quarta-feira, 31 de julho de 2019

"Permanência" - Poema de Adolfo Casais Monteiro


Peder Mørk Mønsted (Danish painter, 1859 - 1941), 1893



Permanência


Não peçam aos poetas um caminho. O poeta
não sabe nada de geografia celestial.
Anda aos encontrões da realidade
sem acertar o tempo com o espaço.
Os relógios e as fronteiras não tem
tradução na sua língua. Falta-lhe
o amor da convenção em que nas outras
as palavras fingem de certezas.

O poeta lê apenas os sinais
da terra. Seus passos cobrem
apenas distâncias de amor e
de presença. Sabe
apenas inúteis palavras de consolo
e mágoa pelo inútil. Conhece
apenas do tempo o já perdido; do amor
a câmara escura sem revelações; do espaço
o silêncio de um voo pairando
em toda a parte.

Cego entre as veredas obscuras é ninguém e nada sabe
— morto redivivo.
Tudo é simples para quem
adia sempre o momento
de olhar de frente a ameaça
de quanto não tem resposta.
 
Tudo é nada para quem
descreu de si e do mundo
e de olhos cegos vai dizendo:
Não há o que não entendo.


Adolfo Casais Monteiro



terça-feira, 30 de julho de 2019

"Meus brinquedos" - Poema de Clarice Pacheco


Meus brinquedos


De repente,
Ao lembrar dos brinquedos queridos,
Que ficaram esquecidos
Dentro do armário.
Me bate uma saudade,
Me bate uma vontade,
De voltar no tempo,
De voltar ao passado.
Mas nada acontece,
Nada parece acontecer,
E eu choro,
Choro como o bebê que fui,
E a criança, que quero voltar a ser.
Não quero crescer!


Clarice Pacheco
(1989-2002)


Michael and Inessa Garmash



Viajar pela leitura


Viajar pela leitura sem rumo, sem intenção.
Só para viver a aventura
que é ter um livro nas mãos.
É uma pena que só saiba disso
quem gosta de ler.
Experimente!
Assim, sem compromisso,
você vai me entender.
Mergulhe de cabeça
na imaginação!


Clarice Pacheco, 
Caderno de Poesias, POA, AGE Editora, 2003. 


Michael and Inessa Garmash


Sem aviso

Sem aviso,
o vento vira
uma página da vida


Helena Kolody
(Haicai)

sábado, 27 de julho de 2019

"Se perguntas onde fui" - Poema de Carlos Nejar


Jan van Beers (1852–1927, Belgian painter and illustrator, the son of the poet Jan van Beers,
 1821–1888), An Elegant Woman on a Balcony at the Sea, undated.



Se perguntas

I

Se perguntas onde fui,
devo dizer: o mar.
Estive sempre ali,
mesmo estando a mudar.

Foi ali que escrevi
tua pele, teu suor.
Ao tempo, seus faróis.
Não mudei de mudar.

II

O que mudou em mim,
senão andar mudando
sem nunca mais mudar?

Quem mudará em mim,
se não sei mudar?

III

Ou me mudei. Sou outro.
Outra ventura, outra
virtude, cadência,
remota criatura.

Então que se apresente.
Seja tenaz, plausível
esse rosto invisível
e áspero.

Mudei. Soprava o mar.
Mudei de não mudar.


Carlos Nejar, in 'Árvore do Mundo' 

sexta-feira, 19 de julho de 2019

"Uma Beleza Dificílima" - Poema de Eduarda Chiote


 


Uma Beleza Dificílima


 O silêncio
abre
o coração das sombras.
Por tal sossego, as árvores
caminham. Mas são as mulheres quem lhes assegura
a elegância do porte.

A harmonia vem do peso da luz
sob a cabeça. Das mãos em arco: os ramos seguram.
Altas são as folhas. Simples.
Lisa a copa.

Não há rumor na terra.
As feras não nasceram ainda. Apenas os peixes.
Fora de água
respiram.

Sim.
O mundo pode ser belo,
apesar de só.

Basta-lhe o fulgor no mais escalvado da noite
e meninos esbeltos e
gelados no sol.
E uma beleza dificílima. E um cauteloso
azul nas garças abatidas pelo céu.
E um primeiro espanto,
uma primeira alegria nas fendas
em direção
ao pó.


Eduarda Chiote, in 'A Celebração do Pó'


quinta-feira, 18 de julho de 2019

"A Poor Young Shepherd" - Poema de Adília Lopes


John Lavery (1856-1941), The Chess Players, 1929



A Poor Young Shepherd


Fui uma menina demasiado protegida
a minha mãe arrancava o cochicho
aos bonecos de chiar
para eu não o engolir
eu apertava os bonecos de chiar
os bonecos de chiar não faziam barulho
deitavam ar e era tudo
aos gatos de peluche arrancava os bigodes
para eu não me picar
às meninas que vinham brincar comigo
cortava as unhas rentes
para não me arranharem
se estava na aldeia
tapava-me os ouvidos com bolas de cera
para eu não poder ouvir os morteiros
da festa de Santa Úrsula
aos livros da Condessa de Ségur
arrancou as páginas
em que as crianças são chicoteadas
com vergastas pelas madrastas
e aquelas em que o Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
por ela lhe ter feito um arranhão
se me lia contos de fadas
saltava por cima da maçã envenenada da Branca de Neve
e do fuso envenenado da Bela Adormecida
cresci completamente vestida de algodão
porque achava que a lã e as fazendas
me picavam
queria muito ir à praia
mas a minha mãe tinha medo que eu me afogasse
deu-me um búzio
para eu fazer uma ideia
do que era o barulho do mar
e deixou-me chapinhar na banheira
mais tempo do que era costume
também a Veneza não me deixou ir
por dizer que cheirava mal
deu-me uma colecção de estampas
e uma gôndola em miniatura
mas não tão pequena
que se pudesse engolir
da primeira vez que saí de casa
fui atingida por uma bala perdida
em tempos de paz
que duraram pouco
quando ouvi na rádio as rajadas da metralhadora
que certa facção tinha postado
nos estúdios das emissoras regionais
para fingir que havia uma revolução na capital
e assim justificar os fuzilamentos
do dia seguinte
acreditei que essa facção
agia por motivos maternais
ainda hoje as páginas que mais me agradam
são aquelas em que Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
e se falo ao telefone com um namorado
tenho medo de um beijinho como de uma abelha.


Adília Lopes
In: Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000. pp. 114-115


quarta-feira, 17 de julho de 2019

"A um gato" - Poema de Jorge Luis Borges


Wilhelm Friedrich Johann Schwar (German painter, 1860-1943), Good friends


A um gato


Os espelhos não são mais silenciosos
Nem mais furtiva a alba aventureira;
Tu és, sob o luar, essa pantera
Que só vemos de longe, receosos.
Por obra indecifrável de um decreto
De Deus, te procuramos futilmente;
Mais remoto que o Ganges e o poente,
É teu o isolamento mais secreto.
O teu dorso condescende com a morosa
Carícia desta mão. Admitiste,
Desde essa eternidade que é o triste
Esquecimento, o amor da mão medrosa.
Existes noutro tempo. E és o dono
De um domínio fechado como um sono.


Jorge Luis Borges (1899-1986),
in "O Ouro dos Tigres", 1972.
Tradução de
Fernando Pinto do Amaral


Jorge Luis Borges em sua casa com seu gato Beppo. (daqui)


"Não fales a não ser que possas melhorar o silêncio."

(Jorge Luis Borges, O Imortal)


Jorge Luis Borges e o seu gato Beppo (daqui)


"Quem contempla desapaixonadamente, não contempla."

(Jorge Luis Borges)


Jorge Luis Borges e o gato Beppo (daqui)


"Não há prazer mais complexo que o do pensamento."

(Jorge Luis Borges)


Wilhelm  Schwar, Three kittens


"A única coisa sem mistério é a felicidade porque ela se justifica por si só."

(Jorge Luis Borges) 


Wilhelm Schwar, Grey and White Cat


"A natureza é esse belo mistério que nem a psicologia nem a retórica decifram."

(Jorge Luis Borges)


Wilhelm Schwar, Mother with her three kittens
 
 

"Maomé e a Montanha" - Poema de Rosa Alice Branco

Patrick William Adam, Lady Sewing, Date unknown



Maomé e a Montanha


Guardo o mais absoluto segredo
das pedras que rolam no fundo dos leitos
embora nada saiba,
nada ouse saber.
Vou pelo olhar até ao rio,
o rio vem a mim
e ambos caminhamos deslumbrados
para fora de nós.

O cantar da água
corre nos meus olhos exatamente como corre
a manhã
até que o sol a prumo
faz de mim o desenho do rio
que vejo,
o mapa das veias
onde o corpo nasce de novo.

À vinda procuro a minha sombra.
O coração que me há de trazer de volta
demora-se no rio
como se nele corresse
uma sede de olhar.

Os pés colam-se à margem.
Do outro lado as casas vão mudando
de expressão
mais lentamente do que a água corre.
O sol abraça-me pelas costas
e deixa-se escorregar como crianças
que riem,
que não distinguem a voz seca do tempo.

É noite à lareira da casa.
Os objetos acendem-se:
também eles mudam de rosto
como tudo o que é iluminado por amor.
Aproximo-me de longe,
venho do rio,
o rio vem de mim.


Rosa Alice Branco, in 'O Único Traço do Pincel'


terça-feira, 16 de julho de 2019

"Poema natural" - Adalgisa Nery


Joaquín Sorolla y Bastida, The Carob Tree, 1898



Poema natural


Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.


Adalgisa Nery
 In  Poemas, 1937


 

"Canção do Exílio" - Poema de Murilo Mendes


Ismael Nery (Pintor, desenhista, arquiteto, filósofo e poeta brasileiro
 de influência surrealista, 1900–1934), Autorretrato,1927.



Canção do Exílio


Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
 Eu morro sufocado em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!


Murilo Mendes, in 'Poemas', 1930

segunda-feira, 15 de julho de 2019

"Nunca serei vencida" - Poema de Marguerite Yourcenar


Bruno Liljefors (Swedish artist, 1860 –1939), Anna, 1885.



Nunca serei vencida


Nunca serei vencida.
Não o serei
senão à força de vencer.

Cada armadilha estendida
fechando-me cada vez mais
no amor
que acabará por ser o meu
túmulo,
acabarei a minha vida numa cela
de vitórias.

Sozinha,
a derrota encontra chaves,
abre portas.

A morte,
para atingir o fugitivo,
tem de se pôr em movimento,
perder essa fixidez
que nos faz reconhecer
que ela é o duro contrário
da vida.

Ela dá-nos o fim do cisne
atingido em pleno voo,
de Aquiles agarrado pelos cabelos
por não sabermos que sombria Razão.

Como a mulher asfixiada no vestíbulo
da sua casa de Pompeia,
a morte não faz mais do que prolongar
no outro mundo os corredores
da fuga.

A minha morte será
de pedra.

Conheço as passagens,
as curvas,
as armadilhas,
todas as minas da Fatalidade.

Não posso perder-me.

A morte,
para me matar,
terá necessidade da minha
cumplicidade.


Marguerite Yourcenar   
Tradução de Maria da Graça Morais Sarmento

domingo, 14 de julho de 2019

"Domingo no campo" - Poema de Nuno Júdice


Patrick William Adam, The Terrace, Varenna, 1933



Domingo no campo


Aos domingos, quando os sinos tocam
de manhã, o que neles se toca é a manhã,
e todas as manhãs que nessa manhã
se juntam, com os dias da infância que
nunca mais acabavam, as casas da aldeia
de portas abertas para quem passava,
as ruas de terra batida onde as carroças
traziam as coisas do campo, os cães que
corriam atrás delas, uma crença no sol
que parecia ter expulso todas as nuvens
do céu, e a eternidade desses domingos
que ficaram na memória, com o ressoar
dos sinos pelos campos para que todos
soubessem que era domingo, e não havia
domingo sem os sinos tocarem a lembrar,
a cada badalada, que os domingos não
são eternos, e que é preciso viver cada
domingo como se fosse o primeiro, para
que o toque dos sinos não dobre por
quem não sabe que é domingo.


Nuno Júdice


Patrick William Adam, Off to Church, Date unknown


Ressonância

 
Bate breve o gongo.
Na amplidão do templo ecoa
o som lento e longo.

Helena Kolody
(Haicai)

"Naus sem rumo" - Poema de Amílcar Cabral


A Maravilhosa Viagem dos Exploradores Portugueses de Castro Soromenho, 1946


Castro Soromenho é o autor da etnografia 'A Maravilhosa Viagem dos Exploradores Portugueses' (1946). O livro é, ao mesmo tempo, uma tentativa de exposição etnográfica das extensas áreas percorridas por exploradores portugueses e uma evocação histórica dos feitos desses mesmos exploradores. Tem uma bela abertura: «Homens do povo foram às selvas africanas em busca de tesouros, jogando a vida em lances de heróica aventura. O ventre da terra misteriosa não se abriu em partos de oiro e pedras raras, mas mais forte que a realidade, o mistério africano embalou o seu sonho de riqueza. De jornada em jornada, levaram o pavilhão do seu país ao interior do continente, onde os mais audaciosos beberam nas fontes do Nilo».



Naus sem rumo


Dispersas,
emersas,
sozinhas sobre o Oceano …
Sequiosas,
rochosas,
pedaços do Africano,
do negro continente,
as engeitadas filhas,
nossas ilhas,
navegam tristemente …

Qual naus da antiguidade,
qual naus
do velho Portugal,
aquelas que as entradas
do imenso mar abriram …
As naus
que as nossas descobriram.

Ao vento, à tempestade,
navegam
de Cabo Verde as ilhas,
as filhas
do ingente
e negro continente …

São dez as caravelas
em busca do Infinito …
São dez as caravelas,
sem velas,
em busca do Infinito …
A tempestade e ao vento,
caminham …
navegam mansamente
as ilhas,
as filhas
do negro continente …

- Onde ides naus da Fome,
da Morna,
do Sonho,
e da Desgraça? …

- Onde ides? …

Sem rumo e sem ter fito,
Sozinhas,
dispersas,
emersas,
nós vamos
sonhando,
sofrendo,
em busca do Infinito! …


Amílcar Cabral 

 

sábado, 13 de julho de 2019

"Risos" - Poema de Casimiro de Abreu



Simon Glücklich (1863 - 1943), Children on a meadow in blossom



Risos


Ri, criança, a vida é curta,
O sonho dura um instante.
Depois... o cipreste esguio
Mostra a cova ao viandante!

A vida é triste — quem nega?
— Nem vale a pena dizê-lo.
Deus a parte entre seus dedos
Qual um fio de cabelo!

Como o dia, a nossa vida
Na aurora é — toda venturas,
De tarde — doce tristeza,
De noite — sombras escuras!

A velhice tem gemidos,
— A dor das visões passadas —
A mocidade — queixumes,
Só a infância tem risadas!

Ri, criança, a vida é curta,
O sonho dura um instante.
Depois... o cipreste esguio
Mostra a cova ao viandante!


Rio, 1858

sexta-feira, 5 de julho de 2019

"Recordamo-nos dos nossos sonhos" - Poema de Marguerite Yourcenar


Anton Raphael Mengs,"Diana as Personification of the Night", 1765



Recordamo-nos dos nossos sonhos


Recordamo-nos dos nossos sonhos:
não nos recordamos dos nossos sonos.

Apenas duas vezes penetrei nesses fundos
atravessados por correntes
onde os nossos sonhos
não são mais do que embarcações
de realidades submersas.

No outro dia,
bêbado de felicidade
como se fica bêbado de ar
no final de uma longa corrida,
atirei-me para a cama,
como um nadador
que se atira de costas,
os braços cruzados:
mergulhei num mar azul.

Encostado ao abismo
como uma nadadora que nada com prancha,
sustentada pela bóia de oxigénio
dos meus pulmões cheios de ar,
emergia desse mar grego
como uma ilha recém-nascida.

Esta noite,
bêbada de desgosto,
deixo-me cair sobre a cama
com os gestos de uma afogada
que se abandona:
cedo ao sono como à asfixia.

As correntes de recordações persistem
através do embrutecimento noturno,
levam-me para uma espécie de lago Asfáltico.

Não há forma
de mergulhar nessa água saturada de sais,
amarga como a secreção das pálpebras.

Flutuo como a múmia sobre o seu betume,
na apreensão de um acordar
que será no máximo uma sobrevivência.

O fluxo,
depois o refluxo do sono
fazem-me rebolar contra minha vontade
nessa praia de cambraia.

A cada momento,
os meus joelhos batem um no outro
à tua lembrança.

O frio acorda-me,
como se me tivesse deitado
ao lado de um morto.


Marguerite Yourcenar,
in Fogos
Trad. de Maria da Graça Morais Sarmento


quinta-feira, 4 de julho de 2019

"A Casa" - Poema de Mia Couto


Patrick William Adam, A lady in pink, 1899



A Casa


Confesso:
Quando a olhei
eu apenas queria,
em sua boca,
a água onde começa a vida.

E fui num murmúrio:
preciso do teu fogo
para não morrer.
Ela, então,
sussurrou o convite:
vem a minha casa.

No caminho,
porém,
recusou meu braço,
esfriou o meu alento.
E corrigiu-me assim o intento:
não te quero corpo,
nem quero o fogo do leito,
nem o frio do adeus.

Suave murmurou:
levo-te,
homem,
a minha casa
para aprenderes a ser mulher.
Que nenhum outro fim
a casa tem. 


Mia Couto, “Vagas e Lumes”
 Editorial Caminho.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

"Esperanças de um vão contentamento" - Poema de Marquesa de Alorna


Jules Breton (1827-1906), Young Women Going to a Procession, 1890 
 
 

Esperanças de um vão contentamento


Esperanças de um vão contentamento,
por meu mal tantos anos conservadas,
é tempo de perder-vos, já que ousadas
abusastes de um longo sofrimento.

Fugi; cá ficará meu pensamento
meditando nas horas malogradas,
e das tristes, presentes e passadas,
farei para as futuras argumento.

Já não me iludirá um doce engano,
que trocarei ligeiras fantasias
em pesadas razões do desengano.

E tu, sacra Virtude, que anuncias,
a quem te logra, o gosto soberano,
vem dominar o resto dos meus dias.


Marquesa de Alorna
(Leonor de Almeida Portugal),
in 'Antologia Poética'


Jules Breton (1827-1906), Le pardon de Kergoat en Quéménéven, 1891


"A fé é a mais elevada paixão de todos os homens."


(Søren Kierkegaard)

terça-feira, 2 de julho de 2019

"Mãe, agora que guardaste na arca" - Poema de Maria do Rosário Pedreira


Seymour Joseph Guy, The Contest for the Bouquet, 1866
(also known as The Family of Robert Gordon in Their New York Dining-Room) 




Mãe, agora que guardaste na arca


Mãe, agora que guardaste na arca
as blusas pretas e os teus olhos
voltaram a ser azuis; que os meus
irmãos dormem no seu quarto um
sono de poderem ser felizes, que

já conseguimos dizer uma à outra
o nome dele no meio de um sorriso
porque a morte, afinal, é uma coisa
tão longe – deixa-me perguntar-te

porque não há retratos do meu pai
comigo ao colo, como os dos meus
irmãos que ele trazia sempre junto
ao peito e tu depois dividiste pela
casa para ele poder saber que ainda

te lembravas; ou então debruçado
no meu berço – que tu escondeste
no sótão ainda eu era pequena e te
sentavas a embalar vazio quando ele
não entendia porque estavas tão
triste. Mãe, eram tão azuis os olhos

do meu pai no dia em que levou os
meus irmãos à escola e tinham tanto
medo do que pudesse acontecer-lhes;
são tão azuis também os olhos deles
debaixo do seu sono, e os meus tão

negros de dúvidas – porque foste
sempre tu que me levaste sozinha
para as coisas difíceis da minha vida,
que o meu pai nem nunca quis saber
que coisas eram. Mãe, estão hoje tão

azuis os teus olhos com essas roupas
claras, e eu ainda tenho o nome do
meu pai entre as minhas lágrimas, mas
agora, que os meus irmãos descansam

no seu quarto, que já todos podemos
dizer o nome dele sem nos cortar os
lábios, diz-me a verdade: esse homem
que chorámos era mesmo meu pai?


Maria do Rosário Pedreira


segunda-feira, 1 de julho de 2019

"Maio de minha Mãe" - Poema de Vitorino Nemésio


Jules Breton, La fête du grand père, 1864



Maio de minha Mãe


 O primeiro de Maio de minha Mãe
Não era social, mas de favas e giestas.
Uma cadeira de pau, flor dos dedos do Avô
— Polimento, esquadria, engrade, olhá-la ao longe —
Dava assento a Florália, o meu primeiro amor.

Já não se usa poesia descritiva,
Mas como hei de falar da Maromba de Maio
Ou, se era macho, do litro de vinho na sua mão?
O primeiro de Maio nas Ilhas, morno como uma rosa,
Algodoado de cúmulos, lento no mar e rapioqueiro
Como Baco em Camões,
Límpido de azeviche
E, afinal de contas, do ponto de vista proletário,
Mais de mãos na algibeira do que Lenine em Zurich.
(Porque foi por esta época: eu é que não sabia!)

A minha Maromba tinha barriga de palha como as massas
E a foice roçadoira da erva das cabras do Ribeiro
Que se pegou, esquecida, no banco do martelo de meu Avô
Cujas quedas iguais, gravíficas, profundas

Muito prego em cunhal deixaram,
Muita madeira emalhetaram,
Muita estrela atraíram ao bico da foice do Ribeiro
Nas noites de luar em que roçava erva às cabras.
Favas de Maio do meu tempo!
Havia poder popular
Nas mãos de minha mãe, que as descascava como flores
E flores eram de si, na flórea abada
Como se já guardassem flor de laranjeira e açaflor
Nas suas intenções de Maio 1918, para as depor
(Nem pensada sequer) na fronte à minha amada. 


Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas, 1938