domingo, 22 de maio de 2022

"Poema à Duração" - Peter Handke


 Isaac Oliver (c. 1565-1617, English portrait miniature painter),
 
 
 
Poema à Duração

 
Há já muito tempo que pretendo escrever sobre a duração,
não um ensaio, uma peça de teatro ou uma história —
a duração exige a poesia.
Quero interrogar-me num poema,
lembrar-me num poema,
afirmar e conservar num poema
o que é a duração.

A duração é algo que já tantas vezes senti,
nos prenúncios da Primavera na Fontaine Sainte-Marie,
na brisa noturna da Porte d’Auteuil,
ao sol estival da região do Karst,
a caminho de casa, às primeiras horas da madrugada, 
após uma comunhão com o meu ser.

Essa duração o que foi?
Foi um espaço de tempo?
Algo de mensurável? Uma certeza?
Não, a duração foi um sentimento,
o mais fugidio de todos os sentimentos,
que passa muitas vezes mais depressa que um instante,
imprevisível, impossível de dirigir,
impalpável, imensurável.
E, no entanto, teria podido, com a sua ajuda,
rir-me para qualquer adversário e desarmá-lo,
fosse ele qual fosse,
teria transformado a opinião
de que sou uma pessoa má
na convicção profunda:
«Ele é bom!»,
e, se houvesse um deus,
o sentimento da duração seria há muito seu filho.

Ainda ontem ouvi na Waagplatz, em Salzburgo,
no acotovelar e no tumulto do longo dia de compras,
uma voz que, como se viesse do limite distante da cidade,
chamava o meu nome,
compreendi nesse mesmo momento
que, no «stand» do mercado, me tinha esquecido
do texto da Wiederholung,
que trazia comigo para ir ao correio,
ouvi, ao voltar atrás, aquela outra voz
que há um quarto de século,
no silêncio noturno de um bairro periférico de Graz,
do limite distante da longa rua direita e vazia,
igualmente solícita, como se descesse lá do alto, veio ao meu encontro,
e consegui definir nessa altura o sentimento da duração
como um acontecimento do ato de escutar,
do ato de compreender,
de ser abraçado,
de ser envolvido,
por o quê?, por um outro sol,
por um vento refrescante,
por um brando acorde feito de silêncio,
que leva à união e à perfeita sintonia de todas as dissonâncias.

«Prolonga-se por dias, dura anos»:
Goethe, meu herói
e mestre da expressão simples e prática,
mais uma vez acertaste:
a duração tem a ver com os anos,
com as décadas, com o nosso tempo de vida;
a duração é o sentimento da vida.

Não será talvez necessário dizer
que não resulta qualquer duração
das catástrofes diárias,
das adversidades que se repetem,
dos combates que se reacendem,
da contagem das vítimas.

O comboio, como habitualmente, atrasado,
o automóvel que uma vez mais te suja
com a lama das poças de água,
o polícia de bigode
— em vez do que lá estava ontem, bem barbeado —,
que te acena com um dedo do outro lado da rua,
o fétido e horrível cogumelo que, todos os anos,
volta a aparecer noutro ponto da densa vegetação do jardim,
o cão do vizinho, que todas as manhãs te rosna,
as frieiras das crianças que, todos os invernos, voltam a dar comichão,
os terríveis sonhos, sempre iguais,
da perda da amada,
o ato súbito e eterno de se ficar estranho um ao outro
entre dois hálitos,
a mísera sensação do regresso ao país natal
após as viagens à descoberta do mundo,
aquelas miríades de mortes antecipadas
de noite, antes do primeiro pipilar dos pássaros,
a notícia diária de um atentado transmitida na rádio,
a criança diariamente atropelada no caminho da escola,
todos os dias os olhares irritados do desconhecido:
nada disto desaparece
— nunca desaparecerá, nunca há de acabar —,
mas não tem poder de duração,
não irradia o calor da duração,
não oferece o consolo da duração.

Necessário é, porém, reconhecer:
não são também «os espantosos prodígios do momento
que produzem o que dura e torna feliz,
numa profunda sensação de serenidade».

Hubert e Felix, quando, no Verão passado,
velejávamos ao longo da costa da Turquia,
ancorámos numa pequena enseada
e fomos a terra no barco pneumático.
Como sempre aconteceu durante as duas semanas,
era um dia límpido, quente, com uma brisa ligeira,
e nós seguimos, pela crista de uma colina, até à enseada vizinha.
No caminho fui colhendo salva silvestre e hortelã,
com que depois o Felix, o infantil mestre-cozinheiro,
temperou o lavagante, ao regressarmos ao barco.
 
1986
(Nobel de Literatura de 2019)
Tradução de José A. Palma Caetano 
 
 
Poema à Duração de Peter Handke
 

 A 28 de novembro de 2019, a Assírio & Alvim publicou uma nova edição de Poema à Duração, do vencedor do Prémio Nobel de Literatura de 2019 Peter Handke. Há muito esgotada, esta edição bilingue do longo e belo poema do autor austríaco conta com tradução de José A. Palma Caetano, que assina também a introdução.
«O título, Gedicht an die Dauer (Poema à Duração), indicia já um tema pouco vulgar e implica uma reflexão que, para além de poética e do que se refere à realidade do poeta, não deixa de entrar também no domínio da filosofia. [...] No seu poema, Handke procura indagar em que condições o tempo foi para ele uma sensação de continuidade, algo que não se esgotou num momento, mesmo de felicidade, mas a que lhe foi possível regressar, sempre que condições idênticas, não as mesmas, se verificaram. A duração é, por isso, um produto da sua experiência, um sentimento que se baseia na repetição de certos atos, que assim ganham continuidade e permitem uma identificação do próprio «eu». A duração representa uma comunhão consigo próprio, a descoberta do seu próprio ser», diz-nos José A. Palma Caetano sobre este poema de forte caráter filosófico, que reflete sobre o sentido da duração: ela está nos momentos quotidianos, na repetição e na renovação, em tudo o que é transitório, nas pequenas e nas grandes coisas – e sobretudo no amor. (daqui)
 
 
 Isaac Oliver, The Three Brothers Brown (portrait of Anthony-Maria Browne flanked by his brothers
 John and William, with an unknown fourth man entering), 1598, Burghley House


"A história carece de vida a menos que lhe proporciones um lugar na tua consciência."

J. M. Coetzee,
 'Diary of a Bad Year', 2007 (Diário de um Ano Ruim)
(Nobel de Literatura de 2003)
 
 

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