sexta-feira, 4 de novembro de 2016

"Possuir-te é gozar de um tesouro infinito" - Texto de Almeida Garrett, in 'Carta a Rosa Barreiras'


Domenico Induno (italian,1815-1878), Woman before a mirror, 1870 



Possuir-te é gozar de um tesouro infinito


"Que suprema felicidade foi hoje a minha, querida desta alma! Como tu estavas, linda, terna, amante, encantadora! Nunca te vi assim, nunca me pareceste tão bela! Que deliciosa variedade há em ti, minha Rosa adorada! Possuir-te é gozar de um tesouro infinito, em esgotável. Juro-te que já não tenho mérito em te ser fiel, em te protestar e guardar esta lealdade exclusiva que te hei de consagrar até ao último instante da minha vida: não tenho mérito algum nisso. Depois de ti, toda a mulher é impossível para mim, que antes de ti não conheci nenhuma que me pudesse fixar.
E o que eu te estimo e aprecio além disso. A ternura de alma verdadeira que tenho por ti. Onde estavam no meu coração estes afetos que nunca senti, que só tu despertaste e que dão à minha alma um bem-estar tão suave? Realmente que te devo muito, que me fizeste melhor, outro do que nunca fui. O que sinto por ti é inexplicável. Bem me dizias tu que em te conhecendo te havia de adorar deveras. É certo, assim foi, e estou agora seguro deste amor, porque repousa em bases tão sólidas que já nada creio que o possa destruir. Deixaste-me hoje num estado de felicidade tal, com tanta serenidade no coração, que não creio em toda a minha vida que ainda tivesse um dia assim. A minha imaginação foi exaltada, tão difícil, nunca foi além das doces realidades que tu me fazes experimentar.
Tinha desesperado de encontrar a mulher que Deus formara à minha semelhança – achei-a em ti, e já não desejo a vida senão para gozar contigo e para me arrepender a teus pés do mal que fiz, do tempo que perdi, do que te roubei da minha existência para o mal empregar nas misérias de que me tenho querido ocupar. Digo – que me tenho querido, porque não consegui nunca: o meu espírito rebelava-se, o meu coração ficava indiferente, nunca foram de ninguém senão teus. Não penses que exagero: por Deus te juro que assim é, e que me podes crer: eu a ninguém amei, a ninguém hei de amar senão a ti."


Almeida Garrett , in 'Carta a Rosa Barreiras (Viscondessa da Luz)'




Cartas de Amor à Viscondessa da Luz 
de 
Almeida Garrett


Sinopse

O final da primeira metade do século XIX marca o encontro de Almeida Garrett com Rosa Montufar Barreiros, mulher de estonteante beleza, esposa do oficial do exército Joaquim António Vélez Barreiros, homem de confiança da rainha de Portugal, D. Maria II, Barão e depois Visconde de Nossa Senhora da Luz.

Após a morte de Garrett, em 1854, persistem os rumores de que parte das cartas de amor trocadas entre Garrett e Rosa, a Viscondessa da Luz, teria escapado à destruição. Porém, só cem anos depois, em 1954, o açoriano José Bruno Carreiro conseguirá publicar a única edição (portuguesa) feita até hoje das vinte e duas cartas restantes de uma vasta e inflamada correspondência. Os manuscritos integravam, não se sabe como, o acervo do bibliófilo José do Canto, e, após sua morte (em 1898), foram parar à Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (Açores). Rara é a carta que não é escrita com linhas atravessadas umas sobre as outras em sentido vertical e horizontal, o que sem dúvida pode ser lido como um código singularíssimo de comunicação entre os amantes.

Identificado com a Liberdade e com o Cristianismo, ideais dominantes em toda a sua obra, Garrett desdobra-se entre o homem político e o homem das letras. Exilado três vezes, ele desafia o regime absolutista e, ainda, depois, em luta constante pelo aprimoramento da monarquia constitucional, manterá sempre firme a mão que o atava à literatura. Mas será noutro campo que o escritor irá travar a batalha essencial. A encruzilhada é precisa: entre a cruz do desejo sexual e a luz do amor, o homem descobre-se atravessado pela contingência do encontro com uma mulher.

É com estes elementos que Sérgio Nazar David dá um novo contorno a esta edição das Cartas de Amor à Viscondessa da Luz. Faz com que, pela primeira vez, o texto das cartas retorne com fidelidade ao que está nos manuscritos da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, e ainda abre uma instigante possibilidade de leitura aos interessados pelo eterno tema do amor.

Deixando-se conduzir pela firmeza do texto introdutório e pela precisão das notas, o leitor poderá descobrir, através do bordado fino tecido nestas cartas, que se por um lado Garrett não sucumbe diante da moral da época, por outro não escapa do drama particular vivido por todo homem marcado pela inquietude do desejo sexual e pela busca de pacificação através do amor.  (Daqui)

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