domingo, 31 de outubro de 2021

"Esperança" - Poema de Almada Negreiros


A Engomadeira, 1938. Óleo sobre tela. 50 x 40 cm. 
Coleção particular (daqui)
 
 

Esperança


Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente,
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.

Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança. 
 
 
 
 
 
 
"A esperança seria a maior das forças humanas, se não existisse o desespero." 
 
 
 

sábado, 30 de outubro de 2021

"EX/PLICAÇÃO" - Poema de Haroldo de Campos


László Moholy-Nagy (1895–1946), Z VII, 1926. Constructivism (art) 
 


EX/PLICAÇÃO


não há um
sentido único
num
poema

quando alguém
começa a ex-
plicá-lo e
chega ao fim
en-
tão só fica o
ex
do ponto de
partida

beco

(tente outra
vez)

sem saída


Haroldo de Campos,
In A Educação dos Cinco Sentidos
Editora Brasiliense, São Paulo, 1985
 
 
Haroldo de Campos - foto de German Lorca
(Daqui)
 

Sendo um dos mais importantes poetas e teóricos da vanguarda brasileira, Haroldo de Campos, nascido a 20 de agosto de 1929, revelou o seu talento poético muito cedo. Ainda adolescente, publicou alguns textos na Revista Brasileira de Poesia e nos suplementos literários da imprensa de S. Paulo. Senhor de uma cultura poética e de conhecimentos em geral surpreendentes, o autor figura entre aqueles que melhor representam a nova poesia brasileira (sendo, aliás, um dos responsáveis pelo surgimento da corrente concretista no país), através de obras como Auto do Possesso (1950), Antologia de Poemas (1962) e Xadrez de Estrelas (1975).
Por outro lado, os seus livros teóricos refletem a sua vertente de crítico e ensaísta, tratando com reconhecida originalidade os problemas da produção textual de vanguarda e da reflexão metalinguística. De entre as suas obras críticas, destacam-se as publicações A Arte no Horizonte do Provável (1969), Metalinguagem (Ensaios de Teoria e Crítica Literária) (1976), Teoria da Poesia Concreta (escrita com seu irmão Augusto de Campos, 1964), Sousândrade - Poesia (com Augusto de Campos, 1966) e Morfologia do Macunaíma (1972).
Destacam-se também as múltiplas traduções que assinou (feitas por vezes de parceria com Augusto de Campos), de autores como Dante, James Joyce e Ezra Pound, que constituem, a um tempo, interessantíssimos exercícios de (re)criação poética e importantes trabalhos de divulgação literária.
Haroldo de Campos faleceu a 16 de agosto de 2003.
(daqui)
 
 
László Moholy-Nagy, Construction A L6, 1933-34
 
 
 
"Assim, temos na câmara fotográfica a ajuda mais confiável para um começo de visão objetiva."

 
 
László Moholy-Nagy (daqui)
 

László Moholy-Nagy (Bácsborsód, Hungria, 20 de julho de 1895 — Chicago, 24 de novembro de 1946) nascido László Weisz) foi um pintor e artista húngaro bem como professor na escola Bauhaus. 
Ele foi altamente influenciado pelo construtivismo e um forte defensor da integração da tecnologia e da indústria nas artes. 
O crítico de arte Peter Schjeldahl chamou-o de "implacavelmente experimental" por causa de seu trabalho pioneiro em pintura, desenho, fotografia, colagem, escultura, filme, teatro e escrita.
Ele também trabalhou em colaboração com outros artistas, incluindo sua primeira esposa Lucia Moholy, Walter Gropius, Marcel Breuer e Herbert Bayer.
Sua maior realização pode ser a School of Design em Chicago, que sobrevive hoje como parte do Illinois Institute of Technology, que a historiadora de arte Elizabeth Siegel chamou de "sua obra de arte abrangente". Ele também escreveu livros e artigos defendendo um tipo utópico de alto modernismo. (daqui)
 
 
László Moholy-Nagy, A 19, 1927


Construtivismo


O Construtivismo russo foi um movimento estético-político iniciado na Rússia a partir de 1913, como parte do contexto dos movimentos de vanguarda no país, de forte influência na arquitetura e na arte ocidental. Ele negava uma "arte pura" e procurava abolir a ideia de que a arte é um elemento especial da criação humana, separada do mundo quotidiano. A arte, inspirada pelas novas conquistas do revolucionário Estado Operário, deveria se inspirar nas novas perspetivas abertas pelas técnicas e materiais modernos servindo a objetivos sociais e a construção de um mundo socialista. O termo arte construtivista foi introduzido pela primeira vez por Malevich para descrever o trabalho de Rodchenko em 1917.

O construtivismo como movimento ativo durou até 1934, tanto na União Soviética como na República de Weimar, as suas proposições inovadoras influenciam fortemente toda a arte moderna. A partir do Congresso dos Escritores de 1934 a única forma de arte admitida na URSS seria o Realismo socialista e todas as outras tendências artísticas durante o Stalinismo seriam consideradas formalistas.

Caracterizou-se, de forma bastante genérica, pela utilização constante de elementos geométricos, cores primárias, fotomontagem e a tipografia sem serifa. O construtivismo teve influência profunda na arte moderna e no design moderno e está inserido no contexto das vanguardas estéticas europeias do início do século XX. (São considerados manifestações influenciadas pelo construtivismo o De Stijl, a Bauhaus, o suprematismo, assim como grande parte da vanguarda russa).

Do ponto de vista das artes plásticas, usando uma aceção mais ampla da palavra, toda a arte abstrata geométrica do período (décadas de 1920, 30 e 40 ( pode ser grosseiramente chamada de construtivista (o que inclui as experiências artísticas na Bauhaus, o neoplasticismo e outros movimentos similares). No teatro, um de seus principais nomes foi o diretor teatral Meierhold, no cinema o grande nome foi Eisenstein, com suas teorias sobre a montagem cinematográfica. Um grande poeta, considerado construtivista, foi o russo Nicolai Asseiev, tendo Vladimir Maiakovski sofrido grande influência desta tendência.. (Continua..) 
 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

"Tem a Virtude o Prémio" - Poema de Filinto Elísio


 
 
 
Tem a Virtude o Prémio


Tardio às vezes, sempre merecido,
Tem a Virtude o prémio aparelhado
Ao profícuo talento, ao peito honrado,
Que do dever o estádio tem corrido.

O Sábio, que dos louros esquecido
Só no obrar bem os olhos tem cravado
Inopino também se acha coroado
Por mãos soberanas com o laurel devido

Útil à Pátria seja, as paixões dome,
Seja piedoso, honesto, afável, justo;
Que no futuro o espera ínclito nome.

Assim falou Minerva ao Coro augusto,
Pondo no Templo do imortal Renome,
De glória ornado, o teu prezado Busto.

 
 
 
 Filinto Elísio - Poesias. Selecção, prefácio e notas do Prof. José Pereira Tavares. 
Livraria Sá da Costa - Editora. Lisboa. (1941). (Daqui)
 
 
Filinto Elísio
 
Filinto Elísio (Lisboa, 23 de Dezembro de 1734 – Paris, 25 de Fevereiro de 1819), pseudónimo do Padre Francisco Manuel do Nascimento, foi um dos mais importantes poetas do Neoclassicismo português. 
Oriundo de uma família humilde - o pai era fragateiro e a mãe era peixeira, naturais de Ílhavo -, estudou e recebeu ordens sacras graças à proteção de um embarcadiço de mais largos recursos económicos. Integrou-se, mais tarde, num pequeno círculo de comerciantes letrados, no qual se encontravam alguns franceses que, provavelmente, exerceram influência notável na sua formação iluminista e liberal. Por esta altura, participou da guerra dos poetas, inscrevendo-se no grupo da Ribeira das Naus, que se opôs à Arcádia Lusitana. Foi neste conflito que, sob o nome de Niceno, propugnou a imitação do bom modelo clássico e o exemplo dos Quinhentistas.
No convento de Chelas, travou Francisco Manuel do Nascimento conhecimento com as duas filhas do Marquês de Alorna, tendo sido professor de latinidade de D. Leonor de Almeida, futura marquesa de Alorna, da qual recebeu o nome arcádico, e mestre de música de sua irmã, D. Maria de Almeida, a quem cortejou muito em verso. 
Apesar de ser clérigo, teve de fugir para França, exilando-se em Paris em 1778, pelo facto de ler livros racionalistas franceses proibidos pela Inquisição. Aí estabeleceu relações de amizade com o poeta Lamartine, que lhe dedicou um poema. 
À exceção de uma estadia de quatro anos em Haia, viveu o resto da vida neste país, compondo em prol da estética horaciana e dos problemas da longínqua pátria perante os rumos abertos pelas revoluções americana e francesa. 
A França era, para Filinto Elísio, a imagem da civilização e foi, sem dúvida, através do contacto com os primeiros românticos franceses que ele, para lá do neoclassicismo horaciano, chegou, por vezes, a exprimir-se numa linguagem de livre confessionalismo pré-romântico. Mas foi sobretudo na ideologia das luzes que este poeta mais vivamente mergulhou, servindo um classicismo arcádico que se harmonizava com a simbologia e os gostos neoclássicos da revolução. (Daqui)
 
 
Obras Completas
 
A obra de Filinto Elísio compreende todo o vasto receituário clássico - odes, epigramas, cartas, enigmas, epinícios, epicédios, etc. - em que o poeta revela as suas emoções mais sentidas. O verso de Filinto é duro, trabalhado e arcaizante. Por outro lado, a sua prosa, que se encontra espalhada, em notas variadas, por todas as suas obras, denota uma grande diversidade de recursos, prejudicados, por vezes, pelo excessivo zelo purista do idioma. Foi um escritor apegado a certos processos que considerava "quinhentistas", mas que são, em parte, "seiscentistas", nomeadamente os hipérbatos e a expressividade do vernaculismo vocabular.
Já quase no fim da vida, Filinto Elísio registou algumas normas e conceitos acerca da poesia e da língua na Epístola Da Arte Poética Portuguesa, dirigida a José Maria de Brito. Nesta carta defende, fundamentalmente, o verso branco e a liberdade de pensamento a ele associada, a valentia da expressão, a pureza e o francesismo do léxico e a sua renovação sobre base quinhentista e latina. Dá origem a uma orientação estética chamada de Filintismo, adversária da fluência fácil do Elmanismo, que aponta para os cânones horacianos, para o exemplo de Garção e para o formalismo arcádico de que é o último e digno representante. A Elísia pátria de Filinto é tipicamente quinhentista, com os seus diversos heróis, dos quais Camões é o expoente máximo, cantados à maneira arcádica com uma grande pureza formal.
Fiel a este movimento arcádico, Filinto revela-se, porém, pelo egocentrismo de algumas das suas líricas, pela sua revolta e pelo entusiasmo relativo às ideias iluministas, um precursor do movimento romântico. Exprime nas suas odes, nas suas epístolas e nas suas sátiras, todo o alvoroço do seu tempo - descreve-nos a sua situação de exilado, as faltas de dinheiro; insurge-se contra o obscurantismo clerical; canta veementemente a liberdade, a tomada da Bastilha, Washington e a independência americana e todos os defensores do progresso e do domínio da Natureza.
Este é um poeta aristocraticamente letrado no seu discurso, mas burguês e plebeu no que respeita aos temas e ao léxico, o que se manifesta no seu apego gastronómico aos ovos-moles, às trouxas de ovos, às morcelas, aos melões e na rememoração de festas populares ao ar livre e de uma hilariedade pagã. 
A obra de Filinto Elísio tem sido estudada por Fernando Alberto Torres Moreira, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (tese de mestrado com o título "O Epigrama em Filinto Elísio - Um Género para um Poeta", 1995). 
Têm vindo a ser publicadas desde 1998 as Obras Completas de Filinto Elísio. Fernando Moreira, professor da UTAD, com o apoio do Ministério da Cultura e do Instituto Português do Livro e da Leitura, coordena atualmente a reedição das mesmas. Foram publicados até ao momento quatro volumes (Filinto Elísio: Obras Completas, coleção Clássicos da Literatura Portuguesa, Braga, Edições APPACDM, 1998-1999. Edição de Fernando Moreira). (Daqui)
 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

"Os armários da noite" - Poemas de Alice Vieira


popularly known as  Whistler's Mother, a portrait of Anna by her son.


 
Esperar que voltes é tão inútil

 
esperar que voltes é tão inútil como o
sorriso escancarado dos mortos na
necrologia dos jornais

e no entanto de cada vez que
a noite se rasga em barulhos no elevador e
um telefone se debruça de um sexto andar

sinto que ainda ficou uma palavra minha
esquecida na tua boca
e que vais voltar
para
a
devolver

Alice Vieira,
12º poema do livro "Os armários da noite"

 
"...Que limbo é este onde
Pelo meio da noite às vezes aparecias
Mas apenas para desfazer esquecidos silêncios
Porque bem sabes ao terceiro Whisky
O amor é sempre eterno..." 
 
 
"Os armários da noite"
 
 
Alice Vieira (daqui)

Alice Vieira nasceu em 1943, em Lisboa. É licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa.
Iniciou a sua carreira de jornalista aos 18 anos, no Diário de Lisboa. Trabalhou em vários jornais, entre os quais o Diário de Notícias, a cuja redação pertenceu até 1990, data em que deixou o jornalismo diário, para ficar como free-lancer, sendo durante muitos anos colaboradora do Jornal de Notícias e da revista Activa. Atualmente está reformada do jornalismo, mas trabalha no Jornal de Mafra e, desde há 13 anos, na revista juvenil Audácia, dos missionários combonianos.
Em 1979 publicou o seu primeiro romance juvenil — Rosa, Minha Irmã Rosa — que nesse ano ganhou o “Prémio de Literatura do Ano Internacional da Criança”.
Desde então tem publicado regularmente romances juvenis, poesia, teatro, recolhas de histórias tradicionais, livros infantis.
Recebeu o prémio Calouste Gulbenkian em 1983 pelo seu livro Este Rei Que Eu Escolhi; o Grande Prémio Gulbenkian pelo conjunto da obra (1984); o Prix Octogone pela edição francesa de Os Olhos de Ana Marta (2000); a “Estrela de Prata do Prémio Peter Pan” pela edição sueca de “Flor de Mel”, e foi várias vezes distinguida com o Prémio Corvo Branco, atribuído pela Biblioteca Internacional da Juventude de Munique.
Fez parte da equipa de escritores dos programas de televisão “Rua Sésamo”, “Jornalinho”, “Hora Viva”, “Arco-Íris”, etc.
Ultimamente tem-se também dedicado à literatura para adultos, com três volumes de crónicas (Bica Escaldada, Pezinhos de Coentrada e O Que Se Leva Desta Vida), o romance histórico Os Profetas, uma biografia da escritora inglesa Enid Blyton, o livro autobiográfico Histórias da Avó Alice, três livros de poemas -- Dois Corpos Tombando na Água (Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho), O Que Dói às Aves, e Os Armários da Noite — e o livro Tejo, juntamente com o fotógrafo brasileiro Neni Glock. Participou ainda, com mais seis autores, em romances coletivos como Novos Mistérios de Sintra, O Código de Avintes, Eça Agora, 13 Gotas ao Deitar e, mais recentemente, A Misteriosa Mulher da Ópera.
Orienta regularmente oficinas de escrita criativa.
Desloca-se quase diariamente a escolas e bibliotecas de todo o país – e também de países onde os seus livros estão traduzidos (Espanha, Alemanha, Holanda, Itália, Suécia, Sérvia, etc.).
É publicada regularmente em língua francesa pela editora La Joie de Lire— onde já saíram os romances juvenis Viagem à Roda do Meu Nome (Voyage Autour de Mon Nom), Flor de Mel (Fleur de Miel), Os Olhos de Ana Marta (Les Yeux d’Ana Marta), Caderno de Agosto (Cahier d’Août) e O Casamento da Minha Mãe (Le Mariage de Ma Mère) e, mais recentemente, o livro de poemas para crianças A Charada da Bicharada (La Charade des Animaux).
Participou com o maestro Eurico Carrapatoso no conto musical A Arca do Tesouro (interpretada pela Orquestra Metropolitana de Lisboa); e o compositor Sérgio Azevedo musicou a Charada da Bicharada, recentemente editada em CD.
É membro da direção da Sociedade Portuguesa de Autores.(Daqui)

 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

"Saber" - Poema de Ana Hatherly


Alessandro Pomi (Italian, 1890–1976), Impressionist painter
[He was a pupil of Ettore Tito at the Academy of Belle Arti in Venice
 and then he completed his studies in Munich and Rome.]



Saber


saber
é saber saber-te
sabermo-nos unir

unirmo-nos
é conhecermo-nos
sabermos ser

por fim sermos
é sabermos
sabermo-nos

conhecermos
a surda áspide


Ana Hatherly
,
in "Um Calculador de Improbabilidades"
 
 
 
Alessandro Pomi, Sulla Spiaggia, 1920, Olio su cartone, 48,5×68,5 cm, Collezione privata

"De cada vez que respiro sei que alternadamente perco e recupero o meu corpo. Depois penso que é na preia-mar da respiração que o meu corpo se forma, nesse intervalo. (Quando as pessoas dormem ou estão no cinema, por exemplo, o ar do recinto fica alternadamente cheio e vazio de corpos!) Respirar o corpo para fora inspirar o corpo para dentro. Eis como a ginástica é uma forma de vampirismo. Penso nisto quando estou na praia olhando um homem deslizar numa prancha de surf por uma onda fora. De repente desequilibra-se e cai. Tudo o que é profundo se revela à superfície." 

Ana Hatherly, in 463 Tisanas, Quimera, 2006

 

 
Alessandro Pomi, In laguna, 1953, Olio su tavola, 49,2×37 cm, 
Collezione privata 


"Não medir a altura do sonho. Não medir a distância de um sorriso. Quando a espuma das ondas chega à areia qualquer coisa de irreversível acontece."

Ana Hatherly, in Tisanas

 
 
Alessandro Pomi, Sera a Fusina, 1924-1928, Olio su compensato 
 
 
"Keats disse que uma coisa bela é uma alegria eterna. Hoje a beleza é a voz sufocada de uma perdida sabedoria." 

Ana Hatherly, in Tisanas 
 
 
Alessandro Pomi, Autorretrato, S/d
 
 
"Não é verdade que só o autor se apaixona pela obra. Também a obra se apaixona pelo seu autor. Na verdade é mesmo por isso que o autor se apaixona por ela."
 
Ana Hatherly, in Tisanas
 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

"Testamento Aberto" - Poema de Políbio Gomes dos Santos


 Gilbert Stuart,  The Skater, 1782, a portrait of Sir William Grant 
National Gallery of Art, Washington D.C.


Testamento Aberto 
 
 
Só para ver curar minhas pernas partidas
Nas dores eternas
Dos saltos gorados,
Eu amo a aparente inconsciência dos loucos,
Embora fique aos poucos nos meus saltos
Desabridos e falhados.

Apraz-me, no espelho, esta face esmagada,
À força de querer transpor o além
Da minha porta fechada...

Porém,
Seja o que for, que seja,
Se uma certeza alcanço
E uma mulher me beija.

Que importa
Que eu fique molemente olhando a minha porta
Aberta,
Ou que eu parta e a morte me espreite
Num desfiladeiro?...
E quem virá chorar e quem virá,
Se a morte que vier for a de lá
Certeira e minha...
E merecida como um sono que se dorme
Após a noite perdida?...

E que piedade anda a escrever um frágil,
Na embalagem dos ossos
Que trago emprestados...
Que deixarei ficar ao sol e à chuva
E que serão limados
No entulho dos calhaus que também foram rocha?...

Para quê, se mil vezes provoco
Os tombos do chegar e do partir?!
- A minha fragilidade
Foi-me dada
Para me servir.


Políbio Gomes dos Santos
,
in 'As Três Pessoas', 1938 
 

Políbio Gomes dos Santos

 
Poeta português, Políbio Gomes dos Santos nasceu a 8 de agosto de 1911, em Ansião, e morreu precocemente, vítima de tuberculose, a 3 de setembro de 1939, na mesma localidade.

Frequentou o Instituto dos Pupilos do Exército, que abandonou, passando para Coimbra, onde viria a matricular-se nos cursos superiores de Letras e de Direito.

Não terminou os seus estudos, vítima, aos 28 anos, de tuberculose. Teve, porém, tempo para se afirmar, nos círculos universitários e literários de Coimbra, como uma das grandes promessas da poesia da sua geração.

Ligado à primeira geração neorrealista, colaborou em publicações como Cadernos da Juventude, O Diabo e Sol Nascente. Em 1938 publicou As Três Pessoas.

No ano da sua morte veio a lume o belo livro Voz que Escuta, inserto na coleção Novo Cancioneiro, onde se afirmaram poetas conotados com a estética poética neorrealista, como João José Cochofel, Fernando Namora, Joaquim Namorado, Mário Dionísio e Carlos de Oliveira.

Toda a poesia de Políbio Gomes dos Santos foi depois coligida num só volume, Poemas, publicado em
1981. (Daqui)
 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

"E de novo, Lisboa" - Poema de Alexandre O’Neill


Jorge Barradas, As Varinas, 1930, Guache sobre cartão, 62,5 × 62,5 cm
Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea
 
 [Pintura de costumes. Duas varinas de roupas coloridas e aventais brancos, com duas canastras de peixe na cabeça, descem as escadinhas de uma ruela lisboeta banhada pelo sol, em direção a um arco, no fundo. Atrás delas, à esquerda, vê-se roupa estendida ao sol, um algeiroz junto da parede iluminada e dois gatos pretos. No fundo, à direita, vêem-se através do arco um prédio antigo com águas-furtadas e um candeeiro.(Daqui)]


E de novo, Lisboa


E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?
(1924-1986)
Poesias Completas & Dispersos
(edição de Maria Antónia Oliveira) 


domingo, 24 de outubro de 2021

"Momento de Poesia" - Poema de Almada Negreiros


dos Sapatos de Ferro», 1918. Guache sobre cartão . 50,6 x 35,8 cm 
Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna.
 
 

Momento de Poesia

 
 Se escrevo ou leio ou desenho ou pinto,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar para diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que cansado me julgo satisfeito.
(Tão gémeos são
A fadiga e a satisfação!)
Em troca, se vou por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que está fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos de uma aflição que não é minha,
que, sinceramente, não sei qual é melhor:
se estar sozinho em casa a dar à manivela da vida,
se ir por aí e ser Rei de tudo o que não é meu. 
 
 Lisboa, Novembro 1939

 José de Almada Negreiros,
Poemas Escolhidos
 
 

sábado, 23 de outubro de 2021

"Algumas Coisas" - Poema de Manuel António Pina


Pablo Picasso, Nature morte au compotier (Still Life with Compote and Glass)
oil on canvas, 1914–15, Columbus Museum of Art, Ohio.



Algumas Coisas 
 
 
A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio de aquele que fala se calará.

Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.

O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.
in "Aquele que Quer Morrer"

Pablo Picasso, Still Life, 1918, oil on canvas, 97.2 x 130.2 cm,  
National Gallery of Art, Washington, D.C.
 

"Aquele que se analisou a si mesmo, está deveras adiantado no conhecimento dos outros."
 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

"Sobra a construção de obras duradouras" - Poema de Bertold Brecht


 
Tomie Ohtake, Sem Título, 1954, óleo sobre tela



Sobra a construção de obras duradouras 
 
 
Quanto tempo
Duram as obras? Tanto
Quanto o preciso para ficarem prontas.
Pois enquanto dão que fazer
Não ruem.

Convidando ao esforço
Compensando a participação
A sua essência é duradoura enquanto
Convidam e compensam.

As úteis
Pedem homens
As artísticas
Têm lugar para a arte
As sábias
Pedem sabedoria
As destinadas à perfeição
Mostram lacunas
As que duram muito
Estão sempre para cair
As planeadas verdadeiramente em grande
Estão por acabar.

Incompletas ainda
Como o muro à espera da hera
(Esse esteve um dia inacabado
Há muito tempo, antes de vir a hera, nu!)
Insustentável ainda
Como a máquina que se usa
Embora já não chegue
Mas promete outra melhor.
Assim terá de construir-se
A obra para durar como
A máquina cheia de defeitos. 
 in 'Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas'
Tradução de Paulo Quintela


quarta-feira, 20 de outubro de 2021

"Encurralado" - Poema de Charles Bukowski

 
 
Juan Gris, Glass of Beer and Playing Cards, 1914
 


Encurralado


Bem, eles diziam que tudo terminaria
assim: velho
o talento perdido
tateando às cegas em busca
da palavra

ouvindo os passos
na escuridão, volto-me
para olhar atrás de mim…

ainda não, velho cão…
logo em breve.

agora
eles se sentam falando sobre
mim: “sim, acontece, ele já
era… é
triste…”

“ele nunca teve muito, não é
mesmo?”

“bem, não, mas agora…”

agora
eles celebram minha derrocada
em tavernas que há muito já não
frequento.

agora
bebo sozinho
junto a essa máquina que mal
funciona

enquanto as sombras assumem
formas

combato retirando-me
lentamente

agora
minha antiga promessa
definha
definha

agora
acendendo novos cigarros
servido mais
bebidas

tem sido um belo
combate

ainda
é.

Charles Bukowski

(Tradução de Pedro Gonzaga)


terça-feira, 5 de outubro de 2021

"Escrevemos docemente" - Poema de Fernando Echevarría


 
William Michael Harnett, Music and Literature, 1878
 

Escrevemos docemente
 
 
 Escrevemos docemente. Se a figura
sobe de estar tão funda a essa mesa
é que escrever se lembra. E só da altura
de se lembrar percorre a linha acesa

a ponta de escrever, que traça a pura
forma de rosto que abre na tristeza.
E a tristeza ilumina de escultura
penumbras de volumes com que pesa.

Por isso é docemente que da linha
de estar ali aonde sempre esteve
aparece figura de rainha

que sempre foi e agora só se escreve.
E escrevermos é como se na vinha
o sol se iluminasse. E fosse breve. 


Fernando Echevarría
, in "Figuras"
 

William Michael Harnett, Music and Good Luck, 1888, 
Metropolitan Museum of Art
 

"Aprender música lendo teoria musical é como fazer amor por correspondência." 
 
(Luciano Pavarotti)
 
[Tenor de ópera italiano, Luciano Pavarotti nasceu a 12 de outubro de 1935, em Modena, e faleceu a 6 de setembro de 2007, na sua terra natal.
Ainda criança, entrou para o grupo coral de Modena, que o pai também frequentava, tendo sido esta a sua primeira experiência no meio musical.
Embora inicialmente os seus planos apontassem para uma carreira no ensino, a sua participação, como Rodolfo, na ópera "La Bohème", no Teatro de Reggio Emilia, em 1961, trouxe-lhe reconhecimento imediato e abriu-lhe as portas para a consolidação de uma carreira como tenor.
Em muito pouco tempo, os seus dotes musicais começaram a ser requisitados.
Luciano Pavarotti fez, ao longo da sua vida profissional, inúmeros espetáculos e digressões por todos os continentes e em palcos tão distintos como o Madison Square Garden de Nova Iorque, o Estádio de Wembley de Londres, o Estádio Olímpico de Berlim, o Estádio Olímpico de Barcelona, o Hollywood Bowl e o Central Park de Nova Iorque.
Os seus papéis em óperas incluem, para além do já mencionado Rodolfo, na "La Bohème", Cavaradossi em Tosca, o Duque de Mântua em Rigoletto e Nemorino em L'Elisir d'amore, entre tantos outros.
Destacam-se da sua extensa discografia The 3 Tenors in Concert (1994) e The Three Tenors Arias (2000), álbuns gravados em parceria com José Carreras e Plácido Domingo; Pavarotti and Friends for War Child (1996), Pavarotti and Friends for Guatemala and Kosovo (1999) e Pavarotti and Friends for Afghanistan (2001), exemplos de trabalhos editados em comum com outros músicos, com objetivos solidários; La Bohème (1980), Rigoletto (1985), Il Trovatore (1986), Madama Butterfly (1987), La Traviata (1991), Macbeth (1993), I Lombardi (1997), Notte d'amore (1998), Quarant'anni per la Lirica (2001), Puccini (2004) e Luciano Pavarotti (2005), entre tantos outros álbuns, quer de ópera quer de coleções.
(Daqui) ]
 
 
William Michael Harnett, The Old Violin, 1886,
National Gallery of Art, Washington, DC.

"O saber faz o homem ponderado e insinuante." 

(Charles de Montesquieu)

[Escritor francês (1689-1755), Charles de Montesquieu foi o autor de Lettres persanes (Cartas Persas, 1721), uma visão satírica da sociedade e dos costumes do seu tempo. Contribuiu para a teoria política com a obra L'Esprit des lois (O Espírito das Leis, 1748). Foi o primeiro a defender a separação dos poderes - legislativo, executivo e judicial. A sua obra inspirou as doutrinas constitucionais liberais. (Daqui)