terça-feira, 13 de outubro de 2020

"A Cidade e os Livros" - Poema de António Cícero


Alfred Morgan (British painter,1836-1924), "An Omnibus Ride to Piccadilly Circus: 
Mr Gladstone Travelling with Ordinary Passengers",  London, 1884-85.



A Cidade e os Livros
                                                             
                                                                                          para D.Vanna Piraccini

O Rio parecia inesgotável
àquele adolescente que era eu.
Sozinho entrar no ónibus Castelo,
saltar no fim da linha, andar sem medo
no centro da cidade proibida,
em meio à multidão que nem notava
que eu não lhe pertencia - e de repente,
anónimo entre anónimos, notar
eufórico que sim, que pertencia
a ela, e ela a mim -, entrar em becos,
travessas, avenidas, galerias,
cinemas, livrarias: Leonardo
da Vinci Larga Rex Central Colombo
Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos
Alfândega Cruzeiro Carioca
Marrocos Passos Civilização
Cavé Saara São José Rosário
Passeio Público Ouvidor Padrão
Vitória Lavradio Cinelândia:
lugares que antes eu nem conhecia
abriam-se em esquinas infinitas
de ruas doravante prolongáveis
por todas as cidades que existiam.
Eu só sentira algo semelhante
ao perceber que os livros dos adultos
também me interessavam: que em princípio
haviam sido escritos para mim
os livros todos. Hoje é diferente,
pois todas as cidades encolheram,
são previsíveis, dão claustrofobia
e até dariam tédio, se não fossem
os livros infinitos que contêm.


António Cícero
,
in A cidade e os livros, 2002
 
 
Alfred Morgan, Reading Bluebeard, 1881
 
 
 “Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos.” 
 
 

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