quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Casa Velha" - Poema de Fernanda de Castro



 Moreira Aguiar (Pintor português, n. 1947), Óbidos, 70x50cm.
 


Casa Velha


Deixem a casa velha! Que os pedreiros
não lhe tirem as rugas nem as gelhas.
Que não limpem de urtigas os canteiros,
que lhe deixem ficar as velhas telhas.

Deixem a casa velha! Que a não sujem
com óleos e com tintas os pintores.
Que lhe deixem as nódoas de ferrugem,
os velhos musgos, as cansadas flores.

Que não fiquem debaixo do cimento
mais de cem anos de alegria e dor.
Não lhe pintem a chuva, o sol, o vento,
que a cor do tempo é assim: vaga e incolor.

Que tudo fique assim, parado e absorto,
no tempo sem limites, sempre igual.
Ah, não, por Deus! Como se faz a um morto,
não a sepultem sob terra e cal!

Não fechem as janelas mal fechadas,
ouçam da brisa o tímido lamento,
deixem que a vida e a morte, de mãos dadas,
vão com seu passo refletido e lento.

Não endireitem as paredes tortas
nem desatem, da aranha, os finos laços.
Abram ao vento as desmanchadas portas,
ouçam do tempo os invisíveis passos.

Deixem que durma, quieta, ao sol do Outono,
velada pela flor, o vento, a asa.
Será talvez o derradeiro sono…
Que importa? Morra em paz a velha casa.


Fernanda de Castro
, in "Asa no Espaço", 1955
 
 
 

"Trata de saborear a vida; e fica sabendo, que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la."



quarta-feira, 29 de novembro de 2023

"Logo que te deixo" - Poema de Cruzeiro Seixas


Cruzeiro Seixas (Poeta e pintor surrealista português, 1920-2020), "A fábrica dos Espelhos", 2009.


 
Logo que te deixo
 

Logo que te deixo
há um rio que corre ao teu lado veemente
e da outra margem
os diabos com as suas lanternas
falam da infância submersa
no além.

Daqui até à linha do horizonte
as marés embalam maternalmente os mortos
e o seu canto
arrasta as góticas catedrais até ao mar
onde flutuam e vão
com cornos de ouro
e hélices que espadanam mil diamantes.

Por toda a parte há sonhos
a empurrar outros sonhos
para o abismo.

A magia do espelho quebrado
é uma longuíssima viagem
sem regresso. 


Cruzeiro Seixas, Obra poética
Edições Quasi
 

domingo, 26 de novembro de 2023

"Viajar? Para viajar basta existir" - Texto de Bernardo Soares / Fernando Pessoa


Paul Klee (Swiss-born German artist, 1879 –1940), Insula dulcamara, 1938,
Zentrum Paul Klee, Berne
 


Viajar? Para viajar basta existir

 
Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

“Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo”. Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Polos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.


Bernardo Soares (Heterónimo de Fernando Pessoa),
in Livro do Desassossego, fragmento 451, ed. Richard Zenith, Assírio & Alvim, 11ª ed.
 

Paul Klee, Nach der Überschwemmung, 1936, Beyeler Foundation



Abstracionismo
 
 
O entendimento da arte como ato criativo situado para além da mera perceção visual do mundo sensível constitui o ponto de partida principal do abstracionismo. Nascida na segunda década do século XX, a arte abstrata tem origem nas diversas reações ao Impressionismo e desenvolve-se entre 1913 e 1933.
A primeira obra totalmente abstrata foi pintada por Kandinsky, uma das figuras históricas do abstracionismo, em 1913. Paralelamente à atividade pictórica, Kandinsky converteu-se no teorizador dos fundamentos do abstracionismo lírico, cujas linhas fundamentais são a liberdade da cor e do traço, enquadradas num entendimento filosófico e orgânico da pintura. Nas telas e aguarelas deste pintor alemão, as massas cromáticas, às quais o artista atribui um significado simbólico, enunciam uma plasticidade sem forma e uma nova sensibilidade. Cada obra é fruto de uma pesquisa controlada e metódica, de uma experiência espontânea vivida pelo autor, à qual não é estranha a exploração incessante das suas emoções e sensações perante o real.
Em França, o fauvismo e os primórdios do cubismo influenciam outros autores que enveredam pelo caminho da não figuração, como Delaunay, Kupka e Picabia.
Noutros países são experimentadas outras vias da abstração, de cariz mais geométrico: o Raionismo, o Suprematismo e o construtivismo na Rússia, e o Neoplasticismo da Holanda. Os fundamentos deste último movimento, igualmente conhecido por De Stijl, são definidos essencialmente por Piet Mondrian, cuja obra se define através de uma gramática geométrica clara e objetiva, na qual a harmonia é obtida através de um equilíbrio entre a forma e a cor. (daqui)
 

sábado, 25 de novembro de 2023

"O rio do tempo" - Poema de Lya Luft


Harald Slott-Møller (Danish painter and ceramist, 1864–1937), Morning Coffee, c. 1910


O rio do tempo

O tempo não existe,
nem dentro nem fora.
Esses peixes de opala
são nomes que nadam na memória:
são rostos, são risos, são prantos,
são as horas felizes.

O tempo não existe,
pois tudo continua aqui, e cresce
como se arredonda uma árvore
pesada de frutos que são peixes,
que são nomes de nomes, são rostos
com máscaras.

O tempo não existe. Sou apenas
o aqui e o presente, e o atrás disso,
como um rio que corre mas não passa
— pois ele é sempre, em mim, agora.
 
 
 Lya Luft, em "Para não dizer adeus", 2005.
 
 

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

"Viajar" - Poema de Alves Redol


Alessandro Pomi (Italian Impressionist painter, 1890–1976)



Viajar



Queres viajar, Maria Flor?

Viajar é correr mundo,
voar mais alto que os pássaros
ou pisar o chão da Terra
ou as ondas do Mar Alto…
É ver bichos
de muitas cores e feitios,
montanhas,
rios,
e ribeiros
e pessoas
e lugares…
Conhecer e descobrir,
inventar e duvidar,
sabendo cada vez mais,
sem nunca pensar que basta
o mundo que se conhece.
E alargá-lo com amor
dentro de nós e dos outros.


Alves Redol
, "Uma Flor Chamada Maria", 1969
 

Alessandro Pomi (Italian Impressionist painter, 1890–1976)


"Sonho com uma revolução sem ideologia, onde o destino do ser humano, seu direito a comer, a trabalhar, a amar, a viver a vida plenamente não seja condicionado ao conceito expresso e imposto por uma ideologia seja ela qual for. Um sonho absurdo? Não possuímos direito maior e mais inalienável do que o direito ao sonho. O único que nenhum ditador pode reduzir ou exterminar."
 

domingo, 19 de novembro de 2023

"Abnegação" - Poema de Antero de Quental



Adolfo Belimbau
(Italian painter, 1845 - 1938), The Butterfly Girl



Abnegação



Chovam lírios e rosas no teu colo!
Chovam hinos de glória na tua alma!
Hinos de glória e adoração e calma,
Meu amor, minha pomba e meu consolo!

Dê-te estrelas o céu, flores o solo,
Cantos e aroma o ar e sombra a palma,
E quando surge a lua e o mar se acalma,
Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!

E nem sequer te lembres de que eu choro...
Esquece até, esquece, que te adoro...
E ao passares por mim, sem que me olhes,

Possam das minhas lágrimas cruéis
Nascer sob os teu pés flores fiéis,
Que pises distraída ou rindo esfolhes!


Antero de Quental, in Odes Modernas, 1865
 
 
Adolfo Belimbau (Italian painter, 1845 - 1938)
 
 
A importância da Mulher no progresso da civilização 
 
 
"Se na história não procurarmos só uma data ou um facto descarnado, mas tentarmos nela descobrir alguma coisa mais, um princípio harmónico e as leis que governam esses factos, ainda nas suas menores evoluções, veremos que a história da civilização da mulher, do seu desenvolvimento e da sua moralidade, anda sempre ligada aos factos do desenvolvimento da civilização e da moralidade dos povos: veremos que aonde a sua condição se amesquinha, onde desce em dignidade, onde a mulher em vez do triplo e sagrado carácter de amante, esposa e mãe passa a ser escrava sem liberdade nem vontade, só destinada a saciar as paixões brutais dum senhor devasso, aí também veremos descer o nível da civilização e moralidade: à doçura dos costumes suceder a fereza e a brutalidade; e em vez do amor, essa flor do sentimento pura e recatada, só apareceram a paixão instintiva e brutal, necessidade puramente física do animal que obedece à lei da reprodução, à devassidão e à poligamia!" 


Antero de Quental (1842–1891), in 'Prosas da Época de Coimbra'

terça-feira, 14 de novembro de 2023

"Soneto Azul" - Poema de Mário Quintana


Akseli Gallen-Kallela (Finnish painter, 1865-1931), 
Mary Sewing on the Veranda of Kalela, 1897.
 


Soneto Azul 

 
Quando desperto mansamente agora
é toda um sonho azul minha janela
e nela ficam presos estes olhos,
amando-te no céu que faz lá fora.

Tu me sorris em tudo, misteriosa...
e a rua que – tal como outrora – desço,
a velha rua, eu mal a reconheço
em sua graça de menina-moça...

Riso na boca e vento no cabelo,
delas vem vindo um bando... E ao vê-lo
por um acaso olha-me a mais bela.

Sabes, eu amo-te a perder de vista...
e bebo, então, com uma saudade louca,
teu grande olhar azul nos olhos dela!


Mário Quintana,
"Baú de Espantos" – Editora Globo, RJ, 1988
 
 
Akseli Gallen-Kallela, Black Woodpecker, 1894
 

"Não esquecer que as nuvens estão improvisando sempre, mas a culpa é do vento."
 
Mário Quintana, in "Sapato Florido"

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Perder, ganhar - Poema de Lya Luft


Edgar Degas (French Impressionist artist, 1834-1917), Woman Ironing, c 1869,
oil on canvas, 92.5 × 73.5 cm, Neue Pinakothek, Munich, Germany.


Perder, ganhar

Com as perdas, só há um jeito:
perdê-las.
Com os ganhos,
o proveito é saborear cada um
como uma fruta boa da estação.

A vida, como um pensamento,
corre à frente dos relógios.
O ritmo das águas indica o roteiro
e me oferece um papel:
abrir o coração como uma vela
ao vento, ou pagar sempre a conta
já vencida.
 

Lya Luft, em "Para não dizer adeus", 2005.


Edgar Degas, Woman Ironing, c. 1876-87, oil on canvas, 81.3 x 66 cm,
National Gallery of Art, Washington, DC.


"A vida é luta. A vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal."
 

domingo, 12 de novembro de 2023

"Balada do país que dói" - Poema de Ana Hatherly


Guilherme Filipe (Pintor português, 1897 - 1971), Nazaré (Portugal), 1954



Balada do país que dói


O barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o corpo cai
o corpo dói

português vai
português cai

o barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o país cai
o país dói

o tempo vai
o tempo dói

português cai
português vai
português sai
português dói


Ana Hatherly
,
Antologia da poesia experimental portuguesa:
Anos 60 - Anos 80
 
 
"Antologia da poesia experimental portuguesa:
Anos 60 - Anos 80
", organizada por
Carlos Mendes de Sousa e Eunice Ribeiro
Editor: Angelus Novus, abril de 2005
 
[Autores representados: Abílio-José Santos, Alexandre O’Neill, Álvaro Neto, Ana Hatherly, António Aragão, E. M. de Melo e Castro, José-Alberto Marques, Luiza Neto Jorge, Salette Tavares, Silvestre Pestana, António Barros, Fernando Aguiar, Antero de Alda, António Dantas, António Nelos, Armando Macatrão, César Figueiredo, Emerenciano, Gabriel Rui Silva.]

 
SINOPSE 

A partir de meados do séc. XX, assiste-se por todo o mundo — da Europa à América e ao Japão — a um surto ininterrupto de experimentalismos. Configurando-se genericamente como poéticas do significante, as poéticas experimentais maximizam as qualidades sensíveis do material sígnico, com especial ênfase para a sua dimensão visual e plástica.

Em Portugal, a publicação dos cadernos de Poesia Experimental 1 e 2 (em 1964 e 1966) constitui historicamente o marco desencadeador das práticas poéticas experimentais. Esta primeira fase do experimentalismo português, em que se destacam ainda as revistas Operação e Hidra, período áureo que coincide praticamente com toda a década de 60, em pleno regime ditatorial, instigou um tipo de postura esteticamente tolerante e "aberta" que por si funcionava já como um gesto urgente de rutura.

A década de 70, e muito em especial o período pós-revolucionário da grande "explosão de visualismo" popular, distingue-se por um intenso movimento editorial e por uma rápida evolução das práticas experimentais em direção a novas poéticas tridimensionais e a uma poesia de ação que pressupunha a dinamização de suportes e materiais muito mais vastos do que os exigidos pelo poema circunscrito ao espaço da página: instalações e intervenções poéticas, criação de filmes experimentais e primeiras incursões no domínio da poesia cibernética.

Uma decisiva expansão e diversificação das práticas experimentalistas portuguesas, com destaque para a crescente intervenção da tecnologia e para a multiplicação de ações poéticas, ocorre nos anos 80. Apresentam-se agora propostas muito diversificadas no domínio da poesia visual, da poesia sonora, da poesia-objeto, da poesia holográfica, da videopoesia e da poesia de computador, da instalação poética, em simultâneo com várias intervenções e performances. (daqui)
 
 
Guilherme Filipe (Pintor português, 1897 - 1971), Nazaré, 1943
 
 
Epígrafe
 
 
"As únicas coisas eternas são as nuvens."

Mário Quintana
, in "Sapato Florido"

sábado, 11 de novembro de 2023

"Versos escritos da margem dum missal" - Poema de Antero de Quental


 
Aelbert Cuyp (Dutch Golden Age artist, 1620–1691), Avenue at Meerdervoort, c. 1650 -1652,  
 


Versos escritos da margem dum missal


Bem pode ser que nossos pés doridos
Vão errados na senda tortuosa,
Que o pensamento segue nos desertos,
Na viagem da Ideia trabalhosa...

Que a árvore da Ciência, sacudida
Com força, jamais deite sobre o chão,
Aos pés dos tristes que ali estão ansiosos,
Mais do que o fruto negro da ilusão...

Que o livro do Destino esteja escrito
Sobre folhas de lava, em letra ardente,
E não chegue a fitá-lo o olho humano
Sem que ofusque e cegue de repente...

Pode ser que, na luta tenebrosa
Que este século move sob o céu,
Venha a faltar-lhe o ar, por fim, faltando-lhe
A terra sob os pés, bem como Anteu...

Que do sangue espalhado nos combates,
E do pranto que cai da triste lira,
No árido chão da esperança humana
Mais não nasça que a urze da mentira...

Que o mistério da vida a nossos olhos
Se torne dia a dia mais escuro,
E no muro de bronze do Destino
Se quebre a fronte sem que ceda o muro...

Que o pensamento seja só orgulho,
E a ciência um sarcasmo da verdade,
E nosso coração louco vidente,
E nossas esperanças só vaidade...

E nossa luta, vã! talvez que o seja!
Cego andará o homem cada vez
Que vê o céu um astro! e os passos dele
Errados pelo mundo irão, talvez!

Mas, ó vós que pregais descanso inerte
No seio maternal da ignorância,
E condenais a luta, e dás ao homem
Por seu consolo o dormitar da infância;

Apóstolos da crença... na inércia...
Vós que tendes da Fé o ministério
E sois reveladores, dando ao mundo
Em lugar de um mistério... outro mistério;

Se quanto o Universo tem no seio,
E quanto o homem tem no coração,
O olhar que vê e a alma que adivinha,
O pensar grave e a ardente intuição,

Se nada em terra e céu pode ensinar-nos
Do fado humano o imortal segredo,
Nem os livros profundos da ciência,
Nem as profundas sombras do arvoredo,

Se não há mão audaz que possa erguê-lo
O tenebroso véu do Bem e Mal...
Se ninguém nos explica este mistério...
Também o não dirá nenhum missal!




"Uma vida não questionada não merece ser vivida."

Platão
 (Filósofo grego, no século IV a.C.), in a "A República" (daqui)
 
 
Aebert Cuyp, The Negro Page, c. 1652, Royal Collection


"O corpo humano é a carruagem, eu, o homem que a conduz, os pensamentos as rédeas, os sentimentos são os cavalos." 
 
 



O filósofo observa e medita. É um espelho que pensa."

Guerra Junqueiro, "Prosas dispersas‎" - Página 92, 
 Publicado por Lello & Irmão, 1926 - 169 páginas
 

domingo, 5 de novembro de 2023

"Convalescença" - Poema de Miguel Torga


Helene Schjerfbeck (Finnish painter, 1862–1946), The Convalescent, 1888 (Naturalism),
Ateneum, Helsinki, Finland



Convalescença

 
Hora a hora,
Nasce outra vez em mim a vida.
Devagar,
Como um gomo de vide a rebentar,
Cobre de verde a cepa ressequida.

É um fruto que acena?
É uma flor que há de ser?
— Fui eu que disse que valia a pena

Viver!


(Coimbra, 14 de Fevereiro de 1943)

Miguel Torga (1907-1995), in Diário II
 
 
Helene Schjerfbeck, A Boy Feeding His Little Sister, 1881, Ateneum, Helsinki


"As crianças – todas as crianças -, eu lhes asseguro, estão dispostas à aventura da aprendizagem inteligente. Estão cansadas de serem tratadas como subdotadas ou como adultos em miniatura. Elas são o que são e têm o direito de serem o que são: seres naturalmente mutáveis, porque aprender e mudar é a sua forma de ser no mundo." 
 
Emilia Ferreiro, no livro “Reflexões sobre Alfabetização”
 

 
"Por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa. Essa criança que pensa não pode ser reduzida a um par de olhos, de ouvidos, e uma mão que pega o lápis. Ela pensa o propósito da língua escrita. O processo de alfabetização nada tem de mecânico, do ponto de vista da criança que aprende."

Emilia Ferreiro, “Reflexões sobre Alfabetização”
 

Emilia Ferreiro,“Reflexões sobre Alfabetização
 
 
 Resumo
 
Emília Ferreiro descobriu e descreveu a 'psicogénese da língua escrita' e abriu espaço para um novo tipo de pesquisa em pedagogia. Ela desloca a investigação do 'como se ensina' para 'o que se aprende'. O processo de alfabetização nada tem de mecânico, do ponto de vista da criança que aprende. A criança constrói seu sistema interpretativo, pensa, raciocina e inventa buscando compreender esse objeto social complexo que é a escrita. Essa mudança conceitual sobre alfabetização acaba levando a mudanças profundas na própria estrutura escolar.
 
 
Emilia Ferreiro (daqui)
 
 
Emilia Ferreiro
 
Em 1970 depois de se formar em psicologia pela Universidade de Buenos Aires, estudou na Universidade de Genebra, onde trabalhou como pesquisadora-assistente de Jean Piaget e obtém o seu PhD sob a orientação do psicopedagogo suiço. Retornou a Buenos Aires, em 1971. Formou um grupo de pesquisa sobre alfabetização e publicou sua tese de doutorado - Les relations temporelles dans le langage de l'enfant. No ano seguinte, recebeu uma bolsa da Fundação Guggenheim (EUA). Em 1974 afastou-se de suas funções docentes na Universidade de Buenos Aires. Em 1977, após o golpe de Estado na Argentina passou a viver em exílio na Suíça, lecionando na Universidade de Genebra. 
Iniciou com Margarita Gómez Palacio uma pesquisa em Monterrey (México) com crianças que apresentam dificuldade de aprendizagem. Em 1979 passou a residir no México com o marido, o físico e epistemólogo Rolando García, com quem teve dois filhos. Foi Professora Titular do Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, na Cidade do México. 
No Brasil, Emília teve enorme influência na educação, a divulgação de seus livros, a partir de meados dos anos 1980, causou um grande impacto sobre a conceção que se tinha do processo de alfabetização, influenciando as próprias normas do governo para a área, expressas nos Parâmetros Curriculares Nacionais. 
As obras de Emilia - Psicogénese da Língua Escrita é a mais importante - não apresentam nenhum método pedagógico, mas revelam os processos de aprendizado das crianças, levando a conclusões que puseram em questão os métodos tradicionais de ensino da leitura e da escrita. Emilia Ferreiro tornou-se uma espécie de referência para o ensino brasileiro e seu nome passou a ser ligado ao construtivismo, campo de estudo inaugurado pelas descobertas a que chegou o biólogo suíço Jean Piaget na investigação dos processos de aquisição e elaboração de conhecimento pela criança - ou seja, de que modo ela aprende. As pesquisas de Emilia Ferreiro concentram o foco nos mecanismos cognitivos relacionados à leitura e à escrita.
Tanto as descobertas de Piaget como as de Emilia levam à conclusão de que as crianças têm um papel ativo no aprendizado. Elas constroem o próprio conhecimento, por isso a palavra construtivismo. A principal implicação dessa conclusão para a prática escolar é transferir o foco da escola e da alfabetização em particular do conteúdo ensinado para o aluno. Até então, os educadores só se preocupavam com a aprendizagem quando a criança parecia não aprender, Emília Ferreiro inverteu essa ótica.
O princípio de que o processo de conhecimento por parte da criança deve ser gradual corresponde aos mecanismos deduzidos por Piaget, segundo os quais cada salto cognitivo depende de uma assimilação e de uma reacomodação dos esquemas internos, que necessariamente levam tempo. É por utilizar esses esquemas internos, e não simplesmente repetir o que ouvem, que as crianças interpretam o ensino recebido. No caso da alfabetização isso implica uma transformação da escrita convencional dos adultos. Para o construtivismo, nada mais revelador do funcionamento da mente de um aluno do que seus supostos erros, porque evidenciam como ele "releu" o conteúdo aprendido. O que as crianças aprendem não coincide com aquilo que lhes foi ensinado.
Com base nesses pressupostos, Emilia Ferreiro critica a alfabetização tradicional, porque julga a prontidão das crianças para o aprendizado da leitura e da escrita por meio de avaliações de perceção (capacidade de discriminar sons e sinais, por exemplo) e de motricidade (coordenação, orientação espacial etc.).
Dessa forma, dá-se peso excessivo para um aspeto exterior da escrita (saber desenhar as letras) e deixa-se de lado suas características conceituais, ou seja, a compreensão da natureza da escrita e sua organização. Para os construtivistas, o aprendizado da alfabetização não ocorre desligado do conteúdo da escrita.
É por não levar em conta o ponto mais importante da alfabetização que os métodos tradicionais insistem em introduzir os alunos à leitura com palavras aparentemente simples e sonoras (como babá, bebé, papa), mas que, do ponto de vista da assimilação das crianças, simplesmente não se ligam a nada. Segundo o mesmo raciocínio equivocado, o contacto da criança com a organização da escrita é adiado para quando ela já for capaz de ler as palavras isoladas, embora as relações que ela estabelece com os textos inteiros sejam enriquecedoras desde o início.Segundo Emilia Ferreiro, a alfabetização também é uma forma de se apropriar das funções sociais da escrita. De acordo com suas conclusões, desempenhos díspares apresentados por crianças de classes sociais diferentes na alfabetização não revelam capacidades desiguais, mas o acesso maior ou menor a textos lidos e escritos desde os primeiros anos de vida.
Uma das principais consequências da absorção da obra de Emilia Ferreiro na alfabetização é a recusa ao uso das cartilhas, uma espécie de bandeira que a psicolinguista argentina ergue. Segundo ela, a compreensão da função social da escrita deve ser estimulada com o uso de textos de atualidade, livros, histórias, jornais, revistas. Para a psicolinguista, as cartilhas, ao contrário, oferecem um universo artificial e desinteressante. Em compensação, numa proposta construtivista de ensino, a sala de aula se transforma totalmente, criando-se o que se chama de ambiente alfabetizador. (daqui)

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

"Chove chuva" - Poema de António Mota

 
Albert Anker (Swiss painter and illustrator, 1831-1910), Still Life: Silver Teapot, 1897

 
 
Chove chuva


Chove chove
chuva chove
Chove chuva
chove cá.
Já choveu
uma chuvada
numa chávena de chá.

Numa chávena de chá
numa chávena chinesa
chove chuva
chuva chove
no chá da dona Teresa
Chove chuva
chuva chove.

Chove chuva
chove cá.
Já estou farto de chuva.
Quero tomar um chá.


António Mota
, Se tu visses o que eu vi, 2007
 
 
 
Albert Anker, Still life: Tea service, 1910
 
 
"O Inglês, sem chá, bate-se frouxamente."

Eça de Queiroz
, in Cartas de Inglaterra,
"Afeganistão e Irlanda".
(daqui)
 
 
Albert Anker, Still-life: Tea and Melted Bread, 1873 

 
Chá

 
O chá surgiu na China antiga, em 2737 a. C., pela mão do imperador Shen Nong, um governante bastante preocupado com a saúde que mandava ferver a água antes de ingeri-la.
Num dia de verão, de visita a uma das terras do seu reino, a comitiva que o acompanhava parou para descansar. Enquanto ferviam água, caíram lá algumas folhas, dando uma cor acastanhada à bebida.
Como cientista que era, Shen Nong interessou-se pelo ocorrido e experimentou a infusão criada acidentalmente, tendo achado que era bastante refrescante. As folhas tinham caído de uma árvore Camellia sinensis, atualmente conhecida como planta do chá.

Somente durante a dinastia Tang, que decorreu entre 618 e 906, é que o chá se tornou numa bebida nacional na China, tendo pela primeira vez surgido a palavra "ch'a" para lhe dar nome.
Os budistas foram os responsáveis pela expansão do chá na China e também no Japão, para onde levaram a bebida no século VIII. O chá, bastante popular na corte e nos mosteiros, rapidamente fez sucesso nas outras camadas da sociedade nipónica.

No Japão, tornou-se numa forma de arte, onde o expoente máximo era a cerimónia japonesa do chá, que basicamente consistia em confecionar e servir uma chávena. No entanto, tinha de ser feito do modo mais perfeito e gracioso possível, o que requeria anos de treino.
Um mercador persa, ao relatar ao escritor veneziano Giovanni Ramusio as suas viagens à China, contou-lhe algumas coisas sobre o chá, tendo sido esta a primeira vez que um europeu ouviu falar em tal bebida.

O chá só chegaria à Europa no século XVI, graças aos portugueses, mais concretamente aos missionários jesuítas que viajaram nos barcos lusitanos pelas rotas marítimas do Oriente. O padre jesuíta Cruz (Francisco Rodrigues da Cruz), em 1560, foi o primeiro europeu a contactar diretamente com o chá e a escrever sobre ele, beneficiando do facto de Portugal ter sido o país ocidental que abriu caminho às trocas comerciais com a China.

Portugal trazia o chá para Lisboa, porto a partir do qual os barcos dos holandeses, aliados da altura, faziam o transporte para França, Holanda e países do Báltico. Esta aliança comercial durou até 1602, ano em que a Holanda passou a fazer as rotas do Pacífico com a sua marinha mercante.

O sucesso da Companhia Holandesa das Índias Orientais tornou o chá muito popular no seu país, mas o preço elevado tornava-o acessível apenas aos mais abastados. No entanto, com o crescimento das importações, os preços baixaram e as vendas subiram, levando a que por volta de 1675 estivesse disponível nas lojas alimentares.
Entretanto, a Rússia imperial também se mostrava interessada neste produto, nomeadamente a partir do momento em que a embaixada chinesa em Moscovo presenteou o czar Alexis com vários tipos de chá em 1618.

A partir de 1689 caravanas de cerca de 300 camelos percorriam durante 16 meses uma longa viagem de mais de 17 mil quilómetros para ir à China buscar chá. Este ficava assim com um preço proibitivo, que contudo foi baixando, especialmente quando ficou completa a linha ferroviária em 1900, que servia o Transiberiano.
O chá passou a ser então uma bebida quase tão popular como a vodka.

Em 1650, os holandeses haviam levado o chá para a América, quando Peter Stuyvesant o forneceu aos colonos de Nova Amesterdão, a atual Nova Iorque. Quando esta cidade passou para as mãos dos ingleses, estes constataram que por lá se consumia mais chá do que em toda a Inglaterra.

O chá esteve na origem da rebelião dos colonos americanos contra o poder da coroa inglesa. Os elevados impostos aplicados em 1767 ao chá que chegava ao território americano foram o pretexto para o início da rebelião que levou à independência do país. Em Inglaterra queriam que na colónia pagassem os custos da guerra contra os franceses e os índios.
Teve então lugar, em 1773, a Boston Tea Party, durante a qual foram atiradas ao mar cerca de 340 caixas de chá inglês.

O chá chegou tarde a Inglaterra, entre 1652 e 1654, mas rapidamente se tornou popular.
A corte foi a primeira a ter contacto com esta bebida de origem chinesa, graças à intervenção da portuguesa D. Catarina de Bragança, infanta que, em 1662, casou com o rei Carlos II. O médico de Catarina de Bragança já lhe havia receitado chá por motivos de saúde e a infanta, quando chegou a Inglaterra para o casamento, tinha como parte do seu dote um serviço de chá da China. Assim, começou a servir esta bebida pela corte, instaurando o tradicional Chá das Cinco.

O chá iria mudar para sempre a vida dos súbditos ingleses, tornando-se um elemento indissociável da sua personalidade e da sua maneira de ser. Ao ritual do "chá das cinco" estão associados os tradicionais scones e a marmalade, esta última também introduzida por Catarina de Bragança.

Em 1680, surge em França a primeira menção ao chá com leite, na mesma época em que na Holanda apareceram estabelecimentos públicos a servir a bebida.
No entanto, o chá era uma bebida cara no século XVII devido aos elevados impostos que eram aplicados e em Inglaterra começou a ser adulterado e falsificado, surgindo também no mercado negro.
A situação só foi controlada, em 1834, com as reduções nos impostos e com o fim do monopólio da Companhia das Índias. O mercado tornou-se livre e permitiu o desenvolvimento da indústria naval, já que cada vez mais barcos partiam para a Ásia para fazer carregamentos de chá, uma bebida que graças a uma substancial redução no preço ficou de tal forma popular que ultrapassou a cerveja.

Já em finais do século XIX, o inglês Thomas Lipton fez ainda mais pelo comércio do chá ao criar culturas próprias e ao introduzir sacos pré-empacotados para preservar o aroma.
Entretanto, os Estados Unidos da América, com um governo estável e a economia a crescer, quiseram mostrar a sua evolução ao mundo em 1904 com a exposição internacional de St. Louis.

No meio dos comerciantes que mostravam o seus produtos estava Richard Blechynden, dono de uma plantação de chá. O seu objetivo era distribuir chá quente pelos visitantes, mas uma onda de calor estragou-lhe os planos. Para não perder a mercadoria, despejou lá dentro blocos de gelo e serviu os primeiros chá gelados, hoje em dia bastante populares em todo o mundo.

Quatro anos mais tarde, outro norte-americano, Thomas Sullivan, desenvolveu o conceito de chá em pacotes ao enviar amostras para restaurantes em que as folhas iam empacotadas. Constatou que elas acabavam por ser servidas assim mesmo e lançou-se no negócio.

O chá está assim difundido em todo o mundo, nas suas três categorias: "verde", quando não é fermentado, "oolongo", parcialmente fermentado, e "preto", totalmente fermentado. No mercado foram lançados os chás com aromas de frutos, como laranja, morango, pêssego, frutos tropicais, framboesa, e de citrinos, como limão.

Voltando ao país de origem do chá, para os chineses, este está associado à beleza, pelo ritual da sua preparação, pela satisfação e paz que provoca e por ser um complemento essencial do convívio.
O segredo da preparação do chá foi muito bem guardado pelos chineses e só em 1843 se descobriu que todos os tipos de chá provinham de uma mesma planta, a Camellia sinensis.
A procedência, o solo, o clima, a seleção e a preparação das folhas é que determinam as diferentes variedades existentes.

O chá preto (fermentado) é cultivado na Índia, Sri Lanka, na África Oriental, Japão e Taiwan, enquanto que o chá verde (não fermentado) é originário sobretudo da China e do Japão, embora também exista na Índia e na Indonésia. O chá "Oolong" (semifermentado) é oriundo de uma região chinesa chamada Foochow e de Taiwan, enquanto que o jasmim se pode encontrar na China. O Darjeeling e o Assam são produzidos sobretudo no Nordeste da Índia e no Sri Lanka.
Os blended, que resultam da mistura de vários chás, como o Earl Grey, existem em cerca de 1500 tipos de lotes diferentes. Um dos melhores chás do Mundo (preto e verde) é produzido nos Açores, em S. Miguel, na localidade de Gorreana, nas variedades Orange Pekoe, Broken e Moinha. (daqui)