sexta-feira, 16 de junho de 2023

"Visto da margem sul do rio o porto" - Poema de Vasco Graça Moura


 
Dórdio Gomes (Pintor modernista português, 1890-1976), Paisagem do Douro, Porto, 1935
 
 

Visto da margem sul do rio o porto


visto da margem sul do rio o porto não explode
sob a tarde de verão, a água reflete
renques de casario humilde a encastelar-se
irregular em ocres e granito, manchas, vãos, recantos.

é quando os jacarandás se fazem desse azul mais surdo
do anoitecer e concentram uma ameaça do tempo
contida nas cores tensas das fachadas, a entrecortar
os jardins do crepúsculo aprendidos de cor.

além umas arcadas, um cais, o traço grosso a carvão
dos encaixes da ponte armada em ferro, a muralha,
o deslizar da luz para poente, tudo
uma dramática placidez escurecendo a ribeira, um vidrado

de presenças esquecidas, palhetas de ouro fosco sobre as barcaças
abandonadas, quase ao alcance da mão, da voz, da alma, é quando
a música há de vir, lentamente elaborada na memória,
como um sopro da infância e do indizível do mundo.

são estes sons de nada, estes voos que perpassam,
estas estrias da sombra de ninguém
sobre o curso do rio, como nuvens para esta hora, a
encrespar-lhes de leve a superfície.

enquanto parte algum comboio atrasado,
um avião se esvai ao longe, os escritórios fecham,
quero um barco pequeno para a minha travessia,
para a minha chegada e para a minha partida,

para andar entre as margens ou seguir a corrente
até s. joão da foz ver as últimas gaivotas
ainda antes da noite, respirar um não sei quê que se desprende
da travessia, a atravessar-me,

halo vindo das camélias, perfume de penumbras
de mulher, ou para sempre e para nunca mais
um pó da lua na cantareira e na afurada
devagar a acender-se mais rente ao coração.


Vasco Graça Moura (1942-2014),
in "Visto da margem sul do rio: o porto"
[uma antologia poética]


Vasco Graça Moura, "visto da margem sul do rio: o porto"
Editor: Modo de Ler, 2012 


Sinopse


"É um privilégio revisitar a nossa cidade através da leitura destes poemas de Vasco Graça Moura. Lidos assim, reunidos, seja qual for a ordem por que os lemos e até a ordem por que foram escritos ao longo de quase meio século, traçam um percurso sedutor, que nos envolve em cada página. Neste seu porto, o Porto onde nasceu, Vasco Graça Moura abre-nos, por muitos caminhos, a cidade que reescreve, na constante busca do espírito do lugar, como se buscasse a sua própria identidade e sentido, nos tempos e espaços da infância e da juventude, mas a que regressa sempre, em incessante ato de recriação e redescoberta... " —  Gaspar Martins Pereira (daqui)

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