Hino à Morte
Tenho às vezes sentido o chocar dos teus ossos
E o vento da tua asa os meus lábios roçar;
Mas da tua presença o rasto de destroços
Nunca de susto fez meu coração parar.
Nunca, espanto ou receio, ao meu ânimo trouxe
Esse aspeto de horror com que tudo apavoras,
Nas tuas mãos erguendo a inexorável Fouce
E a ampulheta em que vais pulverizando as horas.
Sei que andas, como sombra, a seguir os meus passos,
Tão próxima de mim que te respiro o alento,
— Prestes como uma noiva a estreitar-me em teus braços,
E a arrastar-me contigo ao teu leito sangrento...
Que importa? Do teu seio a noite que amedronta,
Para mim não é mais que o refluxo da Vida,
Noite da noite, donde esplêndida desponta
A aurora espiritual da Terra Prometida.
A Alma volta à Luz; sai desse hiato de sombra,
Como o inseto da larva. A Morte que me aterra,
Essa que tanta vez o meu ânimo assombra,
Não és tu, com a paz do teu oásis te terra!
Quantas vezes, na angústia, o sofrimento invoca
O teu suave dormir sob a leiva de flores!...
A Morte, que sem dó me tortura e sufoca,
É outra, — essa que em nós cava sulcos de dores.
Morte que, sem piedade, uma a uma arrebata,
Como um tufão que passa, as nossas afeições,
E, deixando-nos sós, lentamente nos mata,
Abrindo-lhes a cova em nossos corações.
Parêntesis de sombra entre o poente e a alvorada,
Morrer é ter vivido, é renascer... O horror
Da Morte, o horror que gera a consciência do Nada,
Quem vive é que lhe sente o aflitivo travor.
Sangue do nosso sangue, almas que estremecemos,
Seres que um grande afeto à nossa vida enlaça,
— Somos nós que a sua morte implacável sofremos,
É em nós, é em nós que a sua morte se passa!
Só então, da tua asa a sombra formidável,
Anjo negro da Morte! aos meus olhos parece
Uma noite sem fim, uma noite insondável,
Noite de soledade em que nunca amanhece...
Só então, sucumbindo à dor que me fulmina,
A mim mesmo pergunto, entre espanto e receio,
Se a tua asa não é dum Anjo de rapina,
Se eu poderei em paz repoisar no teu seio!
Inflexível e cego, o poder do teu ceptro
Só então me desvaira em cruel agonia,
Ao ver com que presteza ele faz um espectro
De alguém, que há pouco ainda, ao pé de nós sorria.
Mas se nessa tortura, exausto o pensamento,
Para ti, face a face, ergo os olhos contrito,
Passa diante de mim, como um deslumbramento
Constelando o teu manto, a visão do Infinito.
E de novo, ao sair dessa angústia demente,
Sinto bem que tu és, para toda a amargura,
A Eutanásia serena em cujo olhar clemente
Arde a chama em que toda a escória se depura.
É pela tua mão, feito um rasgão na treva,
Que a Alma se liberta, e de esplendor vestida
— Borboleta celeste, ébria de Deus, — se eleva
Para a luz imortal, Luz do Amor, Luz da Vida!
"Sol de Inverno", volume póstumo que reúne as últimas poesias de António Feijó, com um prefácio, de grande interesse crítico e biográfico, de Luís de Magalhães, um texto crítico de Alberto de Oliveira e ainda várias apreciações sobre as coletâneas Ilha dos Amores e Cancioneiro Chinês,
recolhidas da imprensa. Nesta obra de síntese, dedicada à mulher do
autor, evidenciam-se as qualidades do lirismo depurado de Feijó
("Díptico: eu e tu"), onde predominam os motivos melancólicos e outonais
("Cabelos brancos"), os temas do exílio ("Súplica ao vento") e da morte
("Entre pinheiros e ciprestes"). (daqui)
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