terça-feira, 30 de maio de 2023

"Entre março e abril" - Poema de Eugénio de Andrade


 
 Ferdinand Leeke (German Painter, 1859–1937), Flower Gatherers, 1914
 


Entre março e abril

 
Que cheiro doce e fresco,
por entre a chuva,
me traz o sol,
me traz o rosto,
entre março e abril
o rosto que foi meu,
o único
que foi afago e festa e primavera?

  Oh cheiro puro de só da terra!
não das mimosas,
que já tinham florido
no meio dos pinheiros;
não dos lilases,
pois era cedo ainda
para mostrarem
o coração às rosas;
mas das tímidas, doces flores
de cor difícil,
entre limão e vinho,
entre marfim e mel
abertas no canteiro junto ao tanque.

Frésias,
ó pura memória
de ter cantado —
pálidas, fragrantes,
entre chuva e sol
e chuva
— que mãos vos colhem,
agora que estão mortas
as mãos que foram minhas? 


Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia",  
Lisboa: Iniciativas, 1958.


segunda-feira, 29 de maio de 2023

"O Portugal futuro" - Poema de Ruy Belo


Adolfo Rodrigues (Pintor português, 1867-1908), Esperando o peixe - Praia da Nazaré, 1893, 
 

O Portugal futuro

O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
Portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a Espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro 
 
 
 Ruy Belo, in 'Homem de Palavra[s]', 1969
 
 
 Óleo sobre tela colada em cartão. Coleção particular.


Adolfo de Sousa Rodrigues (Funchal, 13 jan. 1867; Lisboa, 9 mar. 1908). Tirou o curso da Academia de Belas Artes, com altas classificações, tendo-se dedicado à pintura histórica, sob orientação de José Ferreira Chaves (1838-1899) e conseguindo bolsa para se especializar em Paris, trabalhando nos ateliers de Jean Paul Laurens (1838-1921) e Benjamin Constant (1845-1902). No 2.º ano do curso em Lisboa já tinha alcançado o prémio Anunciação, vindo a ser depois distinguido, em Lisboa, no Grémio Artístico, em 1895, com a terceira medalha. Pintou Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901), hoje na coleção dos descendentes, em Paris e o rei D. Carlos (1863-1908), nas coleções da Câmara Municipal do Funchal, uma alegoria à História no teto da entrada do Museu Militar de Lisboa, etc., tendo as palmas da Academia de França e a ordem de Isabel, a Católica, de Espanha. (daqui)

sábado, 27 de maio de 2023

"Quem me dera que eu fosse o pó da estrada" - Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa



Manuel Gregório Pereira (Artista plástico português, 1931-2013),
Paisagem com lavadeiras, s/d



Quem me dera que eu fosse o pó da estrada

XXVIII


Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena... 

1914

Alberto Caeiro, “O Guardador de Rebanhos”.
In Poemas de Alberto Caeiro.
Fernando Pessoa.
(Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 45.



Manuel Gregório Pereira, Sintra - Paisagem Fluvial com Figuras, s/d, Óleo sobre tela.

Manuel Gregório Pereira foi um pintor que nasceu em Tavira no ano de 1931 e faleceu com 82 anos em Agosto de 2013, vítima de doença súbita. 
Em 1937, a sua família foi  viver para Huelva, Espanha, onde permaneceu vários anos e onde o seu talento viria a ser descoberto pelos irmãos Manuel e Henrique Piña, na academia de São Fernando. Mais tarde, conquistou o mestre Orduña Castelhano, com quem acabaria por estudar e trabalhar em Sevilha. 
Manuel Gregório Pereira frequentou a Escola Superior de Belas Artes em Lisboa, onde ingressou aos 22 anos, e foi discípulo do mestre Machado da Luz. 
Gregório Pereira utilizava a técnica da espátula com pintura em relevo e tem obras permanentes nos Museus da Marinha e Militar de Lisboa, entre outras coleções públicas e privadas.
O artista plástico viveu um período de cerca de seis anos nos Estados Unidos e trabalhou cerca de cinco anos, em exclusivo, com as "Galerias Wally Findlay", em Beverly, na Califórnia, chegando a expor ao lado de Pablo Picasso e Marc Chagal, na galeria Perón em Genebra, na Suíça. 
Na década de 1980, expôs individualmente na Holanda, Dinamarca e Alemanha, e um dos seus quadros foi selecionado para figurar com "poster" anual da "Big Sur Land Trust Foundation", em Monterrey, na Califórnia.  
A obra de Manuel Gregório Pereira é descrita como uma «importante referência na atual pintura naturalista portuguesa de expressão impressionista»
 
Ref. Biog. Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses. [pág. 306] // Michael Tannock. [pág.126].

sexta-feira, 26 de maio de 2023

"Porto" - Poema de Vítor Cintra


Charles Van Zeller (des.); Robert Havell (grav.), View of the city of Oporto, 1833 (Ponte das Barcas),
Arquivo Municipal do Porto

[Reprodução de gravura publicada em 1833, dedicada a D. Pedro, duque de Bragança, representando a encosta da Serra do Pilar (incluindo militares e populares), Vila Nova de Gaia, o Rio Douro e a cidade do Porto, durante o Cerco do Porto. (daqui)]
 

Porto


Aonde havia um castro amuralhado,
Olhando, lá do alto, o rio Douro,
Ergueu-se, bem mais tarde, o povoado
Guardado, p’los romanos, qual tesouro.

As cercas de muralhas, que cresceram,
- Defesa do domínio conquistado,
Que pela margem toda se estenderam -
Tornaram-te num porto cobiçado.

Chegaram os suevos e venceram
A frágil resistência dos romanos,
Até terem chegado os muçulmanos.

Depois, na reconquista, aconteceram
Recuos e avanços. No final
Havias de dar nome a Portugal.


Vítor Cintra
, in  Ruínas da história: poesia,
Editor: Lua de Marfim, 2015 
 

 Henri L'Evêque (̈Pintor, autor de gravuras, 1769-1832), Vue de la ville et du port de Porto.
(Gravura de 1817, vendo-se a Ponte das Barcas) 
 
 
 Ponte das Barcas
 
Ponte sobre o Rio Douro, no Porto, construída em 1806. Era constituída por vinte barcaças ligadas entre si por cabos de aço. Sobre essas barcaças estava disposta uma plataforma de pranchas que permitia a travessia.
Aqui se verificou um famoso acidente, a 29 de março de 1809, durante a Guerra Peninsular. A população, em pânico perante as tropas francesas, procurava refúgio atravessando o rio. No entanto, a ponte não aguentou o peso da multidão e ruiu, provocando a morte de cerca de cinco mil pessoas. (daqui)
 

Henry Smith (1774-1840), Oporto with the Bridge of Boats, 1813, British Museum

[Reprodução de gravura de 1813, dedicada ao Marquês de Wellesley por Robert Daubeny King, representando a entrada no Porto das tropas anglo-portuguesas comandas por Wellington, atravessando o Rio Douro pela ponte das barcas, em 12 de Maio de 1809. (daqui)]

quinta-feira, 25 de maio de 2023

"Tentanda Via" - Poema de Antero de Quental


El Greco (Greek painter, sculptor and architect of the Spanish Renaissance, 1541-1614),
Saint Martin and the Beggar
, c. 1597-1599, National Gallery of Art, Washington DC



Tentanda via

I

Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!

Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!
A noite, longa! o dia, duvidoso!
Vai o giro dos céus bem vagaroso...
Vem longe ainda a praia do futuro...

É a grande incerteza, que se estende
Sobre os destinos dum porvir, que é treva...
E o escuro terror de quem nos leva...
O fruto horrível que das almas pende!

A tristeza do tempo! o espectro mudo
Que pela mão conduz... não sei aonde!
— Quanto pode sorrir, tudo se esconde...
Quanto pode pungir, mostra-se tudo. —

Não é a grande luta, braço a braço
No chão da Pátria, à clara luz da História...
Nem o gládio de César, nem a glória...
É um misto de pavor e de cansaço!

Não é a luta dos trezentos bravos,
Que o solo amado beijam quando caem...
Crentes que traz um Deus, e à guerra saem,
Por não dormir no leito dos escravos...

É a luta sem glória! é ser vencido
Por uma oculta, súbita fraqueza!
Um desalento, uma íntima tristeza
Que à morte leva... sem se ter vivido!

Não há aí pelejar... não há combate...
Nem há já glória no ficar prostrado —
São os tristes suspiros do Passado
Que se erguem desse chão, por toda a parte...

É a saudade, que nos rói e mina
E gasta, como à pedra a gota d’água...
Depois, a compaixão, a íntima mágoa
De olhar essa tristíssima ruína...

Tristíssimas ruínas! Entristece
E causa dó olhá-las — a vontade
Amolece nas águas da piedade,
E, em meio do lutar, treme e falece.

Cada pedra, que cai dos muros lassos
Do trémulo castelo do passado,
Deixa um peito partido, arruinado,
E um coração aberto em dois pedaços!

II

A estrada da vida anda alastrada
De folhas secas e mirradas flores...
Eu não vejo que os céus sejam maiores,
Mas a alma... essa é que eu vejo mais minguada!

Ah! via dolorosa é esta via!
Onde uma Lei terrível nos domina!
Onde é força marchar pela neblina...
Quem só tem olhos para a luz do dia!

Irmãos! irmãos! amemo-nos! é a hora...
É de noite que os tristes se procuram,
E paz e união entre si juram...
Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!

E vós, que andais a dores mais afeitos,
Que mais sabeis à Via do Calvário
Os desvios do giro solitário,
E tendes, de sofrer, largos os peitos;

Vós, que ledes na noite... vós, profetas...
Que sois os loucos... porque andais na frente...
Que sabeis o segredo da fremente
Palavra que dá fé — ó vós, poetas!

Estendei vossas almas, como mantos
Sobre a cabeça deles... e do peito
Fazei-lhes um degrau, onde com jeito
Possam subir a ver os astros santos...

Levai-os vós à Pátria-misteriosa,
Os que perdidos vão com passo incerto!
Sede vós a coluna do deserto!
Mostrai-lhes vós a Via-dolorosa!

III

Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços,
Olhar apenas uma luz distante!

É preciso passar sobre ruínas,
Como quem vai pisando um chão de flores!
Ouvir as maldições, ais e clamores,
Como quem ouve músicas divinas!

Beber, em taça túrbida, o veneno,
Sem contrair o lábio palpitante!
Atravessar os círculos do Dante,
E trazer desse inferno o olhar sereno!

Ter um manto da casta luz das crenças,
Para cobrir as trevas da miséria!
Ter a vara, o condão da fada aérea,
Que em ouro torne estas areias densas!

E, quando, sem temor e sem saudade,
Puderdes, dentre o pó dessa ruína,
Erguer o olhar à cúpula divina,
Heis de então ver a nova-claridade!

Heis de então ver, ao descerrar do escuro,
Bem como o cumprimento de um agouro,
Abrir-se, como grandes portas de ouro,
As imensas auroras do Futuro!

(1864)

Antero de Quental
, in Odes Modernas 
 

Odes Modernas
 
Coletânea de poesias, de Antero de Quental, dedicada a Germano Meireles, publicada em 1865, que, refletindo as influências do humanitarismo de Proudhon e da dialética evolucionista de Hegel, rompeu com a temática sentimentalista que caracterizou a segunda geração romântica e impôs o romantismo social, marcado pelo fervor revolucionário, pela sede de justiça social e pela crença na apoteose futura da verdade: "O Evangelho novo é a bíblia da Igualdade:/ Justiça, é esse o tema imenso do sermão:/ A missa nova, essa é missa de Liberdade:/ E órgão a acompanhar... a voz da Revolução!" ("No templo").
 Referindo-se, em 1887, na célebre "Carta autobiográfica dirigida ao Professor Wilhelm Storck", às Odes Modernas, Antero chamar-lhes-á "poesia de combate", caracterizando o tom e os temas predominantes no volume: "o panfletário divisa-se muitas vezes por detrás do poeta, e a Igreja, a monarquia, os grandes do mundo são o alvo das suas apóstrofes de nivelador idealista. Noutras composições, é verdade, o tom é mais calmo e patenteia-se nelas a intenção filosófica do livro, vaga sim, mas humana e elevada".
Assumindo a "missão revolucionária da poesia" exposta na nota posfacial, é na qualidade de "Soldado do Futuro" ("Pois, se são operários do futuro,/ Semeadores da seara nova,/ Que lançam uma ideia em cada cova,/ Da dura história sobre o chão escuro", de "Pater"), à escuta da "voz das multidões", que Antero se dirige "A um Poeta": "Há mais alta missão, mais alta glória:/ O combater, à grande luz da História,/ Os combates eternos da Justiça". Esta "Justitia mater" de raiz proudhoniana aparece em "Tese e Antítese" concebida hegelianamente como a "nova ideia" - "desgrenhada/ Torva no aspeto, à luz da barricada" - que o poeta, como revolucionário, ajuda a revelar.
Na célebre "Nota" posfacial, Antero formula uma conceção socialmente militante da missão do poeta e da poesia, voltada para a "reconstrução do mundo humano sobre as bases eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com exclusão dos Reis e dos Governos tirânicos, dos Deuses e das Religiões inúteis e ilusórias", sustentando, assim, uma prática poética inconciliável com o que designa de "arte pela arte", isto é, uma poesia meramente decorativa. Este texto, juntamente com os prefácios de Teófilo Braga à Visão dos Tempos e às Tempestades Sonoras, motivou as alusões irónicas de Castilho, na carta-posfácio ao Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas, à moderna escola de Coimbra e à sua poesia ininteligível, vindo, portanto, a desencadear a Questão Coimbrã(daqui)

quarta-feira, 24 de maio de 2023

"Lisboa" - Poema de António Botto


João Marques de Oliveira (Professor e pintor realista português, introdutor do naturalismo em Portugal
1853-1927), Torre de Belém, s.d., Coleção particular


 
Lisboa
 

Lisboa, berço da força
Cais das grandes aventuras
Onde embarcaram aqueles
Em madrugadas escuras
E em barcos de uma só verga
Navegando sem receio
De que o mar na sua fúria
Partisse de meio a meio
A frágil embarcação,
Lisboa das Descobertas
Pátria de espada em mão!
Lisboa rica de timbres
Mas em que um é sempre belo:
- O Sol doirando as ameias
Do seu glorioso Castelo!
Ó Lisboa das fragatas
E das manhãs outonais,
Dos marinheiros valentes
Beijando estas e aquelas
À noite pelos portais.

Lisboa desmazelada
Sem garbo, sem atitude,
E sem compostura séria;
Lisboa da fadistice
- Senhora Dona e galdéria!
Lisboa das zaragatas
Por qualquer coisa e por nada;
Lisboa dos decilitros
De tasca em tasca, vadia,
Complicante e à bofetada;
Lisboa da tradição
- Sorriso de nostalgia!
Quartel do alto heroísmo,
Lisboa chorosa e forte,
Saudosa, infeliz, cantando
Na plangência de um harmónio
Cantigas que ouviu à morte!
Lisboa dos pátios sujos
Onde se ralha e se dança
Até romper a alvorada!
Descalça, de mãos na ilharga,
Impetuosa, vibrante,
Lisboa da garotada
Jogando a bola nas ruas.
Lisboa das horas mortas
Com namoros à janela.

Lisboa dos chafarizes
Onde a água é um cantar
De nautas e mareantes;
Lisboa das guitarradas
No lirismo dos amantes!
Lisboa das melancias
Descarregadas ao Sol
E aos berros no Cais da Areia.
Lisboa das noites lindas
E onde é oiro a lua cheia!
Ó Lisboa dos mendigos
E dos velhos sem asilo;
Lisboa do céu azul
E onde o Tejo é mais tranquilo.
Lisboa de bairros tristes,
Humilde, religiosa
Sem fundos de convicção,
Lisboa do meu amor,
Essa maldita paixão!
 
 
António Botto, in "Ódio e Amor",
Lisboa, Edições Ática, 1947
 

terça-feira, 23 de maio de 2023

"Definição"- Poema de Renata Pallottini

 

 
Adolfo Belimbau (Italian painter, 1845-1938), Portrait of a Lady reading a Book.


Definição


Não ser feliz,
não ser desesperado.
Lutar no campo da clareza,
saber que é inútil.
Amar com toda força a cada vez,
em nome do Amor que não houve.
Ser honesto com os outros;
esperar que Deus seja honesto.
Viver
olhando o mar,
os olhos do cachorro
e o quente coração feminino,
terra húmida
de onde proviemos. 


Renata Pallottini, in 'Noite Afora', 1978 
 

segunda-feira, 22 de maio de 2023

"As Almas" - Poema de Teixeira de Pascoaes


Alfred Le Petit (Peintre, caricaturiste et photographe français, 1841-1909),
Autoportrait
, 1893, Localisation inconnue.


As Almas


Vejo passar, na infinda solidão,
Vultos de almas, figuras de emoção;
Os poetas do silêncio que não cantam,
Os doidos que, de súbito, se espantam,
Os que gelam, ao ver o luar nascente,
Os que fitam a mesma estrela eternamente;
Os perdidos da sorte,
Os que chamam, gritando, pela morte!
Os que andam, sem saber, pelos caminhos,
Os que de noite vão, sempre a falar sozinhos,
Os que vivem casados com a dor
E a esconde, ciumentos;
Os trágicos do Amor,
Os que sentem astrais deslumbramentos,
Os que matam e cantam por destino:
O salteador noturno, o poeta que é divino.
Os tristes vagabundos
Em perpétua e fantástica viagem...
Os que amam a paisagem
E têm nos olhos a amplidão dos mundos...

Vultos de almas, figuras de emoção.
Errantes, na infinita solidão.


Teixeira de Pascoaes, in Vida Etérea, 1906
 

domingo, 21 de maio de 2023

"Ode sobre a Indolência" - Poema de John Keats


Alfred  Glendening, Jr. (British painter, 1861-1907, son of British painter,
Alfred Augustus Glendening, Sr., 1840-1921), The first days of spring, 1896
 
 

Ode sobre a Indolência

I

Numa certa manhã eu vi as três as figuras,
   Curvadas, de perfil, mãos juntas, uma a uma,
Seguindo atrás da outra, mudas e seguras,
   Sandálias suaves, vestes alvas, pés de pluma;
Como formas de mármore em alto-relevo
  Sobre uma urna, foram-se, ao girar a face
   Do vaso; mas voltando ao ângulo anterior,
Mostraram-se mais uma vez como as descrevo,
 E eram-me tão estranhas como se as achasse
   Numa ânfora de Fídias um pesquisador.

II

Como é possível, Sombras, que eu não as conheça,
  Máscaras mudas que se movem para mim?
Que plano silencioso tinham na cabeça
  Para a minha indolência arrebatar assim?
Era a hora madura e eu já me comprazia
  Na abençoada nuvem de ócio do verão.
   Pesado o olhar, a pulsação quase parada,
Os prazeres sem cor e a vida já vazia.
  Ah! por que não desaparecem e se vão,
   E me deixam em paz, sozinho, com meu – nada?

III

Uma terceira vez romperam minha paz as
  Figuras mudas; cada qual por um momento
Me olhou de frente, e eu só queria era ter asas
  Para segui-las e saber do seu intento;
A primeira, uma bela moça, era o Amor;
  A segunda, de rosto pálido e sem viço
   E olhos cansados, a Ambição que a tudo via.
A última, a que eu mais amo, e a quem o desfavor
  Persegue, era uma jovem com ar insubmisso;
   Essa era o meu demónio – a Poesia.

IV

Foram-se as três e eu só queria asas ainda;
  Loucura! O que é o Amor? Quem sabe onde ele mora?
Quanto à Ambição! – é desprezível, porque vinda
  De um coração pequeno, a febre de uma hora;
À Poesia! – não doa uma só alegria, –
  Ao menos para mim, – de dia imersa em suas
   Cismas; à noite, no ópio do seu tédio imenso;
Pudesse eu ter uma era livre de agonia,
  Sem conhecer jamais a mutação das luas
   Nem ouvir nunca a voz penosa do bom-senso!

V

E uma vez mais vieram; – ah! por que razão?
  Meu sono se adornava de secretos sonhos,
Minha alma era uma relva, flores pelo chão,
  Com sombras sugestivas e raios risonhos;
A névoa da manhã não me trazia chuva;
  Nas pálpebras de maio, só lágrimas prestes;
   Calor, botões em flor, um tordo ia cantar,
E da janela aberta eu via a vide e a uva;
  Sombras, a hora do adeus chegou; em suas vestes
   Nenhuma lágrima desceu do meu olhar.

VI

Adeus, meus três fantasmas! Não há quem me faça
  Erguer esta cabeça da relva e das flores.
Não quero ser a ovelha-guia de uma farsa,
  Nem seguirei uma dieta de louvores.
Voltem a ser figuras-máscaras de urna.
  Adeus! deixem morrer de tédio a minha mente.
   Visões? Já tenho a minha provisão noturna,
E outras, mais ténues, para as horas matinais.
  Retirem-se, de vez, do meu ser indolente,
   Para as nuvens dos céus, e não voltem jamais. 


John Keats
, em "Byron e Keats – Entreversos".
 Campinas SP: Editora UNICAMP, 2009.
Tradução de Augusto de Campos


"Byron e Keats - Entreversos"
 
 
 Resumo

Byron era um artista do verso. Os XVII Cantos do Don Juan (1818-1823) contêm perto de 2 mil estrofes em oitava-rima, quase o dobro de Os Lusíadas. Cerca de 16 mil versos de elaboração complexa e rimário insólito. Radical, não cedeu à censura. Os primeiros cantos do D. Juan foram publicados anonimamente, tal era o risco de serem confiscados. A obra de Keats é aqui representada por quatro de suas Odes (1819), dois sonetos (1816-1818) e um fragmento do poema longo, Endymion (1817). O poeta tinha 20 e poucos anos quando escreveu essas maravilhas. Confrontadas aqui, as poéticas de Byron e de Keats reemergem solidarizadas como contradições heurísticas e dialéticas da linguagem poética. Discórdias aparentes, ao cabo concordantes e parentes." - Augusto de Campos

sábado, 20 de maio de 2023

"Não sou daqui" - Poema de Natália Correia



Real Bordalo
 (Artista plástico português, 1925-2017), Arco do Marquês de Alegrete, Lisboa
 

 Não sou daqui


Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos,
Sou de mim mesma pomba húmida e brava.

De mim mesma e de vós, ó capitães trigueiros,
Barbeados pelo sol penteados pela bruma!
Que extraístes do ar dessa coisa nenhuma
A génese a pluma do meu país natal.

Não sou daqui das praias da tristeza,
Do insone jardim dos glaciares
Levai minha nudez minha beleza,
E colocai-a à sombra dos palmares.
 

Não sou daqui. A minha pátria não é esta
Bússola quebrada dos impulsos.
Sou rápida sou solta talvez nuvem
Nuvens minhas irmãs que me argolais os pulsos!
Tomai os meus cabelos. Levai-os para a floresta.

É lá que o meu amigo pastor de estrelas pasce
O marulho das folhas com pássaros nas vozes
O sol adormecido nos braços da giesta
A manhã rarefeita na corrida do alce
O luar orbitado no salto da gazela
Os animais velozes do sítio onde se nasce...

Levai-me, peixes da minha pele itinerante!
Quero ir à pesca, colher no espelho da laguna
O lírio da nudez a perdida inocência
O coração do bosque a dar-se sem penumbra
Visto através da minha transparência.

Levai-me, ó minhas mãos branco exílio de ramos!
Meus dedos virtuais folhas de palma!
Sois os órgãos sensíveis da choupana
Onde quero deitar a minha alma.

Levai-me, olhos meus implícitas montanhas
Florescência de cumes para poisarem águias!

Quero ter pensamentos que me cheirem a lenha
Esfregar o espírito em plantas aromáticas
Uma alma com pétalas guerrilheiras selvagens

Abertas a uma luta de prata verdadeira
Uma alma que seja verde que tenha asas
E dance nua para os deuses da fogueira...

Jogai, jogo do arco laço azul infância coisas
Que o desencanto confisca e abandona na cave!
Como uma criança joga papagaio, jogai
Este farrapo de ânsia poeira da cidade
Onde ninguém tem pressa de ser ave;

E tu, anjo de pedra do meu grito! Anjo
Esculpindo em pranto seco! Anjo enxuto!
Tu que me afogas o olhar no infinito
E as mãos no lodo dum gesto irresoluto.

Tece, ó arranha de luz no esconso da garganta!
Coração de andorinha estrangulada!
O luar o jardim a cigarra que canta
O leito de verdura para eu me dar à esperança,
Rosa que aspiro num esquivo vão de escada.


Natália Correia
,
in Cântico do País Emerso, 1961
 
 
Natália Correia (daqui)

Natália Correia (1923 - 1993), mulher de paixões, casou quatro vezes ao longo dos seus 70 anos. Fez televisão, foi jornalista, dramaturga, poetisa e estreou-se na ficção com o romance infantil «Aventuras de um Pequeno Herói», em 1945. 
Nasceu nos Açores em 1923 e aos 11 anos desloca-se para Lisboa. Foi jornalista no Rádio Clube Português e colaborou no jornal Sol. Ativista política: apoiou a candidatura de Humberto Delgado; assumiu publicamente divergências com o Estado Novo e foi condenada a prisão com pena suspensa em 1966, pela «Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica».
Deputada após o 25 de Abril, fez programas de televisão destacando-se o “Mátria” que apresentava o lado matriarcal da sociedade portuguesa.
Fundou o bar “Botequim”, onde cantou durante muitos anos, transformando-o no ponto de reunião da elite intelectual e política nas décadas de 1970 e 80.
Organizou várias antologias de poesia portuguesa como “Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses” ou “Antologia da Poesia do Período Barroco”.
Natália Correia foi uma versejadora de êxito, uma mulher carismática com uma vida social intensa, não fez concessões à mediania e notabilizou-se por uma vasta obra intelectual. (daqui - ver e ouvir)
 
 
Alfredo Roque Gameiro (Pintor e desenhador português, 1864-1935)
Rua do Arco do Marquês do Alegrete, em Lisboa, década de 1910.
(Aguarela )


Alfredo Roque Gameiro, Autorretrato, década de 1910,  
Aguarela sobre cartão, 40 x 29,5 cm
 
 
Alfredo Roque Gameiro (Minde, 1864 – Lisboa, 1935), oriundo de uma família de comerciantes, começa a trabalhar em Lisboa, em 1874, como desenhador-litógrafo na oficina de seu meio-irmão Justino Roque Gameiro. Ingressa, como pensionista do Estado, na Escola de Artes e Ofícios de Leipzig, em 1883, e mantém, durante toda a década de 1880, uma colaboração constante como ilustrador de diversas publicações, com destaque para o Álbum de Costumes Populares Portugueses, de 1888.
Quando regressa a Lisboa o artista assume a direção artística das Oficinas da Companhia Nacional Editora – cargo que abandona quando é nomeado professor na Escola Industrial do Príncipe Real (1894) – e participa regularmente nos salões anuais do Grémio Artístico (depois Sociedade Nacional de Belas-Artes), com desenhos e aguarelas. Em 1900 os seus trabalhos são selecionados para integrar as exposições da delegação portuguesa na Exposição Universal de Paris, onde recebe uma Medalha de Honra. Em 1911 abre um atelier em Lisboa, onde passa a ministrar regularmente cursos de aguarela.
As suas pinturas, tratadas com uma intensa capacidade de observação e captação da luz e da cor, aliam uma qualidade técnica, de rigoroso desenho, a atributos expressivos. Aborda temáticas variadas como o retrato, a paisagem, as cenas rurais e urbanas, mas dedica-se sobretudo a marinhas. (daqui)
 
 
Alfredo Roque Gameiro, Retrato da filha, Màmía, 1919 (Aguarela)
 
De todos os filhos de Roque Gameiro, Màmía foi o modelo mais retratado, quer pelo pai Alfredo, quer pelas irmãs Raquel e Helena, quer pelo noivo (depois marido) Jaime.
Màmía Roque Gameiro tinha dezoito anos na altura em que o pai executou este estudo. O artista privilegia o doce rosto da filha mais nova, acentuando as suas finas feições, assim como os ombros, deixando apenas levemente esboçados os braços e o vestido.
A cabeça um pouco inclinada para a esquerda do observador permite distinguir um olhar pensativo, parecendo velado por suave melancolia. Um caracol de cabelo castanho descai sobre o peito e introduz uma nota de cor que aviva a tonalidade clara do vestido.
A jovem posiciona-se sentada num cadeirão, também delineado parcialmente. O artista sugere um espaço através de aguadas muito diluídas, enquadramento esse que faz ressaltar a figura do modelo. (daqui)

 
Màmia Roque Gameiro, Autorretrato, 1922

Maria Emília Roque Gameiro Martins Barata, conhecida como Màmia Roque Gameiro ou Mamia Roque Gameiro (Amadora, 7 de setembro de 1901 – Lisboa, 6 de Julho de 1996), foi uma pintora e ilustradora portuguesa.
Nascida a 7 de setembro de 1901, na Amadora, Maria Emília Roque Gameiro era filha do pintor e aguarelista português Alfredo Roque Gameiro e de Maria da Assunção de Carvalho Forte, sendo irmã de Raquel Roque Gameiro, Manuel Roque Gameiro, Helena Roque Gameiro Leitão de Barros e Ruy Roque Gameiro. Devido ao interesse de todos os filhos pelas artes, a família de Roque Gameiro recebeu a alcunha de "tribo dos pincéis", passando ainda Maria Emília a ser publicamente conhecida pela alcunha de "Màmia". (daqui)
 

segunda-feira, 15 de maio de 2023

"Atriz" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Louise Abbéma (French painter, sculptor and designer of the Belle Époque, 1853–1927), 
 La dame avec les fleurs, 1883, Oil on canvas, 97.8 x 130.3 cm
 

 
Atriz
 
 
 A morte emendou a gramática.
Morreram Cacilda Becker.
Não era uma só. Era tantas.
Professorinha pobre de Pirassununga
Cleópatra e Antígona
Maria Stuart
Mary Tyrone
Marta, de Albee
Margarida Gauthier e Alma Winemiller
Hannah Jelkes a solteirona
a velha senhora Clara Zahanassian
adorável Júlia
outras muitas, modernas e futuras
irreveladas.
Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo
e um mendigo esperando infinitamente Godot.
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo de sombra
a verdade de cada um nos mitos cénicos.
Era uma pessoa e era um teatro.
Morrem mil Cacildas em Cacilda.
 
 
 
Cacilda Becker no Rio, em 1941, primeiro ano da carreira. (daqui)
 

Cacilda Becker Yáconis  (Pirassununga, 6 de abril de 1921 – São Paulo, 14 de junho de 1969) foi uma atriz brasileira.
 
Protagonista de vários espetáculos do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e fundadora da companhia que leva seu nome, Cacilda Becker interpreta personagens antagónicos, transitando da farsa à tragédia, do clássico ao moderno. Estende seu papel para a atuação política, enfrentando a censura contra a classe artística do Brasil.

Ainda menina, estuda dança e trabalha para manter a casa. Aos 20 anos, no início da década de 1940, atua no Teatro do Estudante do Brasil (TEB), em 3.200 Metros de Altitude, do dramaturgo francês Julien Luchaire (1876-1962), e em Dias Felizes, do também francês Claude-André Puget (1905-1975). No mesmo ano, une-se à Companhia de Comédias Íntimas, do ator e diretor Raul Roulien (1905-2000), participando de uma série de espetáculos, como Trio em Lá Menor, do dramaturgo Raimundo Magalhães Júnior (1907-1981).

Ingressa no Grupo Universitário de Teatro (GUT) em 1943, e, no ano seguinte, compõe a Companhia de Comédias de Bibi Ferreira (1922-2019). Em 1945, volta ao GUT, onde atua em Farsa de Inês Pereira e do Escudeiro, do dramaturgo português Gil Vicente (1465-1536). Colabora ainda com a companhia Os Comediantes, e transita entre diferentes companhias enquanto exerce outras funções ligadas à interpretação e à escrita na Rádio Tupi e na Rádio América, durante grande parte da década de 1940.

Em 1947, muda-se para o Rio de Janeiro para atuar no filme Luz dos Meus Olhos, dirigido por José Carlos Burle (1910-1983) e filmado pelos estúdios da companhia Atlântida. Nessa produção, Cacilda repete sua forma de atuação do teatro, proporcionando uma interpretação suave e natural a sua personagem Suzana. Volta a São Paulo depois de sua estreia cinematográfica, e, em 1948, é a primeira profissional contratada do TBC, onde permanece até 1955, estando presente em quase todas as montagens do período.

Sua primeira consagração acontece no Teatro das Segundas-Feiras. A peça Pega Fogo (1950), do escritor francês Jules Renard (1864-1910), inicialmente formando um programa triplo ao lado de outros dois textos, torna-se um grande sucesso. Sua interpretação do personagem Poil de Carotte lhe vale uma boa crítica do francês Michel Simon, quando o espetáculo se apresenta no Teatro das Nações, em Paris. O crítico compara Cacilda Becker ao ator britânico Charlie Chaplin (1899-1977) e ao francês Jean Louis Barrault (1910-1994), e, depois de dizer que ela rompe sua pretensa frieza de especialista fazendo-o chorar, procura a origem da emoção no "rosto emaciado" [...]", nos "gestos pletóricos de garoto infeliz e arrogante", e afirma: "Poil de Carotte não pode ter mais, para mim e para muitos outros, de agora em diante, outro rosto senão o seu".

Em 1953, volta ao cinema em Floradas na Serra, do diretor de cinema italiano Luciano Salce (1922-1989), sendo sua atuação natural novamente destaque entre a crítica da época. Em 1955, é antagonista de sua irmã, a também atriz Cleyde Yáconis (1923-2013), em Maria Stuart, do poeta e filósofo alemão Friedrich von Schiller (1759-1805), dirigida pelo polonês Zbigniew Ziembinski (1908-1978).
Na televisão, Cacilda viaja por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, apresentando peças de Teatro pela TV Cultura, em 1956, e o programa de teleteatro Teatro Cacilda Becker pela TV Record, em 1958.

No mesmo ano, funda o grupo Teatro Cacilda Becker (TCB) ao lado de Cleyde Yáconis, do ator Walmor Chagas (1930-2013), de Ziembinski e do ator e fotógrafo alemão Fredi Kleemann (1927-1954), onde desempenha sua carreira durante 22 anos, com espetáculos como A visita da Velha Senhora (1962), do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990). Em 1965, é premiada com medalha de ouro da Associação Brasileira de Críticos Teatrais (ABCT) como melhor atriz do ano pelas peças A Noite do Iguana, do americano Tennessee Williams (1911-1983), e O Preço de um Homem, do francês Steve Passeur (1899-1966).

Em 1968, volta a atuar na televisão, com o Teatro Cacilda Becker, na TV Bandeirantes, mas é demitida no mesmo ano sob a alegação de que suas interpretações são subversivas, efeito da ditadura militar (1964-1985). Neste momento, Cacilda passa a ter um papel militante nas causas da classe artística. A atriz assume a presidência da Comissão Estadual de Teatro de São Paulo, lugar que enfrenta a repressão em defesa dos direitos dos artistas e produtores. Ao lado de Augusto Boal (1931-2009), diretor de Primeira Feira Paulista de Opinião (1968), defende a encenação do espetáculo na íntegra, ignorando os cortes realizados pela censura. Sua convicção faz com que os censores e agentes federais presentes no teatro acatem sua decisão e assistam ao espetáculo.

Durante a apresentação do espetáculo Esperando Godot, que encenava com o marido, Walmor Chagas, na capital paulista, em 6 de maio de 1969, Cacilda sofreu um derrame cerebral e foi levada para o hospital, ainda com as roupas de sua personagem. Morreu após 38 dias de coma e foi sepultada no Cemitério do Araçá, com a presença de uma multidão de admiradores.

Cacilda Becker é considerada uma das maiores atrizes do teatro brasileiro, sua atuação extrapola os palcos e chega ao rádio e à televisão, transitando entre diferentes modos de fazer e pensar a dramaturgia no Brasil. (daqui)


Louise Abbéma, Sarah Bernhardt hunting with hounds, ca. 1897. Oil on canvas.
 
 
Sarah Bernhardt  foi uma atriz francesa nascida a 23 de outubro de 1844, em Paris, e falecida a 26 de março de 1923, na mesma cidade, vítima de infeção renal. Foi considerada a maior atriz teatral do século XIX. Em 1862, estreou-se na Comédie-Française com Iphigénie e, dois anos depois, surgiu no Ódeon, onde começou a ganhar notoriedade. Representou por diversas vezes Shakespeare, inclusive em papéis masculinos. Entre 1882 e 1895, viajou por todo o mundo, tendo celebrizado a sua personagem Marguerite Gautier de A Dama das Camélias. Embora confidenciasse a amigos e a próximos que abominava cinema, estreou-se nestas lides em 1900, no papel masculino de Hamlet em Le Duel d'Hamlet. Em 1909, por ter detestado a sua atuação em La Tosca, ordenou que queimassem os negativos, o que fez com que o filme não estreasse comercialmente. Contribuiu para a credibilização do cinema mudo com participações em La Dame aux Camélias (1910), Les Amours de la Reine Élisabeth (1912), Camille (1912), Adrienne Lecouvreur (1913) e Jeanne Dore (1915). Em 1915, por complicações metabólicas, viu-se obrigada a amputar uma perna o que motivou o fim da sua carreira teatral. O seu último filme foi La Voyante (1923) com condições de rodagem muito peculiares: como a condição de saúde da atriz não lhe permitia sair do quarto de hotel em que se encontrava hospedada, a equipa de filmagem trouxe o material para o quarto, filmando a atriz em grandes planos sentada ou deitada na cama. Mas uma cólica renal fulminante provocou a morte da atriz, permanecendo assim o filme inacabado. (daqui)

 

Louise Abbéma, A Faithful Companion. Oil on canvas, 64.8 x 48.9 cm.
 
 
 
Belle Époque
 
A Belle Époque foi o período que decorreu na Europa entre 1890 e 1914, ano em que começou a Primeira Guerra Mundial. 
A expressão Belle Époque, contudo, só surgiu depois do conflito armado para designar um período considerado de expansão e progresso, nomeadamente a nível intelectual e artístico. Nesta época surgiram inovações tecnológicas como o telefone, o telégrafo sem fio, o cinema, o automóvel e o avião, que originaram novos modos de vida e de pensamento, com repercussões práticas no quotidiano.

Foi uma fase de grande desenvolvimento na Europa, favorecida pela existência de um longo período de paz. Países como a Alemanha, o Império Austro-Húngaro, a França, a Itália e o Reino Unido aproveitaram para se desenvolver a nível económico e tecnológico. Tratou-se de uma época de otimismo entre a população que passou a ter uma grande crença no futuro. Simultaneamente, os trabalhadores começaram a organizar sindicatos e partidos políticos, nomeadamente os socialistas.

Nas grandes cidades o ambiente mudou radicalmente, o que era visível nas principais avenidas, onde se multiplicavam os cafés, os cabarets, os ateliers, a galerias de arte e as salas de concertos, espaços frequentados pela média burguesia, que tinha cada vez mais posses. O núcleo da Belle Époque era Paris, na altura o centro cultural do mundo. 
 
Durante a Belle Époque surgiram três correntes artísticas a nível da pintura, o fauvismo (Matisse foi o seu maior representante), o cubismo (onde se destacou Picasso) e o impressionismo (com Claude Monet como iniciador). 
A nível literário a época ficou marcada pelo surgimento de novos géneros, como os romances policiais e de ficção científica, onde se destacaram os heróis solitários, como Arsène Lupin ou Fantômas, que se mascaravam e usavam armas modernas e inovadoras. 
Houve também grandes progressos a nível da química, da eletrónica e da siderurgia, assim como da medicina e da higiene, o que permitiu fazer baixar as taxas de mortalidade. 
 
Uma das formas encontradas para celebrar todos estes progressos, foi a organização da Exposição Universal de Paris, que teve lugar em 1900, nos Campos Elísios e nas margens do rio Sena.
A Belle Époque terminou com o eclodir da Primeira Guerra Mundial, nomeadamente porque as notáveis invenções daquele período passaram a ser utilizadas como tecnologia de armamento. (daqui)