terça-feira, 2 de maio de 2023

"Tragam-me um homem que me levante com os olhos" - Poema de Cláudia R. Sampaio



John Singer Sargent (1856–1925), Wilfrid and Jane de Glehn, The Fountain,
 Villa Torlonia, Frascati, Italy, 1907. Art Institute of Chicago, USA.
 


Tragam-me um homem que me levante
 

Tragam-me um homem que me levante
com os olhos
que em mim deposite o fim da tragédia
com a graça de um balão acabado de encher
tragam-me um homem que venha em baldes,
solto e líquido para se misturar em mim
com a fé nupcial de rapaz prometido a despir-se
leve, leve, um principiante de pássaro
tragam-me um homem que me ame em círculos
que me ame em medos, que me ame em risos
que me ame em autocarros de roda no precipício
e me devolva as olheiras em gratidão de
estarmos vivos
um homem homem, um homem criança
um homem mulher
um homem florido de noites nos cabelos
um homem aquático em lume e inteiro
um homem casa, um homem inverno
um homem com boca de crepúsculo inclinado
de coração prefácio à espera de ser escrito
tragam-me um homem que me queira em mim
que eu erga em hemisférios e espalhe e cante
um homem mundo onde me possa perder
e que dedo a dedo me tire as farpas dos olhos
atirando-me à ilusão de sermos duas
novíssimas nuvens em pé.


Cláudia R. Sampaio
, in 'Ver no escuro', 2016
 
 
Cláudia R. Sampaio, Ver no escuro, 2016, 
 Editora: Tinta-da-China
 

«O que arde também cura. Quando, neste livro, nos deparamos com relâmpagos, brasas e incêndios, detetamos igualmente uma ideia de restabelecimento ou terapia, que se parece, aliás, com o seu avesso: uma doença febril, convulsiva, violenta. Os poemas de Cláudia R. Sampaio são disfóricos mas reativos, respondem ao mundo e aos ataques do mundo, muitos deles sujos, asquerosos. Esse imaginário quase abjecionista não é uma pose, uma auto‑indulgência, é a convicção de que, apesar de estarem ‘acima das condições atmosféricas’, os poemas têm cabeça e têm corpo, ambos amotinados, complicados. Anotações citadinas confirmam então que os outros talvez sejam mesmo o inferno; elegias domésticas transformam os pais em criaturas mitológicas, terríficas; e poemas de perda e desejo combinam imagens agressivas e anáforas surreais‑românticas. Ver no Escuro é uma sequência sobre o facto de estarmos vivos, ou antes, sobre a consciência e ‘infra‑consciência’ desse facto. Consciência que é um desassossego pessoano, uma exasperação tenebrosa, uma ‘melancolia aflita’.» — Pedro Mexia (daqui)
 
 

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