terça-feira, 13 de junho de 2023

"O Passeio de Santo António" - Poema de Augusto Gil

 
Stephan Kessler (Pintor barroco, 1622-1700), Santo António (Lisboa, 15 de agosto 
de 1195? - Pádua, 13 de junho de 1231) com o Menino Jesus, ca. 1650/60. 
 


O Passeio de Santo António
 
 
Saíra Santo António do convento
a dar o seu passeio costumado,
e a repetir num tom pesado e lento
um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
o divino sermão, piedoso e brando,
e nem notou que a tarde esmorecia,
que vinha a noite plácida baixando.

E andando, andando, viu-se num outeiro
com árvores e casas espalhadas,
que ficava distante do mosteiro
uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
e fraco por haver andado tanto,
sentou-se a descansar o bom do monge
com a resignação de quem é santo.

O luar, um luar claríssimo, nasceu:
num raio dessa linda claridade,
o Menino Jesus baixou do céu,
pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto uma bica d’água soluçante
juntava o seu murmúrio ao dos pinhais;
os rouxinóis ouviam-se distante;
o luar mais alto iluminava mais.

De braço dado para a fonte vinha
um par de noivos, todo satisfeito:
ela trazia ao ombro a cantarinha;
ele trazia o coração no peito…

Sem suspeitarem de que alguém ouvisse
trocaram beijos ao luar tranquilo…
o Menino, porém, ouviu e disse: 
— Oh! Frei António, o que foi aquilo?

O Santo, erguendo a manga do burel
para tapar o noivo e a namorada,
mentiu numa voz doce como o mel:
—  Não sei que fosse… eu cá não ouvi nada.

Uma risada límpida, sonora,
vibrou com timbres d’oiro no caminho.
—  Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
—  Ouvi, Senhor, ouvi; é um passarinho.

—  Tu não estás com a cabeça boa;
um passarinho e a cantar assim?
E o pobre Santo António de Lisboa
calou-se embaraçado. Mas por fim

corado como as vestes dos cardeais,
achou esta saída redentora:
— Se o Menino Jesus pergunta mais
queixo-me a sua Mãe, Nossa Senhora.

Voltando-lhe a carinha contra a luz,
e contra aquele amor sem casamento
pegou-lhe ao colo e acrescentou:
— Jesus são horas. E abalaram para o convento.


Augusto Gil
, Luar de Agosto, 1909.
In Cancioneiro Popular Português,
coligido por J. Leite de Vasconcelos e coordenação 
de Maria Arminda Zaluar Nunes.

[Poeta, advogado e alto funcionário da República, Augusto César Ferreira Gil nasceu em 1873, no Porto, e faleceu em 1929. Viveu parte da juventude na Guarda e formou-se em Direito em Coimbra. Cultivou uma poesia de cunho sentimental, um pouco inspirada na tradição popular e, ao mesmo tempo, na lírica romântica e ultrarromântica portuguesas. Dos títulos publicados, salientam-se Luar de janeiro (1909), Gente de Palmo e Meio (1913) e Avena Rústica (1927). O seu poema mais conhecido é a "Balada da Neve". (daqui)]

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