segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

"Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça" - Poema de António Amaral Tavares


Paul Klee, Tod und Feuer (Death and Fire), 1940



Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça


Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça
um euro e trinta e cinco cêntimos 16 de Agosto de 2011
não dá para o tabaco. Quero lembrá-lo que o verão está a acabar

e eu já ouço passos nos caminhos da lama e do medo
e há coisas que só no verão se fazem e eu ainda não fiz
como ouvir o rumorejar do mar nos meus pulsos.

Os seus medicamentos doutor deixam-me sem mim
o meu pai disse-me que a minha doença só lhe traz problemas
doutor há uma pedra intraduzível entre nós dois

quero dizer-lhe que há pessoas muito pobres que querem
o meu rim esquerdo doutor o mundo não é perfeito
e não me diga para lhe contar tudo como a um padre

eu não quero morrer outra vez essa frase fá-lo muito feio.
Acredite que vi gente morrer porque era maior que o corpo
tenho a impressão que o corpo não sabe o que tem dentro

acredite que consigo fundir uma lâmpada só com o olhar
já fundi muitas lâmpadas só com o olhar
e que vi um anjo atravessar os muros de um hospício

rasante e belo como uma garça.
Doutor há muito pouco tempo para a poesia.
Isto que lhe digo é verdade todos os dias doutor. 


António Amaral Tavares
(Daqui)


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