segunda-feira, 12 de outubro de 2020

"No dia brancamente nublado entristeço quase a medo" - Poema de Alberto Caeiro



Alfred East (1844-1913), October Glow, near Yardley Woods, 1889 
 

No dia brancamente nublado entristeço quase a medo


 
No dia brancamente nublado entristeço quase a medo
E ponho-me a meditar nos problemas que finjo… 

Se o homem fosse, como deveria ser,
Não um animal doente, mas o mais perfeito dos animais,
Animal direto e não indireto,
Devia ser outra a sua forma de encontrar um sentido às coisas,
Outra e verdadeira.
Devia haver adquirido um sentido do «conjunto»;
Um sentido, como ver e ouvir, do «total» das coisas
E não, como temos, um pensamento do «conjunto»;
E não, como temos, uma ideia do «total» das coisas.
E assim — veríamos — não teríamos noção de conjunto ou de total,
Porque o sentido de «total» ou de «conjunto» não seria de um «total» ou de um «conjunto»
Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes. 

O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as coisas — eis o erro e a dúvida.
O que existe transcende para baixo o que julgamos que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada.
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos.
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso. 

Assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade.
Mas, como a essência do pensamento não é ser dita, mas ser pensada,
Assim é a essência da realidade o existir, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos,
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença. 

O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo. 

Estas verdades não são perfeitas porque são ditas,
E antes de ditas, pensadas:
Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias
Na negação oposta de afirmarem qualquer coisa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim… 

1-10-1917
 
Alberto Caeiro, “Poemas Inconjuntos”.
 Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. 
(Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994. – 135.

 
Alfred East, "The Miller's Pool" 


A manhã raia. Não: a manhã não raia
 

A manhã raia. Não: a manhã não raia.
A manhã é uma coisa abstrata, está, não é uma coisa.
Começamos a ver o sol, a esta hora, aqui.
Se o sol matutino dando nas árvores é belo,
É tão belo se chamarmos à manhã «Começarmos a ver o sol»
Como o é se lhe chamarmos a manhã,
Por isso se não há vantagem em por nomes errados às coisas,
Devemos nunca lhes por nomes alguns.

21-5-1917 

 Alberto Caeiro, “Poemas Inconjuntos”.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.
(Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994. - 134.


 
Alfred East (1844-1913), Self-portrait, 1912
 

Aceita o universo


Aceita o universo
Como to deram os deuses.
Se os deuses te quisessem dar outro
Ter-to-iam dado.

Se há outras matérias e outros mundos
Haja. 

1-10-1917 

Alberto Caeiro, “Poemas Inconjuntos”.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.
(Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994. - 136. 
 

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