domingo, 24 de outubro de 2021

"Momento de Poesia" - Poema de Almada Negreiros


dos Sapatos de Ferro», 1918. Guache sobre cartão . 50,6 x 35,8 cm 
Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna.
 
 

Momento de Poesia

 
 Se escrevo ou leio ou desenho ou pinto,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar para diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que cansado me julgo satisfeito.
(Tão gémeos são
A fadiga e a satisfação!)
Em troca, se vou por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que está fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos de uma aflição que não é minha,
que, sinceramente, não sei qual é melhor:
se estar sozinho em casa a dar à manivela da vida,
se ir por aí e ser Rei de tudo o que não é meu. 
 
 Lisboa, Novembro 1939

 José de Almada Negreiros,
Poemas Escolhidos
 
 

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