terça-feira, 20 de outubro de 2020

"Via-Láctea" - 7 Sonetos (XXII a XXVIII) de Olavo Bilac


Hugues Merle (French, 1823-1881), Woman with blue bow
 

Sonetos

XXII
A Goethe
 
Quando te leio, as cenas animadas
 Por teu génio, as paisagens que imaginas,
 Cheias de vida, avultam repentinas,
 Claramente aos meus olhos desdobradas... 
 
Vejo o céu, vejo as serras coroadas
 De gelo, e o sol, que o manto das neblinas
 Rompe, aquecendo as frígidas campinas
 E iluminando os vales e as estradas.
 
 Ouço o rumor soturno da charrua, 
E os rouxinóis que, no carvalho erguido, 
A voz modulam de ternuras cheia:
 
 E vejo, à luz tristíssima da lua,
 Hermann, que cisma, pálido, embebido
 No meigo olhar da loura Doroteia.
 
 XXIII
 
 De Calderón. Laura! dizes que Fábio anda ofendido 
E, apesar de ofendido, namorado, 
Buscando a extinta chama do passado
 Nas cinzas frias avivar do olvido.
 
 Vá que o faça, e que o faça por perdido
 De amor... Creio que o faz por despeitado:
 Porque o amor, uma vez abandonado, 
Não torna a ser o que já tinha sido.
 
Não lhe creias nos olhos nem na boca,
 Inda mesmo que os vejas, como pensas,
 Mentir carícias, desmentir tristezas...
 
 Porque finezas sobre arrufos, louca, 
Finezas podem ser; mas, sobre ofensas, 
 Mais parecem vinganças que finezas.
 
 XXIV 
A Luís Guimarães
 
Vejo-a, contemplo-a comovido... Aquela 
Que amaste, e, de teus braços arrancada,
 Desceu da morte a tenebrosa escada,
 Calma e pura aos meus olhos se revela. 
 
Vejo-lhe o riso plácido, a singela
 Feição, aquela graça delicada,
 Que uma divina mão deixou vazada
 No eterno bronze, eternamente bela.
 
 Só lhe não vejo o olhar sereno e triste:
 - Céu, poeta, onde as asas, suspirando, 
Chorando e rindo loucamente abriste... 
 
- Céu povoado de estrelas, onde as bordas
 Dos arcanjos cruzavam-se, pulsando
 Das liras de ouro as gemedoras cordas...
 
XXV
 A Bocage
 
 Tu, que no pego impuro das orgias
 Mergulhavas ansioso e descontente,
 E, quando à tona vinhas de repente,
 Cheias as mãos de pérolas trazias;
 
 Tu, que do amor e pelo amor vivias,
 E que, como de límpida nascente,
 Dos lábios e dos olhos a torrente
 Dos versos e das lágrimas vertias;
 
 Mestre querido! viverás, enquanto
 Houver quem pulse o mágico instrumento, 
E preze a língua que prezavas tanto:
 
 E enquanto houver num canto do universo
 Quem ame e sofra, e amor e sofrimento
 Saiba, chorando, traduzir no verso.
 
 XXVI
 
 Quando cantas, minh'alma desprezando
 O invólucro do corpo, ascende às belas
 Altas esferas de ouro, e, acima delas,
 Ouve arcanjos as citaras pulsando.
 
 Corre os países longes, que revelas
 Ao som divino do teu canto: e, quando
 Baixas a voz, ela também, chorando,
 Desce, entre os claros grupos das estrelas.
 
 E expira a tua voz. Do paraíso,
 A que subira ouvindo-te, caído,
 Fico a fitar-te pálido, indeciso...
 
 E enquanto cismas, sorridente e casta,
 A teus pés, como um pássaro ferido,
 Toda a minh'alma trémula se arrasta... 
 
XXVII
 
 Ontem - néscio que fui! - maliciosa
 Disse uma estrela, a rir, na imensa altura:
 "Amigo! uma de nós, a mais formosa
 De todas nós, a mais formosa e pura,
 
 Faz anos amanhã... Vamos! procura 
A rima de ouro mais brilhante, a rosa
 De cor mais viva e de maior frescura!
"E eu murmurei comigo: "Mentirosa!" 
 
E segui. Pois tão cego fui por elas,
 Que, enfim, curado pelos seus enganos,
 Já não creio em nenhuma das estrelas...
 
 E - mal de mim! - eis-me, a teus pés, em pranto...
 Olha: se nada fiz para os teus anos,
 Culpa as tuas irmãs que enganam tanto! 
 
XXVIII
 
 Pinta-me a curva destes céus... Agora, 
Ereta, ao fundo, a cordilheira apruma:
 Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
 E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora.
 
 Solta, ondulando, os véus de espessa bruma,
 E o vale pinta, e, pelo vale em fora,
 A correnteza túrbida e sonora
 Do Paraíba, em torvelins de espuma. 
 
Pinta; mas vê de que maneira pintas...
 Antes busques as cores da tristeza, 
Poupando o escrínio das alegres tintas:
 
 - Tristeza singular, estranha mágoa
 De que vejo coberta a natureza,
 Porque a vejo com os olhos rasos d'água.
 

Olavo Bilac
in "Via-Láctea", 1888
 
 

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