Louis Moeller (1855–1930), Tea Party, 1905
A uma mulher que sendo velha se enfeitava
Escuta, ó Sara, pois te falta espelho
Para ver tuas faltas,
Não quero que te falte meu conselho
Em presunções tão altas;
Lembro-te agora só, que és terra, e lodo,
E em terra hás de tornar-te deste modo,
Mas não te digo, nem te lembro nada,
Porque há muito, que em terra estás tornada.
Que importa, que algum tempo a prata pura
De tuas mãos nascesse,
E que de teus cabelos a espessura
As minas de ouro desse,
Se o tempo vil, que tudo troca, e muda,
Somente de ouro pôs por mais ajuda
Em tuas mãos de prata o amarelo,
E a prata de tuas mãos em teu cabelo.
Se um tempo foram de marfim brunido
No século dourado,
Não vês, que o tempo as tem já consumido?
Não vês, que as tem gastado?
Deixa, Senhora, deixa os vãos enredos,
Pois quando toco teus nodosos dedos,
Me parece, que apalpo sem enganos
Cinco cordões de frades Franciscanos.
Viciando a natureza com tuas tintas,
Com pincéis delicados
Jasmins, e rosas em teu rosto pintas,
Deixa estes vãos cuidados,
Que quanto mais tua cara se alvorota
Máscara me pareces de chacota,
E se sem tintas, cuido neste passo
Que esta máscara está em calhamaço.
Como pretendes pois com mil enganos
Vestir mil primaveras,
Se passou a primavera de teus anos?
Como não desesperas,
Se o tempo te pôs já no Inverno frio,
Aonde toda fruta perde o brio?
Parecendo teu rosto, e porque enfada,
Fruta, que se secou, noz arrogada.
Se feitura de Deus Eva não fora,
Dissera sem porfias
Que de Eva foste mãe, velha senhora,
Pois te sobejam os dias
Para esta presunção, que agora tenho;
E concluindo enfim, a alcançar venho,
Pois alcançar não posso a tua idade,
Que deves de ser mãe da eternidade.
Parece que teus olhos por consciência
A idade os tem metidos
Em duas lapas fazendo penitência;
E estão tão escondidos,
Que quando os vou buscar, porque me choram
Não acerto com o beco, onde moram,
Porque o tempo os mudou seu passo, e passo
Da flor do rosto lá para o cachaço.
Se a meus olhos despida te ofereces,
Minha alma logo pasma,
E estética nos ossos me pareces,
Ou quando não fantasma;
E assim, senhora, se te vejo em osso,
Com essa cara posta em tal pescoço,
Me pareces, tirada a cabeleira,
Em cima de um bordão uma caveira.
Como ainda queres em desatinos
Dar a meninos mama:
Se já contigo desmamei meninos?
Deixa essa torpe fama,
Sabe que sei (e disto não me gabo)
Que te alugou sem dúvida o diabo,
Invejando teu corpo, cara, e dedos
Para fazer a Santo Antão os medos.
Deixa, senhora, deixa o vão cuidado,
A sagrado te acolhe,
Primeiro que te ponham em sagrado;
Este conselho escolhe,
Admite o que te digo sem desgosto,
Que eu quando vejo teu funesto rosto
Já também dele o seu conselho tomo,
Porque mudo me dá Memento homo.
D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V
Para ver tuas faltas,
Não quero que te falte meu conselho
Em presunções tão altas;
Lembro-te agora só, que és terra, e lodo,
E em terra hás de tornar-te deste modo,
Mas não te digo, nem te lembro nada,
Porque há muito, que em terra estás tornada.
Que importa, que algum tempo a prata pura
De tuas mãos nascesse,
E que de teus cabelos a espessura
As minas de ouro desse,
Se o tempo vil, que tudo troca, e muda,
Somente de ouro pôs por mais ajuda
Em tuas mãos de prata o amarelo,
E a prata de tuas mãos em teu cabelo.
Se um tempo foram de marfim brunido
No século dourado,
Não vês, que o tempo as tem já consumido?
Não vês, que as tem gastado?
Deixa, Senhora, deixa os vãos enredos,
Pois quando toco teus nodosos dedos,
Me parece, que apalpo sem enganos
Cinco cordões de frades Franciscanos.
Viciando a natureza com tuas tintas,
Com pincéis delicados
Jasmins, e rosas em teu rosto pintas,
Deixa estes vãos cuidados,
Que quanto mais tua cara se alvorota
Máscara me pareces de chacota,
E se sem tintas, cuido neste passo
Que esta máscara está em calhamaço.
Como pretendes pois com mil enganos
Vestir mil primaveras,
Se passou a primavera de teus anos?
Como não desesperas,
Se o tempo te pôs já no Inverno frio,
Aonde toda fruta perde o brio?
Parecendo teu rosto, e porque enfada,
Fruta, que se secou, noz arrogada.
Se feitura de Deus Eva não fora,
Dissera sem porfias
Que de Eva foste mãe, velha senhora,
Pois te sobejam os dias
Para esta presunção, que agora tenho;
E concluindo enfim, a alcançar venho,
Pois alcançar não posso a tua idade,
Que deves de ser mãe da eternidade.
Parece que teus olhos por consciência
A idade os tem metidos
Em duas lapas fazendo penitência;
E estão tão escondidos,
Que quando os vou buscar, porque me choram
Não acerto com o beco, onde moram,
Porque o tempo os mudou seu passo, e passo
Da flor do rosto lá para o cachaço.
Se a meus olhos despida te ofereces,
Minha alma logo pasma,
E estética nos ossos me pareces,
Ou quando não fantasma;
E assim, senhora, se te vejo em osso,
Com essa cara posta em tal pescoço,
Me pareces, tirada a cabeleira,
Em cima de um bordão uma caveira.
Como ainda queres em desatinos
Dar a meninos mama:
Se já contigo desmamei meninos?
Deixa essa torpe fama,
Sabe que sei (e disto não me gabo)
Que te alugou sem dúvida o diabo,
Invejando teu corpo, cara, e dedos
Para fazer a Santo Antão os medos.
Deixa, senhora, deixa o vão cuidado,
A sagrado te acolhe,
Primeiro que te ponham em sagrado;
Este conselho escolhe,
Admite o que te digo sem desgosto,
Que eu quando vejo teu funesto rosto
Já também dele o seu conselho tomo,
Porque mudo me dá Memento homo.
D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V
Louis Moeller, The Recitation
D. Tomás de Noronha nasceu em Alenquer, em data incerta, e terá falecido em 1651. Era filho de um fidalgo escudeiro do rei D. Sebastião. Casou com uma prima e, tendo enviuvado, casou pela segunda vez.
Jacinto Cordeiro (1606-1646), poeta e dramaturgo, conhecido e apreciado na época sobretudo pelas suas comédias, no seu Elogio dos Poetas Lusitanos (1631), coloca-o entre os mais célebres poetas do seu tempo
Jacinto Cordeiro (1606-1646), poeta e dramaturgo, conhecido e apreciado na época sobretudo pelas suas comédias, no seu Elogio dos Poetas Lusitanos (1631), coloca-o entre os mais célebres poetas do seu tempo
Tomás de Noronha participou no movimento de reação crítica ao estilo poético existente na Fénix Renascida e no Postilhão de Apolo, atacando o ridículo do artificiosismo que se fazia sentir nas composições literárias da época. Podou, em oitavas herói-cómicas, o estilo do seu tempo em autênticas paródias de lugares-comuns gongóricos. Dedicou-se, assim, à sátira caricaturesca dos vícios, vergonhas e torpezas sociais em estilo quase sempre indecoroso e grosseiro. Os versos eram para ele ora uma forma de pedir favores (o que é vulgar até ao Romantismo), ora uma forma de descarregar os seus ressentimentos de fidalgo de alta estirpe sem rendimentos condignos. A sua miséria fê-lo perder todo o respeito às diferentes condições sociais, sem excluir as prestigiadas pela religião ou as que motivam a compaixão, pelo sofrimento que vivem. Desenhou-nos o feroz autorretrato atualizado do escudeiro vicentino, entre outras críticas de tipos e costumes.
Tomás de Noronha, conhecido pelo apodo de Marcial de Alenquer devido ao carácter satírico das suas composições poéticas, deixou-nos ótimos exemplos de textos ricos em alusões ao mundo social circundante como Bulha de Regateiras e A uns noivos que se foram receber, levando ele os vestidos emprestados e indo ela muito doente e chagada:
Saiu a noiva muito bem trajada,
Saiu o noivo muito bem trajado,
O noivo em tudo muito conchegado,
A noiva em tudo muito conchagada.
Ela uma anágoa muito bem bordada,
Ele um capote muito bem bordado;
Do mais do noivo tudo de emprestado,
Do mais da noiva tudo de emprastrada.
Folgámos todos os amigos seus
De ver o noivo assim com tanto brio,
De ver a noiva assim com tantos brios.
Disse-lhe o cura então: – Confia em Deus.
E respondeu o noivo: – E eu confio.
E respondeu a noiva: – E eu com fios.
D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V
Saiu o noivo muito bem trajado,
O noivo em tudo muito conchegado,
A noiva em tudo muito conchagada.
Ela uma anágoa muito bem bordada,
Ele um capote muito bem bordado;
Do mais do noivo tudo de emprestado,
Do mais da noiva tudo de emprastrada.
Folgámos todos os amigos seus
De ver o noivo assim com tanto brio,
De ver a noiva assim com tantos brios.
Disse-lhe o cura então: – Confia em Deus.
E respondeu o noivo: – E eu confio.
E respondeu a noiva: – E eu com fios.
D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V
Poesia satírica
A literatura medieval portuguesa testemunha uma vocação satírica cultivada desde os cancioneiros primitivos até à poesia palaciana. Na lírica trovadoresca galego-portuguesa, as cantigas de escárnio e maldizer, visando com frequência certas personagens como jograis, soldadeiras, clérigos, fidalgos, plebeus nobilitados, satirizam certos aspetos da vida da corte, circunstâncias políticas, situações anedóticas e picarescas que apresentam uma ridicularização do amor cortês. Menos licenciosa, a poesia satírica do Cancioneiro Geral, assumindo também a sátira à sociedade do tempo, moteja costumes, indumentárias, constrangimentos da vida da corte; assume, frequentemente, uma postura antiexpansionista; denuncia a desordem social e apresenta, num ataque às damas, o reverso do amor cortês, privilegiando as composições coletivas de tom jocoso. (Daqui)
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