James Tissot (French painter and illustrator, 1836–1902), The Circle of the Rue Royale, a scene in Paris
seen from the balcony of the Hôtel de Coislin overlooking the Place de la Concorde, 1868.
(Le Cercle de la rue Royale), Musée d'Orsay, Paris
Tese e Antítese
I
Já não sei o que vale a nova ideia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspeto, à luz da barricada,
Como bacante após lúbrica ceia!
Sanguinolento o olhar se lhe incendeia…
Respira fumo e fogo embriagada…
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!
Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obus...
Mas a ideia é num mundo inalterável,
Num cristalino céu, que vive estável...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
II
Num céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espetáculo divino.
Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante…
Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
Cá da terra blasfema ou ergue um hino...
A ideia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!
Combatei pois na terra árida e bruta,
‘Té que a revolva o remoinhar da luta,
‘Té que a fecunde o sangue dos heróis!
(1870)
Antero de Quental, in Odes Modernas
Odes Modernas
Coletânea de poesias, de Antero de Quental, dedicada a Germano Meireles,
publicada em 1865, que, refletindo as influências do humanitarismo de
Proudhon e da dialética evolucionista de Hegel, rompeu com a temática
sentimentalista que caracterizou a segunda geração romântica e impôs o
romantismo social, marcado pelo fervor revolucionário, pela sede de
justiça social e pela crença na apoteose futura da verdade: "O Evangelho
novo é a bíblia da Igualdade:/ Justiça, é esse o tema imenso do
sermão:/ A missa nova, essa é missa de Liberdade:/ E órgão a
acompanhar... a voz da Revolução!" ("No templo").
Referindo-se, em 1887,
na célebre "Carta autobiográfica dirigida ao Professor Wilhelm Storck",
às Odes Modernas, Antero chamar-lhes-á "poesia de combate",
caracterizando o tom e os temas predominantes no volume: "o panfletário
divisa-se muitas vezes por detrás do poeta, e a Igreja, a monarquia, os
grandes do mundo são o alvo das suas apóstrofes de nivelador idealista.
Noutras composições, é verdade, o tom é mais calmo e patenteia-se nelas a
intenção filosófica do livro, vaga sim, mas humana e elevada".
Assumindo a "missão revolucionária da poesia" exposta na nota posfacial,
é na qualidade de "Soldado do Futuro" ("Pois, se são operários do
futuro,/ Semeadores da seara nova,/ Que lançam uma ideia em cada cova,/
Da dura história sobre o chão escuro", de "Pater"), à escuta da "voz das
multidões", que Antero se dirige "A um Poeta": "Há mais alta missão,
mais alta glória:/ O combater, à grande luz da História,/
Os combates eternos da Justiça". Esta "Justitia mater" de raiz
proudhoniana aparece em "Tese e Antítese" concebida hegelianamente como a
"nova ideia" - "desgrenhada/ Torva no aspeto, à luz da barricada" - que
o poeta, como revolucionário, ajuda a revelar.
Na célebre "Nota" posfacial, Antero formula uma conceção socialmente militante da missão do poeta e da poesia, voltada para a "reconstrução do mundo humano sobre as bases eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com exclusão dos Reis e dos Governos tirânicos, dos Deuses e das Religiões inúteis e ilusórias", sustentando, assim, uma prática poética inconciliável com o que designa de "arte pela arte", isto é, uma poesia meramente decorativa. Este texto, juntamente com os prefácios de Teófilo Braga à Visão dos Tempos e às Tempestades Sonoras, motivou as alusões irónicas de Castilho, na carta-posfácio ao Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas, à moderna escola de Coimbra e à sua poesia ininteligível, vindo, portanto, a desencadear a Questão Coimbrã. (daqui)
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