segunda-feira, 19 de outubro de 2020

"Via-Láctea" - 7 Sonetos (VIII a XIV) de Olavo Bilac


Guillaume Seignac (1870-1924), Young Woman of Pompeii on a Terrace,
 Private collection 


Sonetos

VIII

Em que céus mais azuis, mais puros ares,
Voa pomba mais pura? Em que sombria
Moita mais nívea flor acaricia,
A noite, a luz dos límpidos luares?

Vives assim, como a corrente fria,
 Que, intemerata, aos trémulos olhares
 Das estrelas e à sombra dos palmares,
 Corta o seio das matas, erradia.
 
 E envolvida de tua virgindade,
 De teu pudor na cândida armadura,
 Foges o amor, guardando a castidade,
 
 - Como as montanhas, nos espaços francos
 Erguendo os altos píncaros, a alvura
  Guardam da neve que lhes cobre os flancos.
 
 IX
 
 De outras sei que se mostram menos frias,
Amando menos do que amar pareces.
 Usam todas de lágrimas e preces:
 Tu de acerbas risadas e ironias.
 
 De modo tal minha atenção desvias,
 Com tal perícia meu engano teces,
 Que, se gelado o coração tivesses,
 Certo, querida, mais ardor terias.
 
 Olho-te: cega ao meu olhar te fazes...
 Falo-te - e com que fogo a voz levanto! - Em vão...
 Finges-te surda às minhas frases..
 
 Surda: e nem ouves meu amargo pranto!
 Cega: e nem vês a nova dor que trazes
 À dor antiga que doía tanto!
 
 X 
 
Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
 Teu grande amor que e teu maior segredo!
 Que terias perdido, se, mais cedo,
 Todo o afeto que sentes se mostrasse?
 
 Basta de enganos! Mostra-me sem medo
 Aos homens, afrontando-os face a face:
 Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.
 
 Olha: não posso mais! Ando tão cheio
 Deste amor, que minh'alma se consome
 De te exaltar aos olhos do universo.
 
 Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
 E, fatigado de calar teu nome,
 Quase o revelo no final de um verso.
 
 XI 
 
Todos esses louvores, bem o viste,
 Não conseguiram demudar-me o aspecto:
 Só me turbou esse louvor discreto
 Que no volver dos olhos traduziste...
 
Inda bem que entendeste o meu afeto
 E, através destas rimas, pressentiste
 Meu coração que palpitava, triste,
 E o mal que havia dentro em mim secreto.
 
 Ai de mim, se de lágrimas inúteis
 Estes versos banhasse, ambicionando
 Das néscias turbas os aplausos fúteis!
 
 Dou-me por pago, se um olhar lhes deres:
 Fi-los pensando em ti, fi-los pensando
 Na mais pura de todas as mulheres.
 
 XII
 
 Sonhei que me esperavas. E, sonhando,
 Saí, ansioso por te ver: corria... 
E tudo, ao ver-me tão depressa andando,
 Soube logo o lugar para onde eu ia. 
 
E tudo me falou, tudo! Escutando
 Meus passos, através da ramaria, 
Dos despertados pássaros o bando:
 "Vai mais depressa! Parabéns!" dizia.
 
 Disse o luar: "Espera! que eu te sigo:
 Quero também beijar as faces dela!"
 E disse o aroma: "Vai, que eu vou contigo!"
 
 E cheguei. E, ao chegar, disse uma estrela:
 "Como és feliz! como és feliz, amigo, 
Que de tão perto vais ouvi-la e vê-la!"
 
XIII
 
 "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
 Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
 Que, para ouvi-las, muita vez desperto
 E abro as janelas, pálido de espanto...
 
 E conversamos toda a noite, enquanto
 A via-láctea, como um pálio aberto,
 Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
 Inda as procuro pelo céu deserto.
 
 Direis agora: "Tresloucado amigo!
 Que conversas com elas? Que sentido
 Tem o que dizem, quando estão contigo?"
 
 E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
 Pois só quem ama pode ter ouvido
 Capaz de ouvir e de entender estrelas".
 
 XIV
 
 Viver não pude sem que o fel provasse
 Desse outro amor que nos perverte e engana:
 Porque homem sou, e homem não há que passe
 Virgem de todo pela vida humana.
 
 Por que tanta serpente atra e profana
 Dentro d'alma deixei que se aninhasse?
 Por que, abrasado de uma sede insana,
 A impuros lábios entreguei a face?
 
 Depois dos lábios sôfregos e ardentes,
 Senti - duro castigo aos meus desejos
 - O gume fino de perversos dentes... 
 
E não posso das faces poluídas
 Apagar os vestígios desses beijos
 E os sangrentos sinais dessas feridas!  
 
 
 in "Via- Láctea", 1888


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