domingo, 17 de maio de 2020

"Passagem" - Poema de Manuel António Pina


Patrick William Adam On the Quai des Célestins, 1910



Passagem


Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?

Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?

Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós
como diremos ainda margens e diremos rios?


Manuel António Pina
 ed. Assírio & Alvim



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