Manuel Henrique Pinto (1853-1912, pintor do primeiro Naturalismo português), "A caça aos grilos", 1891
Miudádivas, pensatempos
(Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias)
Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flor. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é a minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia.
Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e dispares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas ao poeta:
A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
Adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.
Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.
Uma mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que rouba mecanismos de viver.
Formigas transportam infinitamente a terra.
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?
Insetos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total inicio,
redundante gravidez do mundo.
Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.
Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo
Só a coruja atrapalha a eternidade.
Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças da minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.
Escuto, depois a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa à margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cega para razões.
Sei só escrever palavras que não há.
Depois, o sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras, me habilito a chão, o desfuturo.
Lisboa: Editorial Caminho, 2009.
"Aprendi com meu filho quando ele tinha 5 anos que a linguagem das crianças funciona melhor para a poesia. Meu filho falou um dia: “Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele”. Mas o canto não tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou: “É o impossível verossímil”. Pois não tem disso a poesia?"
Manoel de Barros, em 'entrevista' concedida a Bosco Martins, Cláudia Trimarco e Douglas Diegues,
Revista Caros Amigos - ed. nº 117 - 2008. (daqui)
Manuel Henrique Pinto (1853-1912),
em Diário Ilustrado, 13 de Fev, 1886.
Biografia de Manuel Henrique Pinto
Manuel Henrique Pinto foi um pintor do Naturalismo. Com José Malhoa descobre o «Figueiró das Cores», com ele inicia a dita «odisseia rústica». Nascido em Cacilhas a 15 de Março de 1853. Cursou a Academia de Belas-Artes de Lisboa, onde foi discípulo de Joaquim Gregório Prieto (1833 – 1907), Tomás José da Anunciação (1818 – 1879) e José Simões de Almeida (1844 – 1926).
Expõe pela primeira vez na 10ª Exposição da Sociedade Promotora das Belas Artes (1874) três "Paysagens" tiradas da outra banda. E participa nos Concursos para Pensionista no Estrangeiro de 1874 e 1875 com os resultados conhecidos: a anulação dos mesmos. Só voltará a expor em 1880. Presente nas três últimas exposições da Promotora, recebe medalha de 3ª classe com distinção em 1884.
Pelos mesmos anos iniciam-se as Exposições de Quadros Modernos do Grupo do Leão, regulares entre 1881 e 1888/89. Henrique Pinto participa em todas elas, assiduidade só partilhada por Ribeiro Cristino, Malhoa, Silva Porto e João Vaz. No quadro de Columbano, Grupo do Leão, 1885, lá o encontramos abancado à cabeceira da mesa, dando a direita a Malhoa e a esquerda a João Vaz, os grandes amigos das jornadas «ar-livristas» e cuja relação nunca se perderá.
Pelos mesmos anos iniciam-se as Exposições de Quadros Modernos do Grupo do Leão, regulares entre 1881 e 1888/89. Henrique Pinto participa em todas elas, assiduidade só partilhada por Ribeiro Cristino, Malhoa, Silva Porto e João Vaz. No quadro de Columbano, Grupo do Leão, 1885, lá o encontramos abancado à cabeceira da mesa, dando a direita a Malhoa e a esquerda a João Vaz, os grandes amigos das jornadas «ar-livristas» e cuja relação nunca se perderá.
M. Henrique Pinto participa na Exposição Industrial de 1888, medalha de cobre, com "Paizagem no Alentejo" e mais três quadrinhos de Portalegre.
Na década seguinte, já em Tomar, é um dos Sócios Fundadores Correspondentes do Grémio Artístico. Participa em oito das nove exposições organizadas pelo Grémio entre 1891 e 1899. "A Caça dos Taralhões", pintada em Figueiró, faz sucesso logo na mostra inicial. E com "Adormecido", 1891, recebe a terceira medalha na 2ª do Grémio (1892), a primeira onde são atribuídos prémios.
À Exposição Universal de Paris (1900) envia "A Ceia", menção honrosa, tela desaparecida no naufrágio do regresso.
Com o virar do século, como Sócio Fundador Correspondente da Sociedade Nacional de Belas-Artes estará presente em todas as exposições até à data da sua morte. Segunda medalha na 3ª da SNBA (1903), com "Dar de Comer aos que Têm Fome", 1902 - depois conhecido como "O Almoço". É de novo galardoado na mostra seguinte com nova segunda medalha (1904), ano em que não são conferidos prémios mais elevados, quando apresenta "As Velhas (do Café)", "O Pífaro Novo" e "Pescadores do Nabão", entre outros trabalhos.
Na Exposição Nacional no Rio de Janeiro (1908) recebe a medalha de ouro.
A par da pintura, M. Henrique Pinto abraça a vida de Professor do novo Ensino Industrial, como alguns dos seus amigos do Leão. Logo em 1884 vai para Portalegre organizar a abertura da Escola Fradesso da Silveira. Transfere-se para Tomar em 1888, ocupando durante mais de duas décadas o lugar de Diretor da Escola Jacôme Ratton. Com a República vai para Lisboa para a Escola Marquês de Pombal, nomeado Diretor, não chega a tomar posse do cargo.
Morre a 26 de Setembro de 1912, ao fim de mais um verão em Figueiró dos Vinhos.
No ano seguinte, na 10ª Exposição da SNBA, perto de duas dezenas de quadros seus são de novo mostrados - «sendo destinado um lugar especial aos trabalhos do saudoso amigo» - conforme palavras sentidas de João Vaz. (Daqui)
No ano seguinte, na 10ª Exposição da SNBA, perto de duas dezenas de quadros seus são de novo mostrados - «sendo destinado um lugar especial aos trabalhos do saudoso amigo» - conforme palavras sentidas de João Vaz. (Daqui)
"Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei."
em entrevista concedida a José Castello. Jornal O Estado de São Paulo, em agosto de 1996.
"No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Pois minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver."
Manoel de Barros, em carta a José Castello,
publicado no Jornal Valor Económico, em 18 mar. 2012. daqui)
2 comentários:
Vir aqui, hoje, iluminou o meu dia.
Bem haja, gostei muito do que vi e li.
Boa noite Moedas Duarte!
Muito obrigada pela visita ao blog e pelo comentário.
Bem haja!
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