quinta-feira, 11 de maio de 2023

"Extravio" - Poema de Ferreira Gullar

Extravio 
 
 
Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.

Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.

Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala. 


Ferreira Gullar, in Muitas vozes: poemas,
José Olympio Editora – 2ª edição, 1999
 

Arnold Böcklin, Self-portrait with the wine glass, 1885,  
 
 
Fecho a minha porta.
Silencioso vou deitar-me.
Prazer de estar só... 


Matsuo Bashō (1644-1694)
Tradução de
Manuel Bandeira

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