terça-feira, 1 de novembro de 2016

"Responso" - Poema de Cesário Verde


Auguste Toulmouche (1829-1890), The lost love, c. 1870



Responso

Num castelo deserto e solitário, 
Toda de preto, às horas silenciosas, 
Envolve-se nas pregas dum sudário 
E chora como as grandes criminosas. 

Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas 
Em que ela esconde as lágrimas singelas. 

II 
É loura como as doces escocesas, 
Duma beleza ideal, quase indecisa; 
Circunda-se de luto e de tristezas 
E excede a melancólica Artemisa. 

Fosse eu os seus vestidos afogados 
E havia de escutar-lhe os seu pecados. 

III 
Alta noite, os planetas argentados 
Deslizam um olhar macio e vago 
Nos seus olhos de pranto marejados 
E nas águas mansíssimas do lago. 

Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna, 
E faria que a noite fosse eterna. 

IV 
E os abutres e os corvos fazem giros 
De roda das ameias e dos pegos, 
E nas salas ressoam uns suspiros 
Dolentes como as súplicas dos cegos. 

Fosse eu aquelas aves de pilhagem 
E cercara-lhe a fronte, em homenagem. 

E ela vaga nas praias rumorosas, 
Triste como as rainhas destronadas, 
A contemplar as gôndolas airosas, 
Que passam, a giorno iluminadas. 

Pudesse eu ser o rude gondoleiro 
E ali é que fizera o meu cruzeiro. 

VI 
De dia, entre os veludos e entre as sedas, 
Murmurando palavras aflitivas, 
Vagueia nas umbrosas alamedas 
E acarinha, de leve, as sensitivas. 

Fosse eu aquelas árvores frondosas, 
E prendera-lhe as roupas vaporosas. 

VII 
Ou domina, a rezar, no pavimento 
Da capela onde outrora se ouviu missa, 
A música dulcíssima do vento 
E o sussurro do mar, que se espreguiça. 

Pudesse eu ser o mar e os meus desejos 
Eram ir borrifar-lhe os pés, com beijos. 

VIII 
E às horas do crepúsculo saudosas, 
Nos parques com tapetes cultivados, 
Quando ela passa curvam-se amorosas 
As estátuas dos seus antepassados. 

Fosse eu também granito e a minha vida 
Era vê-la a chorar arrependida. 

IX 
No palácio isolado como um monge, 
Erram as velhas almas dos precitos, 
E nas noites de inverno ouvem-se ao longe 
Os lamentos dos náufragos aflitos. 

Pudesse eu ter também uma procela 
E as lentas agonias ao pé dela! 

E às lajes, no silêncio dos mosteiros, 
Ela conta o seu drama negregado, 
E o vasto carmesim dos reposteiros 
Ondula como um mar ensanguentado. 

Fossem aquelas mil tapeçarias 
Nossas mortalhas quentes e sombrias. 

XI 
E assim passa, chorando, as noites belas, 
Sonhando uns tristes sonhos doloridos, 
E a refletir nas góticas janelas 
As estrelas dos céus desconhecidos. 

Pudesse eu ir sonhar também contigo 
E ter as mesmas pedras no jazigo! 

XII 
Mergulha-se em angústias lacrimosas 
Nos ermos dum castelo abandonado, 
E as próximas florestas tenebrosas 
Repercutem um choro amargurado. 

Uníssemos, nós dois, as nossas covas, 
Ó doce castelã das minhas trovas! 


in 'O Livro de Cesário Verde'


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