quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

"Em memória de Angélica" - Poema de Jorge Luis Borges


Thomas Eakins, The Agnew Clinic (or The Clinic of Dr. Agnew), 1889



Em memória de Angélica


Quantas vidas possíveis já descansam
Nesta bem pobre e diminuta morte,
Quantas vidas possíveis que outra sorte
Daria ao esquecimento ou à lembrança!
Quando eu morrer, morrerá um passado;
Com esta flor, morreu só um futuro
Nas águas que o ignoram, o mais puro
Porvir hoje pios astros arrasado.
Eu, como ela, morro em infinitos
Destinos que já não me oferece o acaso;
Procura a minha sombra os gastos mitos
De uma pátria que sempre deu a face.
Um breve mármore diz a sua memória;
Sobre nós todos cresce, atroz, a história. 


Jorge Luis Borges, in “A Rosa Profunda”
 

Thomas Eakins, Portrait of  Samuel David Gross (The Gross Clinic), 1875 ,  
"A ciência poderá ter encontrado a cura para a maioria dos males, mas não achou ainda remédio para o pior de todos: a apatia dos seres humanos."
 
 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

"Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça" - Poema de António Amaral Tavares


Paul Klee, Tod und Feuer (Death and Fire), 1940



Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça


Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça
um euro e trinta e cinco cêntimos 16 de Agosto de 2011
não dá para o tabaco. Quero lembrá-lo que o verão está a acabar

e eu já ouço passos nos caminhos da lama e do medo
e há coisas que só no verão se fazem e eu ainda não fiz
como ouvir o rumorejar do mar nos meus pulsos.

Os seus medicamentos doutor deixam-me sem mim
o meu pai disse-me que a minha doença só lhe traz problemas
doutor há uma pedra intraduzível entre nós dois

quero dizer-lhe que há pessoas muito pobres que querem
o meu rim esquerdo doutor o mundo não é perfeito
e não me diga para lhe contar tudo como a um padre

eu não quero morrer outra vez essa frase fá-lo muito feio.
Acredite que vi gente morrer porque era maior que o corpo
tenho a impressão que o corpo não sabe o que tem dentro

acredite que consigo fundir uma lâmpada só com o olhar
já fundi muitas lâmpadas só com o olhar
e que vi um anjo atravessar os muros de um hospício

rasante e belo como uma garça.
Doutor há muito pouco tempo para a poesia.
Isto que lhe digo é verdade todos os dias doutor. 


António Amaral Tavares
(Daqui)


domingo, 24 de fevereiro de 2019

"O que vocês não sabem e nem imaginam" - Poema de Eduardo White


Peleg Franklin Brownell (American, 1857 - 1946), The Photographer, 1896,
National Gallery of Canada - Ottawa (Canada) 
 


O que vocês não sabem e nem imaginam


Vocês não sabem
mas todas as manhãs me preparo
para ser, de novo, aquele homem.
Arrumo as aflições, as carências,
as poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,
o vinagre para as mágoas
e o cansaço que usarei
mais para o fim da tarde.

À hora do costume,
estou no meu respeitoso emprego:
o de Secretário de Informação e de Relações Públicas.
Aturo pacientemente os colegas,
felizes em seus ostentosos cargos,
em suas mesas repletas de ofícios,
os ares importantes dos chefes
meticulosamente empacotados em seus fatos,
a lenta e indiferente preguiça do tempo.

Todas as manhãs tudo se repete.
O poeta Eduardo White se despede de mim
à porta de casa,
agradece-me o esforço que é mantê-lo,
alimentado, vestido e bebido
(ele sem mover palha)
me lembra o pão que devo trazer,
os rebuçados para prendar o Sandro,
o sorriso luzidio e feliz para a Olga,
e alguma disposição da que me reste
para os amigos que, mais logo,
possam eventualmente aparecer.

Depois, ao fim da tarde,
já com as obrigações cumpridas,
rumo a casa.
À porta me esperam
a mulher, o filho e o poeta.
A todos cumprimento de igual modo.

Um largo sorriso no rosto,
um expresso cansaço nos olhos,
para que de mim se apiedem
e se esmerem no respeito,
e aquele costumeiro morro de fome.

Então à mesa, religiosamente comemos os quatro
o jantar de três
(que o poeta inconsta
na ficha do agregado).

Fingidamente satisfeito ensaio
um largo bocejo
e do homem me dispo.
Chamo pela Olga para que o pendure,
junto ao resto da roupa,
com aquele jeito que só ela tem
de o encabidar sem o amarrotar.

O poeta, visto depois
e é com ele que amo,
escrevo versos
e faço filhos.


 
 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

"Sobre o caminho" - Poema de Eugénio de Andrade


 


Sobre o caminho


Nada.

Nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra.

Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença.

Não coleciones dejetos o teu destino és tu.

Despe-te
não há outro caminho.


Eugénio de Andrade,
in "Véspera da Água", 1973


domingo, 17 de fevereiro de 2019

"O Ladrão de Versos" - Poema de Rui Knopfli


Nikolaos Gyzis (1842–1901), Boy with cherries, 1888
  Private collection



O Ladrão de Versos


Uma gargalhada do meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingénuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro de meu filho. 


Rui Knopfli, Obra Poética, 2003



Nikolaos Gyzis
, Eros and the Painter, 1868 


Rui Knopfli

 
Poeta moçambicano, Rui Knopfli nasceu em 1932, em Inhambane, Moçambique, e faleceu em 1997.
Desde finais dos anos 50, desenvolveu uma sólida obra poética que não é facilmente incluída nas correntes literárias moçambicanas, assumindo-se antes como continuadora da tradição lírica do Ocidente. Camões, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa ou T. S. Eliot poderiam servir de referência para analisar a poética de Knopfli. Isto apesar de, por ter nascido em plena savana de Moçambique, muita da sua imagética remeter para paragens africanas. A concisão e o cuidado formal de que se revestem os seus poemas refletem um sentir contido e desencantado, perante uma realidade muitas vezes altamente agressiva.

Rui Knopfli viveu em Moçambique até aos 43 anos, tendo colaborado em diversos jornais e co-dirigido, com Eugénio Lisboa, os suplementos literários do semanário A Voz de Moçambique e do diário A Tribuna. O País dos Outros (1959), Reino Submarino (1962) e Máquina de Areia (1964) foram os seus primeiros livros, mas é Mangas Verdes com Sal o seu livro da maturidade enquanto poeta. Nele escreve: «Eu trabalho, dura e dificilmente, / a madeira rija dos meus versos, / sílaba a sílaba, palavra a palavra», verdadeiro testemunho do despojamento e da precisão que caracteriza o seu estilo.  
Knopfli olhava as correntes literárias em voga nas décadas de 60 com distanciamento e até ironia. Apesar de ter experimentado escrever poemas concretistas, foi sobre um estilo de depuramento clássico e formal que sempre se debruçou com maior interesse. Por outro lado, é frequentemente classificado como poeta barroco, contribuindo para tal não só o desenvolvimento de temas como o tempo e o desengano, como o próprio uso da linguagem rigorosa com que talha os seus versos. Daí a sua independência e originalidade, daí a dificuldade em integrá-lo nas correntes literárias.
O desencanto do poeta não soa a revolta, antes a uma passividade indiferente. As imagens podem ser violentas ou ameaçadoras, mas isso acontece quase que subliminarmente, já que o que prevalece é a serenidade das coisas, bem harmonizada com um estilo sóbrio, revelador de algo que está para além da dor.

Em 1975 teve que partir para Londres, onde em 1982 assumiu o cargo de conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal. Rui Knopfli, que desde sempre pautara a sua poesia por uma forte incidência urbana, onde o artificial se sobrepunha à natureza, vê-se agora mergulhado no mais intenso cosmopolitismo, facto esse que, em vez de se harmonizar com o seu sentir, antes lhe intensifica o sentimento de exílio e, consequentemente, de desolação. Daí que, na senda de outros poetas de língua portuguesa, confesse, em 1978, no livro O Escriba Acocorado: «pátria é só a língua em que me digo».
A sua carreira literária prosseguiu em 1982 com a edição coligida de toda a sua poesia, reunida no livro Memória Consentida - Vinte Anos de Poesia, e O Corpo de Atena, de 1984, para além da edição, conjuntamente com Grabato Dias, dos cadernos de poesia Calibán. (Daqui)


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

"Amor" - Poema de Natércia Freire


Paul Klee (1879-1940), Eros, 1923



Amor


 Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.
Longe respira a vida. Aqui o sonho.
Tudo é infância de águas e colinas
Na manhã dos teus olhos.
E voos de mãos dadas.
E cantos, cantos de infinito amor,
Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.

Envolve-se de nuvem nosso abraço.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem. Fadas e duendes
agitam instrumentos na folhagem.

Vibrátil, fina, imperceptível, fluída
orquestra ao longe. Ao fundo dos sentidos.
Dedos de flores ondeiam sobre a pele
de Céus indefinidos.

Cantam mistérios bocas fascinadas.
Abrem corolas sob a luz que as toca.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca. 
 in 'Antologia Poética'


terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

"O Noivado do Sepulcro" - Poema de Soares de Passos

Enrique Simonet, Anatomy of the heart; And she had a heart!; Autopsy, 1890, Museo de Málaga



O Noivado do Sepulcro


Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!

- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda,
Responde um eco suspirando além...
- "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
- "Oh vejo sim... recordação fatal!
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só. 
 

in 'Antologia Poética'

Noivado do Sepulcro é um poema do autor ultrarromântico Soares de Passos. Sofrendo da doença da época, a tuberculose, nunca deixou, contudo de se afirmar como um defensor dos ideais do progresso e da liberdade, circunstâncias que vão espelhar-se na sua obra. Autor de muitos outros textos poéticos, nomeadamente O Firmamento, é, sem dúvida, O Noivado do Sepulcro, o seu mais célebre poema. Constituindo as delícias de um gosto da época, caracterizado pelo apego ao sofrimento hiperbolizado, resultado das contrariedades do amor e das vidas, este texto poético era frequentemente recitado nos saraus burgueses, acompanhado ao piano. É considerado um dos momentos altos do ultrarromantismo português.
Integrado numa estética assente na hiperbolização dos sentimentos, a compreensão deste poema só pode ser clara, se visto como uma unidade do conjunto da sua obra que tematicamente atira o leitor para "o pressentimento de uma morte precoce, associado ao desgosto patriótico".
Fruto da escola ultrarromântica, O Noivado do Sepulcro e a obra de Soares de Passos, embora caracterizados por alguma banalidade substantiva, conseguem sair das linhas piegas e lamechas que caracterizam esta estética. Apresentando uma majestade, uma magia e uma doçura rítmica, permitem a sua associação com o mundo da música. (daqui)
 

domingo, 10 de fevereiro de 2019

"A Minha Filha" - Poema de Guerra Junqueiro


James Jebusa Shannon (American Painter, 1862-1923), Portrait of Lady Diana Cooper, 1900



A Minha Filha
 (Vendo-a dormir) 

Que alma intacta e delicada!
Que argila pura e mimosa!
É a estrela d'alvorada
Dentro dum botão de rosa!

E, enquanto dormes tranquila,
Vejo o divino esplendor
Da alma a sair da argila,
Da estrela a sair da flor!

Anjos, no azul inocente,
Sobre o teu hálito leve
Desdobram candidamente,
Em pálio, as asas de neve...

E eu, urze má das encostas,
Eu sinto o dever sagrado
De te beijar— de mãos postas!
De te abençoar — ajoelhado! 
in 'Poesias Dispersas'

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

"A uma mulher que sendo velha se enfeitava" - Poema de D. Tomás de Noronha


Louis Moeller (1855–1930), Tea Party, 1905



A uma mulher que sendo velha se enfeitava


Escuta, ó Sara, pois te falta espelho
Para ver tuas faltas,
Não quero que te falte meu conselho
Em presunções tão altas;
Lembro-te agora só, que és terra, e lodo,
E em terra hás de tornar-te deste modo,
Mas não te digo, nem te lembro nada,
Porque há muito, que em terra estás tornada.

Que importa, que algum tempo a prata pura
De tuas mãos nascesse,
E que de teus cabelos a espessura
As minas de ouro desse,
Se o tempo vil, que tudo troca, e muda,
Somente de ouro pôs por mais ajuda
Em tuas mãos de prata o amarelo,
E a prata de tuas mãos em teu cabelo.

Se um tempo foram de marfim brunido
No século dourado,
Não vês, que o tempo as tem já consumido?
Não vês, que as tem gastado?
Deixa, Senhora, deixa os vãos enredos,
Pois quando toco teus nodosos dedos,
Me parece, que apalpo sem enganos
Cinco cordões de frades Franciscanos.

Viciando a natureza com tuas tintas,
Com pincéis delicados
Jasmins, e rosas em teu rosto pintas,
Deixa estes vãos cuidados,
Que quanto mais tua cara se alvorota
Máscara me pareces de chacota,
E se sem tintas, cuido neste passo
Que esta máscara está em calhamaço.

Como pretendes pois com mil enganos
Vestir mil primaveras,
Se passou a primavera de teus anos?
Como não desesperas,
Se o tempo te pôs já no Inverno frio,
Aonde toda fruta perde o brio?
Parecendo teu rosto, e porque enfada,
Fruta, que se secou, noz arrogada.

Se feitura de Deus Eva não fora,
Dissera sem porfias
Que de Eva foste mãe, velha senhora,
Pois te sobejam os dias
Para esta presunção, que agora tenho;
E concluindo enfim, a alcançar venho,
Pois alcançar não posso a tua idade,
Que deves de ser mãe da eternidade.

Parece que teus olhos por consciência
A idade os tem metidos
Em duas lapas fazendo penitência;
E estão tão escondidos,
Que quando os vou buscar, porque me choram
Não acerto com o beco, onde moram,
Porque o tempo os mudou seu passo, e passo
Da flor do rosto lá para o cachaço.

Se a meus olhos despida te ofereces,
Minha alma logo pasma,
E estética nos ossos me pareces,
Ou quando não fantasma;
E assim, senhora, se te vejo em osso,
Com essa cara posta em tal pescoço,
Me pareces, tirada a cabeleira,
Em cima de um bordão uma caveira.

Como ainda queres em desatinos
Dar a meninos mama:
Se já contigo desmamei meninos?
Deixa essa torpe fama,
Sabe que sei (e disto não me gabo)
Que te alugou sem dúvida o diabo,
Invejando teu corpo, cara, e dedos
Para fazer a Santo Antão os medos.

Deixa, senhora, deixa o vão cuidado,
A sagrado te acolhe,
Primeiro que te ponham em sagrado;
Este conselho escolhe,
Admite o que te digo sem desgosto,
Que eu quando vejo teu funesto rosto
Já também dele o seu conselho tomo,
Porque mudo me dá Memento homo.


D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V 



Louis Moeller, The Recitation


D. Tomás de Noronha nasceu em Alenquer, em data incerta, e terá falecido em 1651. Era filho de um fidalgo escudeiro do rei D. Sebastião. Casou com uma prima e, tendo enviuvado, casou pela segunda vez.

Jacinto Cordeiro (1606-1646), poeta e dramaturgo, conhecido e apreciado na época sobretudo pelas suas comédias, no seu Elogio dos Poetas Lusitanos (1631), coloca-o entre os mais célebres poetas do seu tempo

Tomás de Noronha participou no movimento de reação crítica ao estilo poético existente na Fénix Renascida e no Postilhão de Apolo, atacando o ridículo do artificiosismo que se fazia sentir nas composições literárias da época. Podou, em oitavas herói-cómicas, o estilo do seu tempo em autênticas paródias de lugares-comuns gongóricos. Dedicou-se, assim, à sátira caricaturesca dos vícios, vergonhas e torpezas sociais em estilo quase sempre indecoroso e grosseiro. Os versos eram para ele ora uma forma de pedir favores (o que é vulgar até ao Romantismo), ora uma forma de descarregar os seus ressentimentos de fidalgo de alta estirpe sem rendimentos condignos. A sua miséria fê-lo perder todo o respeito às diferentes condições sociais, sem excluir as prestigiadas pela religião ou as que motivam a compaixão, pelo sofrimento que vivem. Desenhou-nos o feroz autorretrato atualizado do escudeiro vicentino, entre outras críticas de tipos e costumes.

Tomás de Noronha, conhecido pelo apodo de Marcial de Alenquer devido ao carácter satírico das suas composições poéticas, deixou-nos ótimos exemplos de textos ricos em alusões ao mundo social circundante como Bulha de Regateiras e A uns noivos que se foram receber, levando ele os vestidos emprestados e indo ela muito doente e chagada:

Saiu a noiva muito bem trajada,
Saiu o noivo muito bem trajado,
O noivo em tudo muito conchegado,
A noiva em tudo muito conchagada.

Ela uma anágoa muito bem bordada,
Ele um capote muito bem bordado;
Do mais do noivo tudo de emprestado,
Do mais da noiva tudo de emprastrada.

Folgámos todos os amigos seus
De ver o noivo assim com tanto brio,
De ver a noiva assim com tantos brios.

Disse-lhe o cura então: – Confia em Deus.
E respondeu o noivo: – E eu confio.
E respondeu a noiva: – E eu com fios.


D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V
Louis Moeller, Home Again, 1903, The Athenaeum, Boston


Poesia satírica
 
A literatura medieval portuguesa testemunha uma vocação satírica cultivada desde os cancioneiros primitivos até à poesia palaciana. Na lírica trovadoresca galego-portuguesa, as cantigas de escárnio e maldizer, visando com frequência certas personagens como jograis, soldadeiras, clérigos, fidalgos, plebeus nobilitados, satirizam certos aspetos da vida da corte, circunstâncias políticas, situações anedóticas e picarescas que apresentam uma ridicularização do amor cortês. Menos licenciosa, a poesia satírica do Cancioneiro Geral, assumindo também a sátira à sociedade do tempo, moteja costumes, indumentárias, constrangimentos da vida da corte; assume, frequentemente, uma postura antiexpansionista; denuncia a desordem social e apresenta, num ataque às damas, o reverso do amor cortês, privilegiando as composições coletivas de tom jocoso. (Daqui)


domingo, 3 de fevereiro de 2019

"A Velhice é um Vento" - Poema de Fernando Echevarría


Jan van Beers (1852–1927, Belgian painter and illustrator, the son
 of the poet Jan van Beers, 1821–1888), When Stars Set, 1874.


A Velhice é um Vento



A velhice é um vento que nos toma
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.


Fernando Echevarría, in "Figuras"
 

Peter Benoit (Flemish composer of Belgian nationality, 1834–1901)
painted by Jan van Beers


"Quando mais envelhecemos, mais precisamos de ter que fazer. Mais vale morrer do que arrastarmos na ociosidade uma velhice insípida: trabalhar é viver."
 
 

sábado, 2 de fevereiro de 2019

"Cenário" - Poema de Cecília Meireles





Cenário


Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado
pascer nas solidões esmeraldinas.

Largos rios de corpo sossegado
dormiam sobre a tarde, imensamente,
— e eram sonhos sem fim, de cada lado.

Entre nuvens, colinas e torrente,
uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.

Que vento, que cavalo, que bravia
saudade me arrastava a esse deserto,
me obrigava a adorar o que sofria?

Passei por entre as grotas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.

As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.

De coração votado a iguais perigos
vivendo as mesmas dores e esperanças,
a voz ouvi de amigos e inimigos

Vencendo o tempo, fértil em mudanças,
conversei com doçura as mesmas fontes,
e vi serem comuns nossas lembranças.

Da brenha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustêm nos longos horizontes,

tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.

Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areias dolorosas,

por onde o passo da ambição rugia;
por onde se arrastava, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.

Escuto os alicerces que o passado
tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
de muros de ouro em fogo evaporado.

Altas capelas cantam-me divinas
fábulas. Torres, santos e cruzeiros
apontam-me altitudes e neblinas.

Ó pontes sobre os córregos! ó vasta
desolação de ermas, estéreis serras
que o sol frequenta e a ventania gasta!

Armado pó que finge eternidade,
lavra imagens de santos e profetas
cuja voz silenciosa nos persuade.

E recompunha as coisas incompletas:
figuras inocentes, vis, atrozes,
vigários, coronéis, ministros, poetas.

Retrocedem os tempos tão velozes
que ultramarinos árcades pastores
falam de Ninfas e Metamorfoses.

E percebo os suspiros dos amores
quando por esses prados florescentes
se ergueram duros punhos agressores.

Aqui tiniram ferros de correntes;
pisaram por ali tristes cavalos.
E enamorados olhos refulgentes

— parado o coração por escutá-los
prantearam nesse pânico de auroras
densas de brumas e gementes galos.

Isabéis, Dorotéias, Heliodoras,
ao longo desses vales, desses rios,
viram as suas mais douradas horas

em vasto furacão de desvarios
vacilar como em caules de altas velas
cálida luz de trêmulos pavios.

Minha sorte se inclina junto àquelas
vagas sombras da triste madrugada,
fluidos perfis de donas e donzelas.

Tudo em redor é tanta coisa e é nada:
Nise, Anarda, Marília… — quem procuro?
Quem responde a essa póstuma chamada?

Que mensageiro chega, humilde e obscuro?
Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja?
Quem foge? Entre que sombras me aventuro?

Quem soube cada santo em cada igreja?
A memória é também pálida e morta
sobre a qual nosso amor saudoso adeja.

O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,

vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.

Eloquência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!…”
(Esse adeus estremece a minha vida.)