terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

"Mediadora do Vento" - Poema de António Ramos Rosa

 
 
 
Mediadora do Vento


Ligeira sobre o dia
ao som dos jogos,
desliza com o vento
num encantado gozo.

Pelas praias do ar
difunde-se em prodígios.
Tudo é acaso leve,
tudo é prodígio simples.

Pequena e magnífica
no seu amor volante
propaga sem destino
surpresas e carícias.

Pátria, só a do vento
de tão subtil e viva.
Azul, sempre azul
em completa alegria. 


António Ramos Rosa
,
in "Mediadoras", Lisboa: Ulmeiro, 1985



Nadir Afonso, 'Lisboa'


“Chegaram a Lisboa ao cair da tarde, na hora em que a suavidade do céu infunde nas almas um doce pungimento.”

José Saramago, in 'A Jangada de Pedra', 1986
 


A Jangada de Pedra

 
Romance de José Saramago (Prémio Nobel da Literatura, em 1998), publicado em 1986. É adaptado para cinema, em 2002, sob a realização de George Sluizer (La Balsa de piedra).

A trama começa por relatar uma série de acontecimentos insólitos, terminando com a separação da Península Ibérica do continente europeu. Gera-se um clima social agitado de confrontos entre o povo e as tropas do governo.
Durante o percurso errante da península no oceano Atlântico, surge a possibilidade dela colidir com o arquipélago dos Açores. A população, desesperada, abandona as cidades do leste português. Perante as inesperadas deslocações dos habitantes, os governos português e espanhol não conseguem responder de maneira eficaz. Posteriormente, a Península Ibérica desvia-se dos Açores, de forma inexplicável, e desloca-se para Norte, o que permite às populações deslocadas regressarem às suas casas. Mais tarde, os cidadãos da península verificam que esta deixa de movimentar-se, passando a girar em torno de um eixo, fenómeno que durou um mês.
No fim da ação, a jangada de pedra imobiliza-se, deixando, no entanto, em aberto, a possibilidade de futuras movimentações.
As personagens que se destacam neste romance são Joana Carda, Joaquim Sassa, José Anaiço, Pedro Orce e Maria Guavaira.

Saramago exibe uma escrita particular de fortes traços modernistas, onde predominam os períodos e parágrafos longos, a escassez de pontuação, o cruzamento híbrido do discurso do narrador com o das personagens, a abundância do discurso indireto livre e o uso de expressões populares portuguesas.
A obra, que fora publicada no ano em que Portugal e Espanha aderiram à Comunidade Económica Europeia (C.E.E.), atual União Europeia, satiriza as autoridades políticas e os jogos de poder. (daqui)

 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

"Do Medo I" - Poema de Luiza Neto Jorge



Anna Elizabeth KlumpkeAmong the Lilies, 1909



Do Medo I


É de ti que eu sou irmã
por ti fui trocada em criança
quando as estrelas semearam a noite
(ficávamos chorando de medo
se o laço branco da trança não desse
para a escuridão toda do quarto)

Tenho os silêncios que me emprestaste
e na cidade que levantámos há pouco
(não destruiremos nunca)
habitam os pais
com os não irmãos mortos à nascença
que o eco de uma flauta eternizou

no cais dos barcos pequenos de papel
somos irmãos de ninguém
ancorámos com amarras de dúvida

é nosso irmão o medo do poente
a porta azul da morte

Em redor em redor de nós
a solidão voou borboleta negra de metal
caiu enforcado público na gravata verde

(a mesma solidão que cega
os arcos concêntricos das pupilas)

desde a rua ao bolor dos corpos poetas
da porta esquecida sem número
à mulher vendida aos ventos da noite

sem nevoeiros asfixiamos nítidos
nos passeios nos fatos nas cadeiras
nas cúpulas nos clarins

e sentes contigo os corpos das mulheres
de bruços sobre o dia
renascidos maduros os limites da carne

Há nebulosas de anos sem sentido
que vimos aprendendo o amor

há um embrião de veia
há uma veia atávica vermelha
nos mil séculos anteriores ao homem

Quando nos será possível um suicídio exato
em casas impossíveis
em ondas impossíveis
em (integralmente areia) desertos impossíveis?

Nasceu o sol na erva a erva nos degraus
os degraus desceram ao horizonte.
in Quarta Dimensão
 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

"Baladas Românticas" - Poema de Olavo Bilac




Hans Zatzka (Austrian, 1859–1945), Blumenreigen,
Dancing Amongst the Flowers, ca. 1900 



Baladas Românticas


Como era verde este caminho!
Que calmo o céu! que verde o mar!
E, entre festões, de ninho em ninho,
A Primavera a gorjear!...
Inda me exalta, como um vinho,
Esta fatal recordação!
Secou a flor, ficou o espinho...
Como me pesa a solidão!

Órfão de amor e de carinho,
Órfão da luz do teu olhar,
- Verde também, verde-marinho,
Que eu nunca mais hei de olvidar!
Sob a camisa, alva de linho,
Te palpitava o coração...
Ai! coração! peno e definho,
Longe de ti, na solidão!

Oh! tu, mais branca do que o arminho,
Mais pálida do que o luar!
- Da sepultura me avizinho,
Sempre que volto a este lugar...
E digo a cada passarinho:
"Não cantes mais! que essa canção
Vem me lembrar que estou sozinho,
No exílio desta solidão!"

No teu jardim, que desalinho!
Que falta faz a tua mão!
Como inda é verde este caminho...
Mas como o afeia a solidão!
 
 
Olavo Bilac, in “Poesias”
 
 
 
Joseph Bernard (French, 1864-1933), Allegory of Spring
 


Primavera 


As flores abrindo
no vento da primavera
como gargalhadas
 
 
É primavera –
sobre a montanha sem nome
névoa da manhã.
 
 
Vai-se a primavera –
choram as aves e há lágrimas 
nos olhos dos peixes. 
 

Matsuo Bashō
(Haicai / Haikai / Haiku)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

"Eu te prometo" - Poema de Rosa Lobato Faria


Antonio García Mencía (Madrid, 1853-1920), O Colar, s/d



Eu te prometo


Eu te prometo meu corpo vivo.
Eu te prometo minha centelha
minha candura meu paraíso
minha loucura meu mel de abelha
eu te prometo meu corpo vivo.

Eu te prometo meu corpo branco
meu corpo brando meu corpo louco
minha inventiva meu grito rouco
tudo o que é muito tudo o que é pouco
meu corpo casto meu corpo santo.

Eu te prometo meu corpo lasso
mar de aventura mar de sargaço
vaga de náufrago onda de espanto
orla de espuma do meu cansaço
eu te prometo meu doce pranto.

Eu te prometo todo o meu corpo
ardendo eterno na nossa cama
como um abraço como um conforto.

P´ra que me lembres além da chama
eu te prometo meu corpo morto.


Rosa Lobato de Faria,
in A Noite Inteira já não Chega
(Poesia 1983-2010, Babel Ed., 2013)