sexta-feira, 5 de maio de 2023

"Antiguidades" - Poema de Cora Coralina

 
Albert Anker (Swiss painter and illustrator, 1831-1910), The school walk, 1872, representing  
Pestalozzi's liberal approach to education.



Antiguidades



Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo económico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção.
Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.

Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.

Era aquilo uma coisa de respeito.
Não para ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
“Tomando propósito”.
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
– Valha-me Deus!...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antiguidades...

Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita – alta, magrinha.
Lili – baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
“– Lili é a bengala de D. Benedita”.
Mestra Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.

D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.

Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando “causos” infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.

E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.
De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
– ai de mim –
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.


Cora Coralina
, Melhores Poemas, 2ª edição. São Paulo: Global, 2004.
(Poema originalmente publicado em 1965.)
 


Albert Anker, Pestalozzi et les orphelins, 1902
 
 
"A vida educa. Mas a vida que educa não é uma questão de palavras, e sim de ação. É atividade."
 
 
 
 Johann Heinrich Pestalozzi, pintado por Francisco Javier Ramos, c. 1806.
 

Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) foi um grande educador suíço que dedicou sua vida a crianças carentes e à valorização do ser humano. Considerado por muitos o maior filósofo da humanidade, inovou a pedagogia da sua época influenciando a educação especial, escreveu obras literárias, políticas, filosóficas e pedagógicas, sendo algumas consideradas precursoras da sociologia; a maioria delas, entretanto, foi dedicada à educação. Pai da escola popular inspirou muitos estabelecimentos de ensino em todo o mundo.
Conclamado a falar sobre si mesmo, Pestalozzi assim se descreveu: “Vivi como mendigo para ensinar os mendigos a viverem como homens”. E ao falar sobre seu trabalho, deixou-nos uma lição de vida: “Minha contribuição foi o amor que me fez buscar o que não sabia, e a fé que me fez esperar mesmo quando não havia nada a esperar”. (Daqui)
 
 

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