias abordou, num belo e ingénuo lirismo, a saudade, a melancolia, o amor impossível e a religião. O poeta, em apelo ao nacionalismo, dedicou também a sua poesia aos costumes e tradições dos índios brasileiros, que considerava serem os verdadeiros representantes da cultura nacional. (daqui)
 

sábado, 17 de junho de 2023

"Pálida e Loira" - Poema de António Feijó


Julio Romero de Torres (Pintor simbolista espanhol, 1874-1930), "Mira qué bonita era", 1895.
 
 
 
Pálida e Loira

 
Morreu. Deitada no caixão estreito,
Pálida e loira, muito loira e fria,
O seu lábio tristíssimo sorria
Como num sonho virginal desfeito.

Lírio que murcha ao despontar do dia,
Foi descansar no derradeiro leito,
Às mãos de neve erguidas, sobre o peito,
Pálida e loira, muito loira e fria…

Tinha a cor da rainha das baladas
E das monjas antigas maceradas,
No pequenino esquife em que dormia…

Levou-a a morte em sua garra adunca!
E eu nunca mais pude esquecê-la, nunca!
Pálida e loira, muito loira e fria.


António Feijó, in Líricas e Bucólicas, 1884.

 
Capa da primeira edição de Líricas e Bucólicas (1884)
 de António Feijó
(daqui)
 

Líricas e Bucólicas
 
Coletânea de poesias (escritas entre 1876 e 1883), de António Feijó, dividida em dois livros, "Líricas" e "Bucólicas", reveladora de um lirismo mais sóbrio e depurado, afastado dos temas filosóficos e do tom épico característicos das "Transfigurações", de 1882, e próximo da estética parnasiana: "alucinado espraio as minhas fantasias/ na indolência da rima e no embalar do metro" ("Eterno tema"). 
 
As composições de "Líricas" cantam variações sobre o "Eterno tema", o amor e a mulher: "Só para te cantar que fale a Apoteose!/ vibre no espaço a Lira o canto sobre-humano!/ que a Musa se renove e em tal metamorfose/ no verso possa unir o místico ao profano!". 
Na série "Flores de carne", o poeta apresenta um friso de figuras femininas - Laïs, Lésbia, Santa Teresa de Jesus e Rigolboche -, incarnações diversas do mesmo amor erótico. A expressão lírica do sentimento amoroso surge, não raras vezes, associada a motivos fúnebres (tal como em "Rosa branca", "Em frente do esquife", "Cadências tristes", "No cemitério" e "Pálida e loira", um dos mais célebres sonetos do autor), mas sempre com uma nota de distanciamento e até de ironia (como em "Canção da decadência"). 
 
Em "Bucólicas", Feijó opera uma renovação da veia bucólica da poesia portuguesa, anunciada desde a "Sinfonia de abertura" ("- ouvi estas canções que a fantasia errante/ colheu, para formar um virginal tesoiro,/ pelas searas sem fim, pelas paisagens largas,/ como quem arquiteta o seu castelo d'oiro/ para fugir da vida às tentações amargas...") e patente em composições como "Tintas da aurora", "Elegia rústica" ou "Árvore amiga". 
Do ponto de vista formal, a coletânea destaca-se por uma grande variedade métrica e estrófica. (daqui)
 

sexta-feira, 16 de junho de 2023

"Visto da margem sul do rio o porto" - Poema de Vasco Graça Moura


 
Dórdio Gomes (Pintor modernista português, 1890-1976), Paisagem do Douro, Porto, 1935
 
 

Visto da margem sul do rio o porto


visto da margem sul do rio o porto não explode
sob a tarde de verão, a água reflete
renques de casario humilde a encastelar-se
irregular em ocres e granito, manchas, vãos, recantos.

é quando os jacarandás se fazem desse azul mais surdo
do anoitecer e concentram uma ameaça do tempo
contida nas cores tensas das fachadas, a entrecortar
os jardins do crepúsculo aprendidos de cor.

além umas arcadas, um cais, o traço grosso a carvão
dos encaixes da ponte armada em ferro, a muralha,
o deslizar da luz para poente, tudo
uma dramática placidez escurecendo a ribeira, um vidrado

de presenças esquecidas, palhetas de ouro fosco sobre as barcaças
abandonadas, quase ao alcance da mão, da voz, da alma, é quando
a música há de vir, lentamente elaborada na memória,
como um sopro da infância e do indizível do mundo.

são estes sons de nada, estes voos que perpassam,
estas estrias da sombra de ninguém
sobre o curso do rio, como nuvens para esta hora, a
encrespar-lhes de leve a superfície.

enquanto parte algum comboio atrasado,
um avião se esvai ao longe, os escritórios fecham,
quero um barco pequeno para a minha travessia,
para a minha chegada e para a minha partida,

para andar entre as margens ou seguir a corrente
até s. joão da foz ver as últimas gaivotas
ainda antes da noite, respirar um não sei quê que se desprende
da travessia, a atravessar-me,

halo vindo das camélias, perfume de penumbras
de mulher, ou para sempre e para nunca mais
um pó da lua na cantareira e na afurada
devagar a acender-se mais rente ao coração.


Vasco Graça Moura (1942-2014),
in "Visto da margem sul do rio: o porto"
[uma antologia poética]


Vasco Graça Moura, "visto da margem sul do rio: o porto"
Editor: Modo de Ler, 2012 


Sinopse


"É um privilégio revisitar a nossa cidade através da leitura destes poemas de Vasco Graça Moura. Lidos assim, reunidos, seja qual for a ordem por que os lemos e até a ordem por que foram escritos ao longo de quase meio século, traçam um percurso sedutor, que nos envolve em cada página. Neste seu porto, o Porto onde nasceu, Vasco Graça Moura abre-nos, por muitos caminhos, a cidade que reescreve, na constante busca do espírito do lugar, como se buscasse a sua própria identidade e sentido, nos tempos e espaços da infância e da juventude, mas a que regressa sempre, em incessante ato de recriação e redescoberta... " —  Gaspar Martins Pereira (daqui)

quinta-feira, 15 de junho de 2023

"Beleza" - Poema de Almeida Garrett


Claude Monet (French painter and founder of impressionist painting, 1840–1926), In the Woods
at Giverny, Blanche Hoschedé Monet at Her Easel with Suzanne Hoschedé Reading, 1887
,
oil on canvas, 91.4 x 97.7 cm, Los Angeles County Museum of Art
 


Beleza

 
Vem do amor a Beleza,
Como a luz vem da chama.
É lei da Natureza:
Queres ser bela? – ama.

Formas de encantar,
Na tela o pincel
As pode pintar;
No bronze o buril
As sabe gravar;
E estátua gentil
Fazer o cinzel
Da pedra mais dura...
Mas Beleza é isso? – Não; só formosura.

Sorrindo entre dores
Ao filho que adora
Inda antes de o ver,
– Qual sorri a aurora
Chorando nas flores
Que estão por nascer –
A mãe é a mais bela das obras de Deus.
Se ela ama! – O mais puro do fogo dos céus
Lhe ateia essa chama de luz cristalina:

É a luz divina
Que nunca mudou,
É luz... é a Beleza
Em toda a pureza
Que Deus a criou.


Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas', 1853

 
"Folhas Caídas" de Almeida Garrett
Edições Vercial; 1ª edição, 2010
 
 
Folhas Caídas
 
Coletânea de poesias líricas de Almeida Garrett (Porto, 4 de fevereiro de 1799 — Lisboa, 9 de dezembro de 1854), é a última e a mais importante obra do autor. Foi publicada apenas um ano antes da sua morte, em 1853, e sob anonimato, talvez pelo receio do escândalo, dadas as relações amorosas com a Viscondessa da Luz, de que em grande parte este livro é a expressão literária. 
A obra teve grande sucesso devido sobretudo à atmosfera erotizante de algumas das suas composições e também à invulgar expressão de conflito psicológico e amoroso vivido pelo autor. Esta obra revela grandes aspetos inovadores, desde as imagens até à organização estrófica, passando pelo tom coloquial, quase confessional, de muitas das poesias - fazendo dela a melhor obra de poesia romântica portuguesa. Saliente-se ainda a inclusão, na segunda parte, de poesias de inspiração popular, bem como algumas traduções. 
Na "Advertência" à obra, Garrett apresenta o poeta como ser incompreendido, marginalizado, condenado à busca incessante do ideal: "Mas sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado de alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito, que, tendendo ao seu fim único, a posse do Ideal, ora pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chegar a ele, ora ri amargamente porque reconhece o seu engano, ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade vã." Assim se compreende a dedicatória ao "Ignoto deo", o Deus aos pés de quem o poeta deposita a sua "combatida/existência", misto de "luz" e "treva". 
Ao qualificar o seu livro como uma "confissão sincera", Garrett sugeriu a identificação do sujeito poético com o autor real, favorecendo ele próprio a leitura dos poemas amorosos das Folhas Caídas como episódios da sua ligação com Rosa Montufar, viscondessa da Luz. Os poemas exprimem os sentimentos amorosos contraditórios que caracterizam a paixão amorosa, nas suas diferentes etapas ("Gozo e dor", "Este inferno de amar", "Adeus"); exploram a ambivalência da figura feminina, ora anjo, ora demónio ("Anjo és", "Não és tu"); percorrem a euforia erótica ("Aquela noite", "Os cinco sentidos", "Flor de ventura"), o ciúme ("Perfume da rosa", "A coroa"), a saudade da felicidade que não voltará ("Cascais", "Estes sítios"). 
Do ponto de vista métrico, o volume assinala o abandono definitivo das formas e dos géneros clássicos em favor do uso da tradicional redondilha em estrofes regulares. (daqui)