sábado, 9 de maio de 2020

"Que noite serena" - Poema de Álvaro de Campos


Edward Brian Seago  (1910–1974), Sunset, Yarmouth, Norfolk,
 Norfolk Museums Service 




Que noite serena!


Que noite serena!
Que lindo luar!
Que linda barquinha
Bailando no mar!

Suave, todo o passado — o que foi aqui de Lisboa — me surge...
O terceiro-andar das tias, o sossego de outrora,
Sossego de várias espécies,
A infância sem o futuro pensado,
O ruído aparentemente contínuo da máquina de costura delas,
E tudo bom e a horas,
De um bem e de um a-horas próprio, hoje morto.

Meu Deus, que fiz eu da vida?

Que noite serena, etc.

Quem é que cantava isso?
Isso estava lá.
Lembro-me mas esqueço.
E dói, dói, dói...

Por amor de Deus, parem com isso dentro da minha cabeça.


Álvaro de Campos 

 (Heterónimo de Fernando Pessoa)


Edward Seago, The Red Buoy, Pin Mill 



Meu bem


A noite não é uma vela
negra e sem lume,
não é um cacho de uvas
sombrio no parreiral.

Não é aquela borboleta
com asas escuras na mata,
menos ainda é um túmulo
com estrelas douradas.

A noite é, meu bem,
só a origem da claridade.


Deborah Brennand,
em "Poesia reunida", 2007


Edward Seago, Marsh Country Norfolk



Sempre algumas léguas restam


Em todos os sítios
o vento arranca as folhas secas.

Assim, também é certo
a cerca, mesmo caindo, seguir a terra.

Só o rio desata nós de água
em ramalhetes de pedra.

E sempre algumas léguas restam
para chegar ou partir

na claridade dispersa.


Deborah Brennand,
em "Poesia reunida", 2007


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