quinta-feira, 25 de maio de 2023

"Tentanda Via" - Poema de Antero de Quental


El Greco (Greek painter, sculptor and architect of the Spanish Renaissance, 1541-1614),
Saint Martin and the Beggar
, c. 1597-1599, National Gallery of Art, Washington DC



Tentanda via

I

Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!

Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!
A noite, longa! o dia, duvidoso!
Vai o giro dos céus bem vagaroso...
Vem longe ainda a praia do futuro...

É a grande incerteza, que se estende
Sobre os destinos dum porvir, que é treva...
E o escuro terror de quem nos leva...
O fruto horrível que das almas pende!

A tristeza do tempo! o espectro mudo
Que pela mão conduz... não sei aonde!
— Quanto pode sorrir, tudo se esconde...
Quanto pode pungir, mostra-se tudo. —

Não é a grande luta, braço a braço
No chão da Pátria, à clara luz da História...
Nem o gládio de César, nem a glória...
É um misto de pavor e de cansaço!

Não é a luta dos trezentos bravos,
Que o solo amado beijam quando caem...
Crentes que traz um Deus, e à guerra saem,
Por não dormir no leito dos escravos...

É a luta sem glória! é ser vencido
Por uma oculta, súbita fraqueza!
Um desalento, uma íntima tristeza
Que à morte leva... sem se ter vivido!

Não há aí pelejar... não há combate...
Nem há já glória no ficar prostrado —
São os tristes suspiros do Passado
Que se erguem desse chão, por toda a parte...

É a saudade, que nos rói e mina
E gasta, como à pedra a gota d’água...
Depois, a compaixão, a íntima mágoa
De olhar essa tristíssima ruína...

Tristíssimas ruínas! Entristece
E causa dó olhá-las — a vontade
Amolece nas águas da piedade,
E, em meio do lutar, treme e falece.

Cada pedra, que cai dos muros lassos
Do trémulo castelo do passado,
Deixa um peito partido, arruinado,
E um coração aberto em dois pedaços!

II

A estrada da vida anda alastrada
De folhas secas e mirradas flores...
Eu não vejo que os céus sejam maiores,
Mas a alma... essa é que eu vejo mais minguada!

Ah! via dolorosa é esta via!
Onde uma Lei terrível nos domina!
Onde é força marchar pela neblina...
Quem só tem olhos para a luz do dia!

Irmãos! irmãos! amemo-nos! é a hora...
É de noite que os tristes se procuram,
E paz e união entre si juram...
Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!

E vós, que andais a dores mais afeitos,
Que mais sabeis à Via do Calvário
Os desvios do giro solitário,
E tendes, de sofrer, largos os peitos;

Vós, que ledes na noite... vós, profetas...
Que sois os loucos... porque andais na frente...
Que sabeis o segredo da fremente
Palavra que dá fé — ó vós, poetas!

Estendei vossas almas, como mantos
Sobre a cabeça deles... e do peito
Fazei-lhes um degrau, onde com jeito
Possam subir a ver os astros santos...

Levai-os vós à Pátria-misteriosa,
Os que perdidos vão com passo incerto!
Sede vós a coluna do deserto!
Mostrai-lhes vós a Via-dolorosa!

III

Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços,
Olhar apenas uma luz distante!

É preciso passar sobre ruínas,
Como quem vai pisando um chão de flores!
Ouvir as maldições, ais e clamores,
Como quem ouve músicas divinas!

Beber, em taça túrbida, o veneno,
Sem contrair o lábio palpitante!
Atravessar os círculos do Dante,
E trazer desse inferno o olhar sereno!

Ter um manto da casta luz das crenças,
Para cobrir as trevas da miséria!
Ter a vara, o condão da fada aérea,
Que em ouro torne estas areias densas!

E, quando, sem temor e sem saudade,
Puderdes, dentre o pó dessa ruína,
Erguer o olhar à cúpula divina,
Heis de então ver a nova-claridade!

Heis de então ver, ao descerrar do escuro,
Bem como o cumprimento de um agouro,
Abrir-se, como grandes portas de ouro,
As imensas auroras do Futuro!

(1864)

Antero de Quental
, in Odes Modernas 
 

Odes Modernas
 
Coletânea de poesias, de Antero de Quental, dedicada a Germano Meireles, publicada em 1865, que, refletindo as influências do humanitarismo de Proudhon e da dialética evolucionista de Hegel, rompeu com a temática sentimentalista que caracterizou a segunda geração romântica e impôs o romantismo social, marcado pelo fervor revolucionário, pela sede de justiça social e pela crença na apoteose futura da verdade: "O Evangelho novo é a bíblia da Igualdade:/ Justiça, é esse o tema imenso do sermão:/ A missa nova, essa é missa de Liberdade:/ E órgão a acompanhar... a voz da Revolução!" ("No templo").
 Referindo-se, em 1887, na célebre "Carta autobiográfica dirigida ao Professor Wilhelm Storck", às Odes Modernas, Antero chamar-lhes-á "poesia de combate", caracterizando o tom e os temas predominantes no volume: "o panfletário divisa-se muitas vezes por detrás do poeta, e a Igreja, a monarquia, os grandes do mundo são o alvo das suas apóstrofes de nivelador idealista. Noutras composições, é verdade, o tom é mais calmo e patenteia-se nelas a intenção filosófica do livro, vaga sim, mas humana e elevada".
Assumindo a "missão revolucionária da poesia" exposta na nota posfacial, é na qualidade de "Soldado do Futuro" ("Pois, se são operários do futuro,/ Semeadores da seara nova,/ Que lançam uma ideia em cada cova,/ Da dura história sobre o chão escuro", de "Pater"), à escuta da "voz das multidões", que Antero se dirige "A um Poeta": "Há mais alta missão, mais alta glória:/ O combater, à grande luz da História,/ Os combates eternos da Justiça". Esta "Justitia mater" de raiz proudhoniana aparece em "Tese e Antítese" concebida hegelianamente como a "nova ideia" - "desgrenhada/ Torva no aspeto, à luz da barricada" - que o poeta, como revolucionário, ajuda a revelar.
Na célebre "Nota" posfacial, Antero formula uma conceção socialmente militante da missão do poeta e da poesia, voltada para a "reconstrução do mundo humano sobre as bases eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com exclusão dos Reis e dos Governos tirânicos, dos Deuses e das Religiões inúteis e ilusórias", sustentando, assim, uma prática poética inconciliável com o que designa de "arte pela arte", isto é, uma poesia meramente decorativa. Este texto, juntamente com os prefácios de Teófilo Braga à Visão dos Tempos e às Tempestades Sonoras, motivou as alusões irónicas de Castilho, na carta-posfácio ao Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas, à moderna escola de Coimbra e à sua poesia ininteligível, vindo, portanto, a desencadear a Questão Coimbrã(daqui)

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