terça-feira, 20 de outubro de 2020

"Via-Láctea" - 7 Sonetos (XV a XXI) de Olavo Bilac

 
 
Sonetos 

XV
 
 Inda hoje, o livro do passado abrindo,
 Lembro-as e punge-me a lembrança delas; 
Lembro-as, e vejo-as, como as vi partindo,
 Estas cantando, soluçando aquelas.
 
 Umas, de meigo olhar piedoso e lindo,
 Sob as rosas de neve das capelas;
 Outras, de lábios de coral, sorrindo,
  Desnudo o seio, lúbricas e belas...
 
 Todas, formosas como tu, chegaram,
 Partiram... e, ao partir, dentro em meu seio
 Todo o veneno da paixão deixaram.
 
 Mas, ah! nenhuma teve o teu encanto,
 Nem teve olhar como esse olhar, tão cheio
 De luz tão viva, que abrasasse tanto! 
 
XVI
 
 Lá fora, a voz do vento ulule rouca!
 Tu, a cabeça no meu ombro inclina,
 E essa boca vermelha e pequenina
 Aproxima, a sorrir, de minha boca!
 
 Que eu a fronte repouse ansiosa e louca
 Em teu seio, mais alvo que a neblina
 Que, nas manhãs hiemais, úmida e fina,
 Da serra as grimpas verdejantes touca!
 
 Solta as tranças agora, como um manto!
 Canta! Embala-me o sono com teu canto!
 E eu, aos raios tranquilos desse olhar,
 
 Possa dormir sereno, como o rio
 Que, em noites calmas, sossegado e frio,
 Dorme aos raios de prata do luar!... 
 
XVII
 
 Por estas noites frias e brumosas 
É que melhor se pode amar, querida!
 Nem uma estrela pálida, perdida
 Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas...
 
 Mas um perfume cálido de rosas
 Corre a face da terra adormecida...
 E a névoa cresce, e, em grupos repartida,
 Enche os ares de sombras vaporosas:
 
 Sombras errantes, corpos nus, ardentes
 Carnes lascivas... um rumor vibrante
 De atritos longos e de beijos quentes...
 
 E os céus se estendem, palpitando, cheios
 Da tépida brancura fulgurante 
De um turbilhão de braços e de seios.
 
 XVIII
 
 Dormes... Mas que sussurro a umedecida 
Terra desperta? Que rumor enleva
 As estrelas, que no alto a Noite leva
 Presas, luzindo, à túnica estendida? 
 
São meus versos! Palpita a minha vida 
Neles, falenas que a saudade eleva
 De meu seio, e que vão, rompendo a treva,
 Encher teus sonhos, pomba adormecida!
 
 Dormes, com os seios nus, no travesseiro
 Solto o cabelo negro... e ei-los correndo,
 Doudejantes, subtis, teu corpo inteiro...
 
 Beijam-te a boca tépida e macia,
 Sobem, descem, teu hálito sorvendo... 
Por que surge tão cedo a luz do dia?!...
 
XIX
 
 Sai a passeio, mal o dia nasce,
 Bela, nas simples roupas vaporosas;
 E mostra às rosas do jardim as rosas
 Frescas e puras que possui na face.
 
 Passa. E todo o jardim, por que ela passe,
 Atavia-se. Há falas misteriosas
 Pelas moitas, saudando-a respeitosas...
 É como se uma sílfide passasse!
 
 E a luz cerca-a, beijando-a. O vento é um choro...
 Curvam-se as flores trémulas... O bando
 Das aves todas vem saudá-la em coro...
 
 E ela vai, dando ao sol o rosto brando,
 Às aves dando o olhar, ao vento o louro
 Cabelo, e às flores os sorrisos dando... 
 
XX 
 
Olha-me! O teu olhar sereno e brando
 Entra-me o peito, como um largo rio
 De ondas de ouro e de luz, límpido, entrando
 O ermo de um bosque tenebroso e frio.
 
 Fala-me! Em grupos doudejantes, quando
 Falas, por noites cálidas de estio,
 As estrelas acendem-se, radiando,
 Altas, semeadas pelo céu sombrio.
 
 Olha-me assim! Fala-me assim! De pranto
 Agora, agora de ternura cheia,
 Abre em chispas de fogo essa pupila...
 
 E enquanto eu ardo em sua luz, enquanto
 Em seu fulgor me abraso, uma sereia
 Soluce e cante nessa voz tranquila! 
 
XXI 
A minha mãe
 
 Sei que um dia não há (e isso é bastante
 A esta saudade, mãe!) em que a teu lado
 Sentir não julgues minha sombra errante,
 Passo a passo a seguir teu vulto amado.
 
 - Minha mãe! minha mãe! - a cada instante
 Ouves. Volves, em lágrimas banhado,
 O rosto, conhecendo soluçante
 Minha voz e meu passo costumado.
 
 E sentes alta noite no teu leito
 Minh'alma na tua alma repousando, 
Repousando meu peito no teu peito...
 
 E encho os teus sonhos, em teus sonhos brilho,
 E abres os braços trémulos, chorando,
 Para nos braços apertar teu filho!
 
 
 in "Via- Láctea", 1888

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