segunda-feira, 18 de maio de 2020

"Canção fraterna" - Poema de Noémia de Sousa


William Aiken Walker (1839–1921), Cotton Pickers



Canção fraterna


Irmão negro de voz quente
o olhar magoado,
diz‑me:
Que séculos de escravidão
geraram tua voz dolente?
Quem pôs o mistério e a dor
em cada palavra tua?
E a humilde resignação
na tua triste canção?

Foi ávida? o desespero? o medo?
Diz‑me aqui, em segredo,
irmão negro.

Porque a tua canção é sofrimento
e a tua voz sentimento
e magia.
Há nela a nostalgia
da liberdade perdida,
a morte das emoções proibidas,
e a saudade de tudo que foi teu
e já não é.

Diz‑me, irmão negro,
Quem fez a vida assim...
Foi a vida? o desespero? o medo?

Mas mesmo encadeado, irmão,
que estranho feitiço o teu!
A tua voz dolente chorou
de dor e saudade,
gritou de escravidão e veio murmurar
 à minha em alma ferida
que a tua triste canção dorida
não é só tua, irmão de voz de veludo
e olhos de luar.
Veio, de manso murmurar

que a tua canção é minha


Noémia de Sousa, em "Sangue negro".
 Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001, p. 74-75.


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