sexta-feira, 31 de março de 2017

"A Música" - Poema de Charles Baudelaire




A Música


A música p'ra mim tem seduções de oceano! 
Quantas vezes procuro navegar, 
Sobre um dorso brumoso, a vela a todo o pano, 
Minha pálida estrela a demandar! 

O peito saliente, os pulmões distendidos 
Como o rijo velame d'um navio, 
Intento desvendar os reinos escondidos 
Sob o manto da noite escuro e frio; 

Sinto vibrar em mim todas as comoções 
D'um navio que sulca o vasto mar; 
Chuvas temporais, ciclones, convulsões 

Conseguem a minh'alma acalentar. 
— Mas quando reina a paz, quando a bonança impera, 
Que desespero horrível me exaspera! 


Tradução de Delfim Guimarães


 Saint Petersburg (Hermitage version)


"A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia." 
 
(Beethoven)


Johann Sebastian Bach (1685-1750) - Adagio
(Τhis version is made by Elise Robineau)


quinta-feira, 30 de março de 2017

"De ti me separei na Primavera" - Poema de William Shakespeare


Abbott Fuller GravesBonhams Graves Rowing to Picnic Rock



 De ti me separei na Primavera


De ti me separei na Primavera:
quando o radioso Abril, ao sol voando, 
em cor e luz, a plenas mãos, cantando, 
nova alegria entorna pela esfera... 

No viridente bosque até dissera 
o pesado Saturno ver folgando... 
Porém nem cor vistosa ou cheiro brando 
lograram incender minha quimera. 

A brancura dos lírios, não a vi... 
O vermelhão das rosas, desmaiava... 
Eram fantasmas só: ao pé de ti 

— o seu modelo - quanto lhes faltava! 
Parecia inverno; e eu, a viva alfombra, 
só pude imaginá-la a tua sombra. 


Trad. Luiz  Cardim


quarta-feira, 29 de março de 2017

"Atravessaremos juntos as grandes espirais" - Poema de Hilda Hilst




Atravessaremos juntos as grandes espirais


Que boca há de roer o tempo? Que rosto 
Há de chegar depois do meu? Quantas vezes 
O tule do meu sopro há de pousar 
Sobre a brancura fremente do teu dorso? 

Atravessaremos juntos as grandes espirais 
A artéria estendida do silêncio, o vão 
O patamar do tempo? 

Quantas vezes dirás: vida, vésper, magna-marinha 
E quantas vezes direi: és meu. E as distendidas 
Tardes, as largas luas, as madrugadas agônicas 
Sem poder tocar-te. Quantas vezes, amor 

Uma nova vertente há de nascer em ti 
E quantas vezes em mim há de morrer. 


in 'Preludios-Intensos para os Desmemoriados do Amor'


terça-feira, 28 de março de 2017

"Oiça vizinha: o melhor" - Poema de Augusto Gil


Paul Gustav Fischer, Portrait of a young woman in a green dress,1913



Oiça vizinha: o melhor


Oiça vizinha: o melhor
É combinarmos o modo 
De acabar com este amor 
Que me toma o tempo todo. 

Passo os meus dias a vê-la 
Bordar ao pé da sacada. 
Não me tiro da janela, 
Não leio, não faço nada... 

O seu trabalho é mais brando, 
Não lhe prende o pensamento. 
Vai conversando, bordando 
E acirrando o meu tormento... 

O meu, não: abro um artigo 
De lei, mas nunca o acabo, 
Pois dou de cara consigo 
E mando as leis ao diabo. 

Ao diabo mando as leis 
Com exceção de um artigo 
O mil e cinquenta e seis... 
Quer conhecê-lo? Eu lho digo:

"Casamento é um contrato 
Perpétuo." Este adjetivo 
Transmuda o mais lindo parto 
No assunto mais repulsivo. 

"Perpétuo!" Repare bem 
Que artigo cheio de puas 
Ainda se não fosse além 
Duma semana ou duas... 

Olhe tivesse eu mandato 
De legislar e poria: 
"Casamento é um contrato 
Duma hora – até um dia..." 

Mas não tenho. É pois melhor 
Combinarmos algum modo 
De acabar com este amor 
Que me toma o tempo todo. 


 (1873-1929)


domingo, 26 de março de 2017

"A Guerra que aflige com seus esquadrões o Mundo" - Poema de Alberto Caeiro


Arpad Szenes (1897-1985), Les guerriers, 1938-1939, óleo s/ tela, 97 x 162 cm
Coleção da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva


A Guerra que aflige com seus esquadrões


A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo, 
É o tipo perfeito do erro da filosofia. 

A guerra, como tudo humano, quer alterar. 
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito 
E alterar depressa. 

Mas a guerra inflige a morte. 
E a morte é o desprezo do Universo por nós. 
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa. 
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar. 

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs. 

Tudo é orgulho e inconsciência. 
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto. 
Para o coração e o comandante dos esquadrões 
Regressa aos bocados o universo exterior. 

A química direta da Natureza 
Não deixa lugar vago para o pensamento. 

A humanidade é uma revolta de escravos. 
A humanidade é um governo usurpado pelo povo. 
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito. 

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural! 
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem, 
Paz à essência inteiramente exterior do Universo! 
 
24-10-1917

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


sábado, 25 de março de 2017

"Como te amo?" - Poema de Elizabeth Barrett Browning


Albert Chevallier Tayler (1862-1925), Elizabeth Barrett Browning - The Anniversary:
"I love thee to the level of everyday's most quiet need", 1909 



Como te amo?

Soneto XLIII


Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh'alma alcança quando, transportada,
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do Ser, a Graça entressonhada.

Amo-te em cada dia, hora e segundo:
À luz do sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.

Amo-te com o doer das velhas penas;
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingénua e forte.

Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E, assim Deus o quisesse,
Ainda mais te amarei depois da morte.


Tradução de Manuel Bandeira


quinta-feira, 23 de março de 2017

"Espaço curto e finito" - Poema de José Saramago


 presiding over the decline of morality



Espaço curto e finito


Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças
E ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe,
Um longe aqui.

Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.


(In Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Lisboa, 1981. 3ª edição)

quarta-feira, 22 de março de 2017

"Ama-me" - Poema de Hilda Hilst


Johann Hamza (Austrian artist, 1850-1927), Acquaintance, 1885


Ama-me


Aos amantes é lícito a voz desvanecida.
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido:
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora,
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo
Ronda escurecida?

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor
Quando tudo anoitece? Antes lamenta
Essa teia de seda que a garganta tece.

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.


in 'Preludios-Intensos para os Desmemoriados do Amor' 


Johann Hamza (Austrian artist, 1850-1927)



"Nem a arte nem a literatura têm de nos dar lições de moral. Somos nós que temos de nos salvar, e isso só é possível com uma postura de cidadania ética, ainda que isto possa soar antigo e anacrónico!"
- José Saramago
 

terça-feira, 21 de março de 2017

"Que Aborrecido!" - Poema de António Nobre


Albert Anker (1831-1910), Schoolboy, 1881


Que Aborrecido!


Meus dias de rapaz, de adolescente, 
Abrem a boca a bocejar sombrios: 
Deslizam vagarosos, como os rios, 
Sucedem-se uns aos outros, igualmente. 

Nunca desperto de manhã, contente. 
Pálido sempre com os lábios frios, 
Oro, desfiando os meus rosários pios... 
Fora melhor dormir, eternamente! 

Mas não ter eu aspirações vivazes, 
E não ter, como têm os mais rapazes, 
Olhos boiando em sol, lábio vermelho! 

Quero viver, eu sinto-o, mas não posso: 
E não sei, sendo assim, enquanto moço, 
O que serei, então, depois de velho... 


António Nobre, in 'Só' 




"A escola foi para mim como um barco: me dava acesso a outros mundos. Contudo, aquele ensinamento não me totalizava. Ao contrário: mais eu aprendia, mais eu sufocava."

domingo, 19 de março de 2017

"Elogio da vida monástica" - Poema de Jorge de Sena


Albert Chevallier Tayler, The Grey Drawing Room, 1917



Elogio da vida monástica


Outrora, uma pessoa retirava-se do mundo,
amortalhava-se em vida, fazia-se monge,
ou porque a vida lhe dera tudo e a agonia sobrevinha,
ou porque desistia de lutar com ela pelo que não vinha nunca
(nem mesmo sob a forma de agonia que facilitasse as coisas).
Depois, porque o espírito precisa de ocupar-se,
a pessoa tratava de salvar a própria alma,
de mortificar o corpo, e preparava-se para a morte
(um acidente para que só pelo acaso feliz de ter nascido,
uma pessoa, naquele tempo sem recurso algum,
estava, por estar viva, sempre preparada).
Era uma aposentadoria honrosa, olhada com respeito,
e que não podia deixar de encher a solidão
como gente e amor não tinham preenchido a vida.
Era um estar só, rodeado de calor humano,
sem os inconvenientes e a incomodidade
que o convívio humano traz consigo,
desde os sentimentos a mais aos sentidos a menos,
ou ao facto lamentável de quem amamos não cheirar
como quereríamos: a um misto de rosas e de sexo,
com alguma imaginação de como o amor cheira.

Hoje, não há mais mundo
de que uma pessoa possa retirar-se.
O mundo se retirou de nós. E a solidão
é como um convento gigantesco em que,
na rua, nos transportes coletivos, na cama,
olhamos a vizinhança com a mesma convicção
com que os carmelitas descalços ao cruzarem-se no claustro
mutuamente se saudavam dizendo
que era preciso morrer.
Na dor, na alegria, no prazer, em tudo,
somos monges laicos cuja morte sobrevém
de uma qualquer maneira estúpida e sem graça.
E o nosso olhar de espanto não é o de termos sido
colhidos de surpresa antes de estar salva a alma,
mas o de ela estar salva, desde que o mundo
se retirou de nós. É o olhar de espanto do funcionário público
que descobre, ao contarem-lhe o tempo de aposentadoria,
que nunca figurara na folha de pagamento,
nem no quadro dos funcionários efetivos,
ou mesmo sequer nas listas do comissariado
do desemprego. Não tem direito sequer
à agonia que todavia sente como antigamente
era sentida a que justificava tudo:
o prazer de decidir entre duas coisas:
o ir ou o ficar, o estar ou o partir,
O ter-se uma alma que jogar e perder.


40 Anos de Servidão, edições 70, 1989


sábado, 18 de março de 2017

"Que assim sai a manhã serena e bela" - Soneto de João Xavier de Matos


William Oliver (British, 1823 – 1901)



Que assim sai a manhã serena e bela


Que assim sai a manhã serena e bela
Como vem no horizonte o sol raiando!
Já se vão os outeiros divisando, 
já no céu se não vê nenhuma estrela 

Como se ouve a rústica janela
do pátrio ninho o rouxinol cantando!
Já lá vai para o monte o gado andando, 
já começa o barqueiro a içar a vela.

A pastora acolá, por ver o amante, 
com o cântaro vai à fonte fria; 
cá vem saindo alegre o caminhante;

Só eu não vejo o rosto da alegria:
que enquanto de outro sol morar distante,
não há de para mim nascer o dia.


1730/35-1789


sexta-feira, 17 de março de 2017

"Que este amor não me cegue nem me siga" - Poema de Hilda Hilst



Albert Chevallier Tayler, The Quiet Hour, 1913



Que este amor não me cegue nem me siga


Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça mais pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.



in 'Cantares do Sem-Nome e de Partidas' 


quinta-feira, 16 de março de 2017

"Difícil poema de amor" - Poema de Luiza Neto Jorge


Alexandre Cabanel (1823-1889), The Birth of Venus, 1863, Musée d'Orsay, Paris


Difícil poema de amor



Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa
do juiz supremo dos amantes. Para que os juízes
me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito feito de marés ambulantes
de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos
do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor
são ruas estreitíssimas velocíssimas que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.

Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste
número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico
como um pássaro sem bico.

Num silêncio breve vestiu-se a cidade. Muito bom-dia querido moribundo.
Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo os olhos
 me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da manhã de hoje.

Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-
me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não
te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.

Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os
olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?

Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.

Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a
cálculos. Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.

Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então
virás
vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.

E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o
leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos
benignos que faremos?

Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes.
Conheces-me. Não me tens amor

Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me
afundar.

Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objetos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo elétrico!

Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado
com mais visco de amor cópula mortal.

Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas
de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios retos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro
ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.

Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros
coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá
outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo
eu. Existirão tais palavras?

É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico
calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer
assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se
fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em
volta de mim em volta de mim de ti.

Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes:
separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As mulheres viajavam
pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-
-se com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.

Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao
mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam
este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.

Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão
por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.

Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é
porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego
sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objeto público sagrado
purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo
quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.

O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos
lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas
medos reclusos beijos nos dentes.

A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e
de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos
sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país
e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e
morremos.

Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me
adormecias devagar.

Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite
pela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um
animal estrangulado acordei-te.

Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter
medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras
atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.

Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me
impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.

Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu
nome profissão morada telefone.

Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.

Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!


Luiza Neto Jorge


terça-feira, 14 de março de 2017

"Um encontro no canto da memória" - Poema de Nuno Júdice


Arpad Szenes (1897-1985), Conversation bleue, 1949, óleo s/ tela, 73 x 60 cm
Coleção da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva


Um encontro no canto da memória



O que tenho para te dar? Uma gramática de sentimentos,
verbos sem o complemento de uma vida, os substantivos
mais pobres de um vocabulário íntimo — o amor, o desejo,
a ausência. Que frase construiremos com tão pouco? A
que léxico da paciência iremos roubar o que nos falta?

Então, ofereço-te uma outra casa. As paredes têm a
consistência do verso; o teto, o peso de uma estrofe.
Abro-te as suas portas; e o sol entra pela janela de
uma sílaba, com o seu logo vocálico, como se uma
palavra pudesse aquecer o frio que te envolve.

E pergunto-te: que outras palavras queres? A música
sonora de um ócio? O espesso manto com que o veludo
se escreve? O fundo luminoso do azul? Poderia dar-te
todas as palavras na caixa do poema; ou emprestar-te
o canto efémero em que se escondem do mundo.

Mas não é isso que me pedes. E a vida que pulsa
por entre advérbios e adjetivos esfuma-se depressa,
quando procuramos seguir a linha do verso, O que fica?,
perguntas-me. Um encontro no canto da memória. Risos,
lágrimas, o terno murmúrio da noite. Nada, e tudo.


Nuno Júdice, in "O estado dos Campos"

segunda-feira, 13 de março de 2017

"Venho de dentro, abriu-se a porta" - Poema de Luiza Neto Jorge


Abbott Fuller Graves (1859-1936), Lady in the Garden 

 
Venho de dentro, abriu-se a porta


Venho de dentro, abriu-se a porta:
nem todas as horas do dia e da noite
me darão para olhar de nascente
a poente e pelo meio as ilhas.

Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo
de só imaginá-la a luz fulmina-me,
na outra face ainda é sombra.

Banhos de sol
nas primeiras areias da manhã
Mansidões na pele e do labirinto só
a convulsa circunvolução do corpo.


Luiza Neto Jorge
A Lume, Assírio & Alvim, 1989


domingo, 12 de março de 2017

"Tarde de Maio" - Poema de Carlos Drummond de Andrade




Tarde de Maio


Como esses primitivos que carregam por toda parte
 o maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cómicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto e passa…
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Nunca há testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.




sábado, 11 de março de 2017

"Batismo" - Poema de Jorge de Sena


Wright Barker (British painter, 1864 - 1941), Come and Play!


Batismo


Os mais difíceis poemas onde falo de amor 
são aqueles em que o amor contempla. 

O amor esquece ao contemplar, 
esquece que não existe e encantado olha 
um raio anónimo sob o vento mais leve. 

Contempla, amor, contempla. 
E vai criando o nome que darás ao raio. 
in 'Coroa da Terra'


Wright Barker (British painter, 1864-1941), Spring.


"Nunca a poesia, é certo, transformou o mundo – mas o mundo nunca se transformaria sem ela."

(1971)

sexta-feira, 10 de março de 2017

"Só raízes e folhas" - Poema de Walt Whitman


Albert Flamm (German painter, 1823-1906), Evening mood at the rhine river



Só raízes e folhas


Só raízes e folhas.
Odores trazidos dos bosques bravios e das margens do lago até aos homens e às mulheres,
Azeda-do-seio e cravos de amor, dedos que se enlaçam mais apertados que trepadeiras,
Jorros das gargantas dos pássaros ocultos na folhagem das árvores enquanto o sol se ergue,
Brisas da terra e do amor que sopram das praias vivas até vós sobre o mar vivo, até vós, ó marinheiros!
Bagas amolecidas pela geada e rebentos de Março oferecidos frescos aos jovens que vagueiam pelos campos quando o inverno termina,
Botões de amor postos à tua frente e dentro de ti, quem quer que sejas,
Botões que vão desabrochar como sempre,
Se trouxeres o calor do sol até eles, hão de abrir para te trazerem forma, cor, perfume,
Se te tornares sustento e humidade, eles vão ser flores, frutos, altos ramos e árvores. 




quinta-feira, 9 de março de 2017

"José Afonso" - Poema de Hélia Correia


Amadeo de Souza-Cardoso, Vida dos Instrumentos, 1916




Em louvor da desordem. 
Exaltando 
o vinho e os seus fermentos. 
Em louvor dos motivos 
e em louvor 
da pura insensatez, 
nos sentaremos nós ouvindo este homem, 
atravessados pelo seu galope. 

Como a uma criança, aconchegamos tudo aquilo que ele amou. 
Tudo o que é térreo 
e sujo 
e sorridente, 
e oferece o rosto 
de chapão à luz. 
Coisas que nos deslizam sob a pele disparando calor. 
Regendo as linhas 
fundamentais da vida. 

Há um nó de caminhos onde este homem 
se pôs a esconder pólvora e sementes, 
calendários rurais. 
Dele não pode falar-se sem que se ouça 
a espantosa alegria. 
Sem que de novo bata pelos sítios 
o eco de um tambor, 

É bem possível 
que a canção vele, oculta nas cidades. 
Que se incline nos nossos pensamentos 
como um espelho lunar, 
duro e pacífico. 
E sob o seu olhar nos desloquemos 
por entre a turbulência. 
E dela venha um íntimo sentido 
e o seu ardor nos saiba 
conduzir. 

Pois deste homem ficou o ofício. 
Os meios. 
Sabemos de que modo se levantam 
as pedras sobre as pedras. 
Sabemos de que modo as aguçar. 

Existe anda 
um cordão de linguagens. 
Vibra teimosamente o ar, movido por sopros e até mesmo
por fadigas.
E a sua voz empurra e alimenta essas circulações.
É o vento do sol
que permanece.




Zeca Afonso (José Afonso) - Vejam Bem
"Cantares do Andarilho" (1968)


"Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida." 

in  'Na berma de nenhuma estrada e outros contos'

quarta-feira, 8 de março de 2017

"A forma como me amas, Mãe" - Texto de Pedro Chagas Freitas


Albert Anker, Jeune mère contemplant son enfant endormi, 1875



A forma como me amas, Mãe



Há qualquer coisa de Deus na forma como me amas, mãe. 
As pessoas não são tão grandes como tu, as pessoas não aguentam tanto a vida como tu. As pessoas choram, as pessoas sofrem, as pessoas passam pela vida à procura da melhor maneira de viver. Mas tu amas-me, mãe. Tu amas-me assim, sem condições, e parece que quando me amas nem sequer existes. Apenas ficas ali, a ver-me existir, e é assim que descobres e me ensinas que a vida se resume a ver quem amas viver. 

Há qualquer coisa de impossível na forma como me amas, mãe. 
O possível teria de exigir que parasses quando te dói, que parasses quando o mundo, filho da puta do mundo, te obriga a inventares novas maneiras de me dares tudo o que eu preciso. O possível iria dizer-te que não, que uma só pessoa, tão pequena e tão grande como tu, não pode suportar todo o peso de duas vidas. E tu ainda aí estás, tão forte como só tu, tão impossível como só tu, a sorrir quando me vês de caderno na mão a dizer que sou o melhor aluno da turma. É claro que é bom ser bom aluno, mas o meu maior orgulho é ser filho da mãe mais impossível do mundo. 

Há qualquer coisa de genial na forma como me amas, mãe. 
As pessoas não inventam o tempo como tu, as pessoas não conseguem entender qual é a equação que permite estar sempre onde tem de se estar, as pessoas chegam atrasadas, as pessoas falham a responsabilidades, as pessoas por vezes esquecem-se do que têm de fazer, as pessoas não conseguem fazer com que metade do que precisariam para viver chegue para viverem sem nada lhes faltar. E tu consegues o milagre da multiplicação dos pães e dos corpos, estás no sítio exato onde te preciso na hora exata onde te preciso com as palavras exatas de que preciso, a falares-me de como é importante acreditar que sabemos tudo mesmo que seja importante acreditar que não sabemos nada, e eu ouço-te e percebo que o segredo da tua existência é saberes que só o amor derrota a matemática, e que número nenhum está à altura de quando me abraças. 

Há qualquer coisa de eu todo na forma como me amas, mãe. 
E quando me perguntarem que idade tem a minha mãe direi apenas que para sempre. 


Pedro Chagas Freitas, in 'Prometo Falhar'