domingo, 24 de maio de 2020

"Se me quiseres conhecer" - Poema de Noémia de Sousa



Se me quiseres conhecer,
estuda com olhos de bem ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.

Ah, essa sou eu:
órbitas vazias no desespero de possuir vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enorme, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
Torturada e magnífica,
altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
– ah, essa sou eu!

Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre a minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na estranha melancolia se evolando...
duma canção nativa, noite dentro...

E nada mais me perguntes,
se é que me queres conhecer...
Que eu não sou mais que um búzio de carne,
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.


Noémia de Sousa,
In notícias, 07.03.1958, página “Moçambique 58”


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