segunda-feira, 25 de outubro de 2021

"E de novo, Lisboa" - Poema de Alexandre O’Neill


Jorge Barradas, As Varinas, 1930, Guache sobre cartão, 62,5 × 62,5 cm
Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea
 
 [Pintura de costumes. Duas varinas de roupas coloridas e aventais brancos, com duas canastras de peixe na cabeça, descem as escadinhas de uma ruela lisboeta banhada pelo sol, em direção a um arco, no fundo. Atrás delas, à esquerda, vê-se roupa estendida ao sol, um algeiroz junto da parede iluminada e dois gatos pretos. No fundo, à direita, vêem-se através do arco um prédio antigo com águas-furtadas e um candeeiro.(Daqui)]


E de novo, Lisboa


E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?
(1924-1986)
Poesias Completas & Dispersos
(edição de Maria Antónia Oliveira) 


Sem comentários: