domingo, 28 de fevereiro de 2016

"Tu procuras saber" - Poema de António Ramos Rosa


Joni Mitchell (Canadian-American singer-songwriter and painter, b. 1943), 
Self-Portrait, Taming The Tiger album cover art (1991-97).
 
 

Tu procuras saber 


Tu procuras saber
eu não procuro porque sei que nunca saberei 
Tu queres abrir as portas do conhecimento para fundares a tua integridade 
Eu entrego-me ao vago e indefinível vagar 
da luz sobre a página que nunca é um oásis 
e não conduz ao plácido porto que nela pressentimos 
Tu desejas ir além das sequências quotidianas 
eu procuro também um além 
mas no interior da sombra do meu corpo 
ao ritmo da respiração 
para fortalecer a minha incerta identidade 
Tu não desistes de conhecer a lucidez do centro 
para que a vida encontre o seu equilíbrio e o seu horizonte 
Eu não conheço outro horizonte além da vaga claridade 
que às vezes brilha no silêncio de um abandono 
ou no fluir das palavras que procuram a nudez 
Tu procuras algo que transcenda o mundo 
eu procuro o mundo no mundo ou para aquém dele 
Eu sei que a fragilidade pode cintilar 
como uma constelação ou como um delta 
quando o corpo se entrega sobre as dunas do silêncio 
Tu queres ser a coluna ou a balança viva 
do puro equilíbrio que sustenta o mundo 


António Ramos Rosa, em “O Teu Rosto”, 1994
 


Joni Mitchell 



sábado, 27 de fevereiro de 2016

"O amor em visita" - Poema de Herberto Helder


Richard Schmid (American realist artist, b. 1934) 
 


O amor em visita

 
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
– Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
– Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.

– Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
– Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra – invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo –
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura, não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música noturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstrato,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz
sobre as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira – para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
– Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
– Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
– o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
– E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
a cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
– No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
– Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
– aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
– no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável –
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água – e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.
 
 
 

Pintura de Richard Schmid


"Por mais duro que alguém seja, derreterá no fogo do amor. 
Se não derreter é porque o fogo não é bastante forte."



sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

"O teu rosto" - Poema de António Ramos Rosa



John Michael Wright (English or Scottish, 1617-1694), Retrato de Barbara Villiers, 1670 
(Barbara Palmer, 1° Duquesa de Cleveland, Condessa de Castlemaine) 



O teu rosto


Sonhei tanto com um ardente corpo 
entre o fragor dos monstros e a mudez dos muros 
que o meu suor modelou os espetros do mundo 
e as sonâmbulas figuras do meu desejo errante

Perdi-me tantas vezes no desespero dos labirintos 
na solidão da sede ou no fundo de um túnel 
que me senti incapaz de esperar o nupcial encontro 
que me libertaria dos círculos infernais

Mas encontrei-te para além da névoa 
com o fulgor oval de um começo puro 
e com a fragrância dos teus olhos matinais

No animal ardor o meu sangue subia 
e no teu rosto via uma rosácea azul 
e nos teus lábios um sonho de inteligência branca 
em que voavam duas aves na penumbra das fronteiras
 

António Ramos Rosa, in "O Teu Rosto"
Pedra Formosa Edições, 1994


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"Dedução" - Poema de Vladimir Maiakovski

 
 

Dedução


Não acabarão nunca com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.


Vladimir Maiakovski, 1922, em Antologia Poética, 
tradução E. Carrera Guerra, ed. Max Limonad/SP).
 

Fotografia de Ansel Adams
 

"Tudo o que é verdadeiramente sábio é simples e claro." 

Máximo Gorki, Do Povo 


Ansel Adams, Close-up of leaves In Glacier National Park (1942)


"As palavras, meu amigo, são como as folhas de uma árvore. Para compreendermos a razão de uma folha ser deste modo e não de outro, é preciso saber como a árvore se desenvolve."

Máximo Gorki, Ganhando o meu pão, p. 236


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

"É Isto o Amor" - Poema de Nuno Júdice


Fotografia de Christophe Gilbert



É Isto o Amor


Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que 
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a 
manhã da minha noite. É verdade que te podia 
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas 
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos 
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me 
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou, 
até sermos um apenas no amor que nos une, 
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor: 
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua 
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo 
esse que mal corria quando por ele passámos, 
subindo a margem em que descobri o sentido 
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo 
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor, 
de chegar antes de ti para te ver chegar: com 
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água 
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu: 
a primavera luminosa da minha expectativa, 
a mais certa certeza de que gosto de ti, como 
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste. 


Nuno Júdice, in 'Pedro, Lembrando Inês'


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

"Naquela Praça" - Poema de José Fanha


Maurice Utrillo, Place des Abbesses, Montmartre, c.1931



Naquela Praça


Hei de encontrar-te ali
naquela praça que talvez já não exista.

Praça da palavra.
Praça da canção.
Praça de bandeiras a beijar
os primeiros odores da primavera.

Hei de encontrar-te um dia
ao alto da cidade
partilhando pão
azeitonas
e poema.

Ali
naquela praça que talvez já não exista
hei de encontrar-te um dia
e seguiremos
abraçando
as laranjeiras
desfraldando
uma vez mais
a nossa voz ao vento.


Tempo Azul
Porto, Campo das Letras, 2000


Maurice Utrillo, La Rue Norvins à Montmartre, c. 1910


"Quanto mais areia escorreu no relógio de nossa vida, mais claramente deveríamos ver através do vidro." 
 
"The more sand has escaped from the hour-glass of our life, the clearer we should see through it."

(Jean-Paul Sartre)
 
 Jean-Paul Sartre in Rapport du Comité consultatif: Report of the Advisory committee - Página 362
International Financial Conference, League of Nations - 1837



domingo, 21 de fevereiro de 2016

"Cantiga Felina" - Poema de José Fanha


Arthur Hacker (English classicist painter, 1858–1919)
 


Cantiga Felina


Eu sou uma gata gatona gatinha
pequena ladina
feroz e feliz e felina.
Eu sou uma gata que come
fanecas e figos
Feijão e favona e favinha
e…
comigo ninguém faz farinha!

Eu sou uma gata gatona gatinha
faceira furtiva
fadista fiel e festiva.
Eu sou uma gata que foge
da fúria do fogo
fanhosa felpuda fininha
e…
comigo ninguém faz farinha!

Eu sou uma gata gatona gatinha
uma bela figura
que fala que funga e que fura.
Eu sou uma gata que veste
um fatinho forrado
com fita fivela e fitinha
e…
comigo ninguém faz farinha!





Lotte Laserstein
 (German-Swedish painter, 1898–1993)


"Observe um gato quando entra num quarto pela primeira vez. Procura cheiros, não fica quieto um momento, não confia em nada até que examinou e travou conhecimento com tudo." 



Lotte Laserstein (German-Swedish painter, 1898–1993), Woman with a Cat 


"A veneração dos egípcios pelos gatos não era nem tola nem infantil. Por meio do gato, o Egito definiu e refinou sua complexa estética."





“Existem duas maneiras de nos refugiarmos das misérias da vida: música e gatos” 



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

"Baby!" - Poema de Luís de Montalvor


Bryce Cameron Liston (American artist, born in 1965)



Baby! 


Baby! Sossega a tua voz. Não digas mais 
Essas canções do Mundo. Deixa que eu esqueço 
Que fui menino ao colo de seus pais. 
Deixa! Que o coração em si mesmo o adormeço... 

Com olhos de criança olho os desiguais 
Dias e nuvens, sós, passando, e empalideço... 
Canto de Prometeu todo desfeito em ais! 
E a vida, a vida até, brinquedo que aborreço... 

Mundo dos meus enganos como a desventura! 
Experiência, - pobre fumo! Anela o meu cabelo 
E põe-me o bibe azul e antigo da Ternura... 

Que a vida, essa Babel desfeita que se embala, 
ainda é para mim - criança de Deus, pesadelo 
Da infância das fanfarras, fogo de Bengala! 


Luís de Montalvor, in 'Antologia Poética'


Luís de Montalvor (Daqui)


Luís de Montalvor, poeta, ensaísta e editor português, de nome verdadeiro Luís Filipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos, nasceu a 31 de janeiro de 1891, em S. Vicente, Cabo Verde, e faleceu a 2 de março de 1947, em Lisboa. 
Como editor e colaborador de Orpheu, em 1915 - onde publica, no número 1, Introdução, editorial que sublinha o carácter elitista do projeto estético que une o grupo de Orpheu, e, no número 2, o poema "Narciso" -, o seu nome inscreve-se no primeiro modernismo, no que esse movimento representou de continuidade e redescoberta do simbolismo-decadentismo. É nesse sentido que, ao fundar, no ano seguinte, Centauro, publica, a título programático relativamente à publicação, a "Tentativa de um ensaio sobre a Decadência", onde apela para uma recuperação do simbolismo, cuja breve explicação baseia numa teoria dos símbolos, bebida em Maeterlinck, movimento literário enaltecido por conter uma "teoria de libertação", "um fundo espiritual poético e misterioso, mais adiante identificado como "flor da arte decadente": ser-se decadente "É ser-se, enfim, andrógino e equívoco de qualquer maneira. É ser-se, enfim, todos, sem ser o que todos são, [...] Só são decadentes os que receberam o mandato de Deus e da Beleza [...]". É, aliás, nas páginas de Centauro, e na sequência desta reflexão, que publica os poemas inéditos de Camilo Pessanha (posteriormente recolhidos em Clepsidra, 1920), como expressão mais pura do simbolismo português. Vindo ainda a colaborar em Presença, Exílio, Athena, Contemporânea, Sudoeste, Cadernos de Poesia e Seara Nova, Luís de Montalvor desenvolveu simultaneamente uma atividade editorial de especial relevância cultural, se considerarmos o impacto que a leitura dos modernistas teve para as gerações poéticas dos anos 40 e 50, ao encetar, na editorial e livraria Ática, fundada pelo próprio em 1942, a publicação e divulgação das obras completas de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro. A sua poesia, esparsamente publicada, foi coligida postumamente, em 1960, e revela, sobretudo a partir da sua aproximação ao grupo de "Orpheu", uma íntima conexão com uma estética decadentista-simbolista. Numa abordagem mais modernista, publicou Noite de Satan e A Caminho, e, em colaboração com Diogo de Macedo, A Arte Indígena Portuguesa (1935). (Daqui)


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Canção a caminho do céu" - Poema de Cecília Meireles


Pierre Carrier-Belleuse (French, 1851-1932), Ballerina. Pastel on canvas.



Canção a caminho do céu


Foram montanhas? Foram mares?
foram os números...?— não sei.
Por muitas coisas singulares,
não te encontrei.

E te esperava, e te chamava,
e entre os caminhos me perdi.
Foi nuvem negra? Maré brava?
Era por ti.

As mãos que trago, as mãos são estas.
Elas sozinhas te dirão
se vem de mortes ou de festas
o meu coração.

Tal como sou, não te convido
a ires para onde eu for.

Tudo que tenho é haver sofrido
pelo meu sonho, alto e perdido,
e o encantamento arrependido
do meu amor.


 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

"Testamento" - Poema de Ana Luísa Amaral


Robert Delaunay, Champs de Mars, La Tour Rouge, 1911, Art Institute of Chicago .



Testamento 


Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos

Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas

Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras.




sábado, 13 de fevereiro de 2016

"À Morte peço a Paz farto de tudo" - Poema de William Shakespeare





À Morte peço a Paz farto de tudo


À morte peço a paz farto de tudo,
de ver talento a mendigar o pão,
e o oco abonitado e farfalhudo,
e a pura fé rasgada na traição,
e galas de ouro em despejados bustos,
e a virgindade à bruta rebentada,
e em justa perfeição tratos injustos,
e o valor da inépcia valer nada,
e autoridade na arte pôr mordaça,
e pedantes a engenho dando lei,
e a verdade por lorpa como passa,
e no cativo bem o mal ser rei.
Farto disto, não deixo o meu caminho,
pois se eu morrer, é o meu amor sozinho. 


in "Sonetos (66)"



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

"Criei, não Possuí" - Poema de Orlando Neves


Albert Gleizes, 1915, Composition pour Jazz, oil on cardboard, 73 x 73 cm



Criei, não Possuí


Criei, não possuí. 
Instante de infinitude, o que moldei na voz 
respira. A firme casa do meu corpo se fez 
pelo contraste, que só o contrário cria. 
Não possuí, 
denso ou raro, 
pequeno até ao nada, 
nenhum símbolo, 
nenhum olhar de brasa, 
nenhum odor colado à pele. 
Pretendi a verdade, mas tudo se muda 
pelos meus olhos e a fosca luz do que foi viver 
só no amor se moveu. Morto o amor, 
transforma-se a água. 
Onde a noite não há e o dia não é, 
esqueço as mudanças do tempo 
e com meus ardis me defendo 
do terror de mim. 


in "Noema - Regresso de Orfeu"


terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

"Manhã de Inverno" - Poema de Machado de Assis


Jozef Israëls (Dutch painter, 1824–1911), We Grow Old, 1878.



Manhã de Inverno


Coroada de névoas, surge a aurora 
Por detrás das montanhas do oriente; 
Vê-se um resto de sono e de preguiça, 
Nos olhos da fantástica indolente. 

Névoas enchem de um lado e de outro os morros 
Tristes como sinceras sepulturas, 
Essas que têm por simples ornamento 
Puras capelas, lágrimas mais puras. 

A custo rompe o sol; a custo invade 
O espaço todo branco; e a luz brilhante 
Fulge através do espesso nevoeiro, 
Como através de um véu fulge o diamante. 

Vento frio, mas brando, agita as folhas 
Das laranjeiras úmidas da chuva; 
Erma de flores, curva a planta o colo, 
E o chão recebe o pranto da viúva. 

Gelo não cobre o dorso das montanhas, 
Nem enche as folhas trémulas a neve; 
Galhardo moço, o inverno deste clima 
Na verde palma a sua história escreve. 

Pouco a pouco, dissipam-se no espaço 
As névoas da manhã; já pelos montes 
Vão subindo as que encheram todo o vale; 
Já se vão descobrindo os horizontes. 

Sobe de todo o pano; eis aparece 
Da natureza o esplêndido cenário; 
Tudo ali preparou co’os sábios olhos 
A suprema ciência do empresário. 

Canta a orquestra dos pássaros no mato 
A sinfonia alpestre, — a voz serena 
Acordo os ecos tímidos do vale; 
E a divina comédia invade a cena.


Machado de Assis, in 'Falenas'

domingo, 7 de fevereiro de 2016

“Um homem e o seu carnaval” - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Robert Delaunay, 1906, Carousel of Pigs, oil on canvas, Solomon R. Guggenheim Museum




“Um homem e o seu carnaval”


Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.

O pandeiro bate
é dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.

Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente.


Carlos Drummond de Andrade



Queen - Innuendo