quarta-feira, 24 de maio de 2023

"Lisboa" - Poema de António Botto


João Marques de Oliveira (Professor e pintor realista português, introdutor do naturalismo em Portugal
1853-1927), Torre de Belém, s.d., Coleção particular


 
Lisboa
 

Lisboa, berço da força
Cais das grandes aventuras
Onde embarcaram aqueles
Em madrugadas escuras
E em barcos de uma só verga
Navegando sem receio
De que o mar na sua fúria
Partisse de meio a meio
A frágil embarcação,
Lisboa das Descobertas
Pátria de espada em mão!
Lisboa rica de timbres
Mas em que um é sempre belo:
- O Sol doirando as ameias
Do seu glorioso Castelo!
Ó Lisboa das fragatas
E das manhãs outonais,
Dos marinheiros valentes
Beijando estas e aquelas
À noite pelos portais.

Lisboa desmazelada
Sem garbo, sem atitude,
E sem compostura séria;
Lisboa da fadistice
- Senhora Dona e galdéria!
Lisboa das zaragatas
Por qualquer coisa e por nada;
Lisboa dos decilitros
De tasca em tasca, vadia,
Complicante e à bofetada;
Lisboa da tradição
- Sorriso de nostalgia!
Quartel do alto heroísmo,
Lisboa chorosa e forte,
Saudosa, infeliz, cantando
Na plangência de um harmónio
Cantigas que ouviu à morte!
Lisboa dos pátios sujos
Onde se ralha e se dança
Até romper a alvorada!
Descalça, de mãos na ilharga,
Impetuosa, vibrante,
Lisboa da garotada
Jogando a bola nas ruas.
Lisboa das horas mortas
Com namoros à janela.

Lisboa dos chafarizes
Onde a água é um cantar
De nautas e mareantes;
Lisboa das guitarradas
No lirismo dos amantes!
Lisboa das melancias
Descarregadas ao Sol
E aos berros no Cais da Areia.
Lisboa das noites lindas
E onde é oiro a lua cheia!
Ó Lisboa dos mendigos
E dos velhos sem asilo;
Lisboa do céu azul
E onde o Tejo é mais tranquilo.
Lisboa de bairros tristes,
Humilde, religiosa
Sem fundos de convicção,
Lisboa do meu amor,
Essa maldita paixão!
 
 
António Botto, in "Ódio e Amor",
Lisboa, Edições Ática, 1947
 

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