domingo, 3 de março de 2024

"Ode à Pobreza" - Poema de Pablo Neruda


Émile Friant (Peintre, graveur, illustrateur et sculpteur naturaliste français, 1863 – 1932),
Les Buveurs ou Le Travail du lundi, 1884, Musée des Beaux-Arts de Nancy.


 Ode à Pobreza 


Quando eu nasci,
seguiste-me,
pobreza,
olhavas-me
através
das tábuas carcomidas
pelo agreste inverno.
Subitamente
eram os teus olhos
que espreitavam pelas frinchas.
As goteiras,
de noite,
repetiam
o teu nome e apelido
ou às vezes
o saleiro quebrado,
o fato roto,
os sapatos descosidos,
advertiam-me.
Ali estavas
espiando-me
com os teus dentes de caruncho,
com os teus olhos de pântano,
com a tua língua cinzenta
que corrompe
a roupa, a madeira,
os ossos e o sangue,
ali estavas,
procurando-me,
seguindo-me
pelas ruas
desde o meu nascimento.
Quando aluguei um pequeno
quarto, nos subúrbios,
sentada numa cadeira
esperava por mim
e ao desdobrar os lençóis
num obscuro hotel,
quando adolescente,
da rosa nua
não foi a sua fragrância o que senti,
mas somente o frio silvo
da tua boca.
Pobreza,
seguiste-me,
por quartéis e hospitais,
em tempo de paz e de guerra.
Quando adoeci bateram
à porta:
não era o médico, era
uma vez mais a pobreza que chegava.
Vi como atiravas os móveis
para a rua:
os homens
deixavam-nos cair como se fossem pedregulhos.
Tu, com execrável amor,
ias fazendo
dum amontoado de solitárias coisas
no meio da rua e à chuva,
um desmantelado trono
e olhando os pobres
levavas-me
o último prato transformando-o em diadema.

Agora,
sigo-te,
pobreza.
E assim foste implacável,
implacável sou.
Junto
de cada pobre
encontrar-me-ão cantando,
debaixo
de cada lençol
de sombrio hospital
no meu canto encontrarás.
Sigo-te,
pobreza,
vigio-te,
cerco-te,
disparo sobre ti,
isolo-te,
corto-te as unhas rentes,
quebro-te
os dentes que te restam.
Estou
em todas as partes:
no oceano com os pescadores,
na mina
os homens
ao limparem a fronte,
enxugando-se do negro suor,
encontram
os meus poemas.
Todos os dias saio
com a operária têxtil.
Tenho as mãos brancas
de dar o pão nas padarias.
Estejas onde estiveres,
pobreza,
o meu canto
estará cantando,
a minha vida
estará vivendo,
o meu sangue
estará lutando.
Arriarei
as tuas pálidas bandeiras
onde quer que se levantem.
Outrora outros poetas
te chamaram
santa,
veneraram o teu manto,
alimentaram-se de fumo
e desapareceram.
Mas
eu desafio-te,
com os duros versos te machuco o rosto,
embarco-te e desterro-te.
Eu e muitos mais,
expulsar-te-emos
da terra para a lua
onde ficarás fria
e encharcada
olhando com um só olho
o pão e os frutos
que cobrirão a terra
de amanhã.

 in,"Odes Elementares", 1954
Tradução de José Bento


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